Direito Penal

Finalismo em Ação: como a teoria de Welzel redefine dolo, culpa e a culpabilidade no Direito Penal

Panorama: o que muda quando pensamos a ação como comportamento final

A teoria finalista da ação, desenvolvida sobretudo por Hans Welzel, alterou a estrutura do crime ao compreender a ação humana como um processo orientado a fins. Se, no causalismo, “agir” era apenas causar um resultado no mundo exterior, no finalismo a ação envolve direção consciente a um objetivo e domínio do curso causal pelo agente. Essa virada repercute diretamente no conceito de culpabilidade: elementos como dolo e culpa, antes vistos como componentes da culpabilidade (juízo pós-normativo), passam a integrar o tipo penal (o injusto), e a culpabilidade fica enxuta, de caráter normativo, fundada em imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

Essa reorganização não é mero academicismo. Ela informa a forma de narrar o fato, o ônus de prova, a dosimetria e a delimitação entre autoria e participação. No Brasil, embora o Código Penal de 1940 seja anterior ao finalismo, a leitura majoritária contemporânea do delito é finalista-normativa, com forte influência funcional em áreas específicas (autoria mediata em estruturas organizadas, posição de garante, crimes omissivos impróprios, etc.).

Mensagem-chave: no finalismo, dolo e culpa migram para o tipo; a culpabilidade passa a ser um juízo normativo sobre imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e exigibilidade. O foco desloca-se do “que o agente causou” para “como e para quê ele dirigiu a ação”.

História resumida e marcos conceituais

Do causalismo ao finalismo

  • Causalismo clássico (Liszt-Beling): ação como movimento corporal que causa resultado; dolo/culpa eram discutidos na culpabilidade; o tipo era predominantemente objetivo.
  • Finalismo (Welzel): ação como conduta final governada por representação e vontade. Dolo (consciência e vontade de realizar o tipo) e culpa (violação do dever de cuidado) integram o tipo subjetivo. A culpabilidade torna-se normativa e residual.
  • Desdobramentos funcionais (Roxin, Jakobs): mantêm o núcleo finalista, mas enfatizam funções preventivas e estruturais do direito penal (domínio do fato, papeis sociais, expectativas normativas).

Estrutura tripartida com roupagem finalista

Perdura a tripartição (fato típico, ilicitude, culpabilidade), mas com conteúdo reconfigurado:

  1. Fato típico = tipo objetivo (conduta, resultado, nexo) + tipo subjetivo (dolo ou culpa, elementos subjetivos especiais);
  2. Antijuridicidade = ausência de causas de justificação (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever, exercício regular de direito);
  3. Culpabilidade = imputabilidade + potencial consciência da ilicitude (art. 21) + exigibilidade de conduta diversa (art. 22 e afins).
Quadro comparativo rápido

Aspecto Causalismo Finalismo
Ação Causação mecânica do resultado Comportamento orientado a fins (domínio do curso causal)
Dolo/Culpa Elementos da culpabilidade Elementos do tipo (subjetivo)
Culpabilidade Juízo amplo (inclui dolo/culpa) Juízo normativo (imputabilidade, consciência, exigibilidade)
Autoria Quem causa o resultado Quem detém domínio do fato (plano, decisão, controle)

Impacto direto: redefinição de culpabilidade

Culpabilidade como juízo normativo

Uma vez que dolo e culpa estão no tipo, a culpabilidade passa a responder: este agente, nas condições em que se encontrava, podia ser pessoalmente censurado por ter realizado um fato típico e ilícito? O “pessoalmente” é decisivo. O juízo desdobra-se em três eixos:

  • Imputabilidade: capacidade de entender o ilícito e de se autodeterminar conforme esse entendimento;
  • Potencial consciência da ilicitude: possibilidade real de saber que a conduta era proibida (conectada ao erro de proibição, art. 21);
  • Exigibilidade de conduta diversa: ausência de situações de inexigibilidade (coação moral irresistível, obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal — art. 22 —, e hipóteses afins).

Nessa chave, causas como coação e ordem legítima são excludentes de culpabilidade; já as justificantes (p. ex., legítima defesa) eliminam a ilicitude. A separação ficou mais nítida com o finalismo porque o injusto ganhou parte subjetiva própria (o dolo não “mora” na culpabilidade).

