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Direito de Superfície: como construir legalmente em terreno de outra pessoa

Conceito e natureza jurídica do direito de superfície

O direito de superfície é um direito real que autoriza alguém (superficiário) a construir, plantar ou manter edificação em terreno de terceiro (proprietário), com separação entre a propriedade do solo e a propriedade da construção/plantação. No Brasil, está previsto nos arts. 1.369 a 1.377 do Código Civil e, no âmbito urbano, também nos arts. 21 a 24 do Estatuto da Cidade. Diferentemente da locação (obrigacional), a superfície segue o regime dos direitos reais: oponibilidade a terceiros, necessidade de registro e tipicidade legal.

Mensagem-chave: a superfície “descola” o dominium do solo do domínio da obra/plantação. Quem detém a superfície pode usar, fruir e dispor da construção dentro dos limites contratuais, enquanto o dono do terreno preserva a titularidade do solo.

Características essenciais

Constituição e forma

Nasce por contrato (ou ato unilateral do proprietário em favor do superficiário), devendo ser celebrado por escritura pública quando envolver imóveis públicos ou exigência legal local, e registrado na matrícula do imóvel para adquirir eficácia erga omnes. Sem registro, há mera relação obrigacional entre as partes, sem oponibilidade a terceiros.

Prazo e conteúdo

O prazo pode ser determinado (com termo final) ou indeterminado (mais raro, sobretudo em áreas urbanas que preferem prazos certos). O conteúdo delimita: finalidade (residencial, comercial, industrial, agrícola), parâmetros construtivos, índice de aproveitamento, responsabilidades por obras e manutenção, e retorno da construção ao proprietário ao final, conforme pactuado.

Onerosa x gratuita

Pode ser onerosa (com remuneração periódica ou parcela única) ou gratuita. Na urbana, é comum a remuneração (preço de superfície) atrelada à área aproveitável, potencial construtivo ou indicadores de mercado.

Transmissibilidade e garantias

Como direito real, a superfície é transmissível por ato inter vivos e por sucessão causa mortis, podendo ser gravada com hipoteca/alienação fiduciária apenas quanto às acessões (a edificação em si), respeitadas as limitações contratuais e legais. O terreno em si continua fora do patrimônio do superficiário.

Quadro informativo – responsabilidades usuais

  • Superficiário: obras, manutenção das edificações, seguros, tributos incidentes sobre a construção/uso (ex.: IPTU sobre a área edificada, taxas de serviços).
  • Proprietário do solo: mantém titularidade registral e, em regra, tributos relativos à nua-propriedade se houver segregação cadastral. O contrato pode distribuir encargos de forma expressa.
  • Ambiente regulatório: cumprimento do plano diretor, zoneamento, outorga onerosa do direito de construir (quando aplicável), licenças e alvarás.

Direito de superfície urbano e rural

Urbano

No espaço urbano, a superfície é instrumento de gestão do solo e de política urbana, permitindo: viabilizar habitação de interesse social, PPP para equipamentos públicos, regularização fundiária e adensamento planejado sem alienar o solo municipal ou de particulares. O Estatuto da Cidade incentiva cláusulas de função social e condicionantes urbanísticas (percentual de HIS, uso misto, áreas verdes).

Rural

No meio rural, admite-se superfície para silvicultura, plantios perenes, agroindústria e geração de energia, separando o investimento produtivo da titularidade do solo. Deve-se observar limitações ambientais, reserva legal, APP, e normas de parcelamento/arrendamento rural quando couber.

Relação com outros institutos

Comparativo rápido

Instituto Natureza Objeto Registro Oponível a terceiros?
Superfície Direito real Construção/plantio em solo alheio Sim, na matrícula Sim
Locação Obrigacional Uso do imóvel Facultativo (averbação) Limitada
Servidão Direito real Utilidade sobre prédio vizinho Sim Sim
Concessão de direito real de uso (CDRU) Direito real público Uso especial de bem público Sim Sim

“Gráfico” – fluxo da superfície: Due diligence do solo → Minuta contratual e parâmetros urbanísticos → Escritura → Registro na matrícula → Projeto e licenças → Construção/Exploração → Fiscalização de obrigações → Extinção/renovação/retorno das acessões.

Tributos e custos regulatórios

A instituição/cessão do direito de superfície pode estar sujeita a ITBI (em municípios que tributam a transmissão onerosa de direitos reais), e a edificação/uso sujeita a IPTU e taxas de serviços públicos. No âmbito federal, avaliar IR/CSLL sobre receitas do concedente e do superficiário (arranjo contratual). Em ambientes urbanos, podem incidir outorga onerosa do direito de construir, contrapartidas urbanísticas e eventuais ônus de mitigação ambiental.

Cláusulas contratuais estratégicas

  • Objeto e finalidade: área delimitada (memorial descritivo), tipo de uso e índices de aproveitamento.
  • Prazo e condições resolutivas: termo, hipóteses de vencimento antecipado (abandono da obra, descumprimento ambiental/urbanístico, inadimplemento de preço).
  • Remuneração: preço de superfície e reajustes; repartição de receitas (em shoppings, parques fotovoltaicos etc.).
  • Riscos e seguros: obrigatoriedade de seguro de obra, responsabilidade civil, garantias financeiras.
  • Tributos e encargos: quem paga o quê; repasses e reembolsos; repartição do IPTU e taxas.
  • Licenças e compliance: dever do superficiário de obter licenças e respeitar normas de vizinhança, ruído, trânsito, meio ambiente.
  • Benfeitorias e retorno: regra de reversão ao término (com ou sem indenização); estado de conservação mínimo.
  • Transferência e garantia: limites para cessão, oneração das acessões e direito de preferência do proprietário.
Checklist de due diligence

  1. Registro imobiliário: titularidade, ônus, ações reais, georreferenciamento, sobreposições.
  2. Urbanismo: zoneamento, coeficiente de aproveitamento, gabarito