Ônus de prova e narrativa processual

Se o dolo integra o tipo, a acusação precisa narrar e provar elementos que revelem a direção final da conduta: representação do resultado e decisão de produzi-lo (ou aceitar seu risco, no dolo eventual). Para a defesa, a estratégia desloca-se para erro de tipo, erro de proibição e inexigibilidade, com documentos, ordens, pareceres, treinamentos e contextos.

Migração conceitual (ilustrativo) Causalismo — Culpabilidade (incluía dolo/culpa) Tipo (mais objetivo) Finalismo — Tipo (objetivo + subjetivo: dolo/culpa) Culpabilidade (normativa residual)
Esquema didático para visualizar o deslocamento conceitual proposto por Welzel.

Repercussões dogmáticas: dez áreas onde o finalismo faz diferença

1) Tentativa e dolo

Com o dolo no tipo, a tentativa exige direção final ao resultado (início de execução com vontade de realizá-lo). O recuo voluntário (desistência voluntária) e o arrependimento eficaz são lidos como interrupções do programa final que “quebram” a tipicidade da forma tentada, mantendo apenas atos já consumados (se houver).

2) Dolo eventual x culpa consciente

No finalismo, a linha divisória é traçada pelo querer ou aceitar o risco (dolo eventual) versus confiar levianamente na não produção do resultado (culpa consciente). O exame incide sobre a postura interna do agente face ao risco, reconstruída a partir de dados externos (contexto, treinamento, ganhos, escolhas).

3) Autoria, domínio do fato e participação

Autor é quem domina finalisticamente o curso do acontecimento: decide, planeja e controla a execução; o partícipe contribui sem domínio. Daqui derivam: autoria mediata (uso de outrem como instrumento, inclusive em organizações), coautoria funcional e a leitura de crimes omissivos impróprios com base em posição de garante (dever institucional de evitar o resultado).

4) Crimes omissivos impróprios

O finalismo facilita compreender a omissão como não impedimento de curso causal que o garante podia e devia controlar. O foco está na capacidade final de evitar o resultado dentro da esfera de competência (pais, médicos, salva-vidas, operadores).

5) Erro de tipo x erro de proibição

Com o tipo subjetivo, o erro de tipo (sobre elementos do tipo) exclui o dolo e, se invencível, também a culpa; já o erro de proibição (art. 21) atua na culpabilidade (inevitável isenta; evitável reduz a pena). A distinção ganhou nítidez na chave finalista.

6) Elementos subjetivos específicos

Finalismo acomoda especial fim de agir (ânimo de lucro, propósito de ofender, intenção de vantagem), como subcamadas do tipo subjetivo, úteis para diferenciar tipos especiais (p. ex., furto para si x dano por animosidade).

7) Justificantes e exculpantes

As justificantes incidem no injusto (ilicitude), pois tornam socialmente adequada a ação final; as exculpantes incidem na culpabilidade quando, apesar do injusto, não se pode reprovar pessoalmente o agente (coação, ordem legítima, erro de proibição inevitável). A divisão clarifica a lógica das excludentes.

8) Dosimetria e culpabilidade

No art. 59 do CP, a culpabilidade avaliada para a pena-base é um juízo normativo, não sobre o dolo/culpa (já valorados no tipo), mas sobre fatores como deveres especiais, domínio do fato, planejamento e exigibilidade. Evita-se bis in idem.

9) Concurso de pessoas e imputação

O finalismo admite uma imputação diferenciada: cada partícipe responde conforme seu programa final e contribuição ao domínio do acontecimento, útil, por exemplo, em fraudes corporativas, crimes informáticos e crimes de organização.

10) Política criminal e limites à punição

Ao recentrar a ação na finalidade e no domínio consciente, o finalismo oferece critérios para evitar responsabilidade objetiva, reforçar a proporcionalidade e ampliar o debate sobre governança (protocolos, treinamento, ordens, cultura organizacional) como variáveis de exigibilidade.

Alerta prático: em peças processuais, não confunda culpabilidade (juízo normativo do art. 59) com dolo/culpa (tipo subjetivo). Fundamentos de elevação de pena por “gravidade do dolo” tendem ao bis in idem se não houver dados autônomos de reprovação.

Exemplos práticos e aplicações setoriais

Exemplo 1 — Dolo eventual no trânsito corporativo

Motorista profissional, treinado e com alertas prévios, dirige acima do limite, manobra arriscadamente e ignora sistemas de alerta. O resultado lesivo ocorre. No finalismo, analisa-se a postura interna: ao aceitar o risco em prol do prazo (benefício econômico), aproxima-se do dolo eventual. A culpabilidade, por sua vez, avalia deveres especiais e exigibilidade (treinamento e recursos disponíveis) para dosimetria.

Exemplo 2 — Erro de tipo permissivo x erro de proibição

Segurança acredita que a pessoa sacou arma e reage; depois, verifica-se que era um objeto inofensivo. Se o erro recaiu sobre o pressuposto fático da legítima defesa, temos erro de tipo permissivo (atinge o dolo). Se, ao contrário, sabia dos fatos, mas supôs estar autorizado por norma inexistente, discute-se erro de proibição (culpabilidade, art. 21). A chave finalista ordena a porta de entrada do argumento.

Exemplo 3 — Autoria mediata em organização

Dirigente determina esquema de falsificação por meio de camadas hierárquicas. Cada executor é substituível e opera em estrutura de poder que neutraliza a autorreflexão. O finalismo funcional (Roxin) permite reconhecer domínio da organização pelo dirigente (autor mediato), enquanto se examina a culpabilidade de executores segundo sua exigibilidade (ordens, margem de recusa, coações, cultura de metas).

Exemplo 4 — Omissão imprópria de garante

Chefe de segurança de evento subdimensiona barreiras apesar de projeções técnicas, e lesões ocorrem em tumulto. Como garante, detinha domínio final do não impedimento e violou dever institucional. A culpabilidade observa se havia recursos e tempo, bem como pressões e ordens superiores (exigibilidade).

Checklist — Como aplicar a chave finalista em casos concretos

  1. Reconstrua o programa final do agente: objetivo, meios escolhidos, controle do curso causal.
  2. Distingua tipo (incluindo dolo/culpa) de ilicitude e culpabilidade.
  3. Para autoria, verifique o domínio do fato (decisão, planejamento, controle) e a posição de garante.
  4. Para culpabilidade, prove imputabilidade, consciência potencial e exigibilidade (ou a ausência delas).
  5. Evite bis in idem na dosimetria: se algo foi base do tipo/dolo, não repita como culpabilidade sem fundamento autônomo.

Efeitos na interpretação de normas penais e regulatórias

Em campos técnico-regulatórios (ambiental, sanitário, financeiro, proteção de dados), o finalismo orienta a distinguir: (a) se o agente atuou com plano consciente de violar a norma (dolo no tipo); (b) se houve violação de dever de cuidado (culpa no tipo); (c) se o agente, apesar do injusto, não podia saber da proibição (erro de proibição inevitável) ou não podia agir de outro modo (coação, ordens legítimas). Essa análise reduz automatismos punitivos e melhora a justificação das decisões.

Gráfico decisório: portas de entrada do caso

Fluxo do caso (finalista) TIPO: objetivo + subjetivodolo/culpa; elementos especiais ANTIJURIDICIDADEjustificantes? CULPABILIDADEimputab./consciência/exigibilidade Falha no TIPO → absolvição Justificante → lícito Exculpante → isento/pena reduzida
O percurso orienta a ordem lógica de análise e a distribuição de argumentos probatórios.

Críticas e limites do finalismo

  • Risco de psicologização: ao enfatizar a vontade e o plano, cresce a dificuldade probatória sobre estados internos, exigindo prudência na inferência a partir de dados externos.
  • Casos de negligência sistêmica: em ambientes complexos, a distinção entre dolo eventual e culpa consciente pode ser difusa. A resposta finalista demanda critérios operacionais (treinamento, indicadores de risco, custo/benefício, comunicação prévia).
  • Pressões funcionalistas: leituras que expandem autoria mediata ou posição de garante precisam preservar limites materiais para evitar responsabilidade objetiva.
Boas práticas argumentativas

  • Descrever o programa final com base em evidências (comunicações, logs, protocolos, escolhas).
  • Separar claramente tipo, ilicitude e culpabilidade ao estruturar a peça.
  • Para autoria, mapear decisão, planejamento, controle e capacidade de parada (desistência possível).
  • Para culpabilidade, demonstrar imputabilidade, consciência potencial e exigibilidade; quando não houver, justificar a exculpação ou redução.

Conclusão

A teoria finalista da ação transformou o Direito Penal ao recentrar a pergunta sobre o crime na direção consciente da conduta. A consequência mais visível no tema da culpabilidade é sua enxugamento: o que antes lhe pertencia (dolo/culpa) migra para o tipo penal, e o que permanece é o juízo normativo de censurabilidade pessoal — imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Essa arquitetura clarifica a distinção entre injusto e exculpação, fornece ferramentas probatórias mais precisas (programa final, domínio do fato, posição de garante) e evita responsabilidade objetiva e bis in idem na dosimetria. Ao mesmo tempo, exige cautela metodológica para não psicologizar em demasia a prova e para manter limites materiais ao expandir categorias como autoria mediata e deveres de garante. Em síntese, o finalismo não é apenas uma “teoria da ação”; ele é um método de racionalização do sistema penal que protege a proporcionalidade e a dignidade ao conectar vontade, plano e controle às respostas do Estado.

FAQ — Teoria finalista e culpabilidade (acordeão)

1) O que é a teoria finalista da ação e por que ela importa para a culpabilidade?

A teoria finalista (Hans Welzel) entende a ação como comportamento orientado a fins, com domínio consciente do curso causal. Com isso, dolo e culpa deixam a culpabilidade e passam a integrar o tipo penal (parte subjetiva), enquanto a culpabilidade fica normativa (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa).

2) O que muda, na prática forense, quando dolo/culpa migram para o tipo?

A acusação deve narrar e provar a direção final (representação e decisão) do agente para demonstrar dolo ou a violação do dever de cuidado para a culpa. A defesa, por sua vez, estrutura melhor erro de tipo, erro de proibição e inexigibilidade. Na dosimetria (art. 59 CP), evita-se bis in idem entre “gravidade do dolo” e “culpabilidade”.

3) Como fica a distinção entre ilicitude e culpabilidade no finalismo?

O injusto (fato típico + ausência de justificantes) concentra a discussão sobre dolo/culpa e causas de justificação (legítima defesa, estado de necessidade etc.). A culpabilidade passa a aferir imputabilidade, consciência potencial da ilicitude (art. 21 CP) e exigibilidade de conduta diversa (art. 22 CP). Justificantes excluem a ilicitude; exculpantes excluem a culpabilidade.

4) Quais institutos revelam melhor o “toque finalista” no dia a dia?
  • Dolo eventual x culpa consciente: foco na postura interna frente ao risco (aceitar x confiar na não produção).
  • Autoria e domínio do fato: autor é quem decide/planeja/controla a execução; partícipe contribui sem domínio.
  • Crimes omissivos impróprios: posição de garante como controle final do não impedimento do resultado.
5) Quais são os principais limites e cautelas do finalismo?

Evitar psicologização excessiva da prova de estados internos; preservar limites materiais em autoria mediata/posição de garante para não deslizar à responsabilidade objetiva; fundamentar a culpabilidade na dosimetria sem repetir elementos do tipo (art. 59 CP).

Quadro rápido — Culpabilidade no finalismo

  • Fato típico: inclui dolo ou culpa (tipo subjetivo).
  • Ilicitude: afasta-se por justificantes (legítima defesa, necessidade etc.).
  • Culpabilidade: imputabilidade + consciência potencial da ilicitude (art. 21 CP) + exigibilidade (art. 22 CP).
  • Dosimetria (art. 59 CP): evitar bis in idem e valorar fatos concretos de reprovabilidade.

Base técnica — Fontes legais e referências

  • Código Penal: art. 21 (erro de proibição), art. 22 (coação moral irresistível e obediência hierárquica), art. 59 (circunstâncias judiciais e culpabilidade na pena-base).
  • Constituição Federal: art. 5º, XLVI (individualização da pena) e princípios da proporcionalidade, dignidade, devido processo.
  • Doutrina: Welzel (finalismo); Roxin (domínio do fato e funcionalismo); leituras brasileiras finalista-normativas na estrutura tripartida do delito.


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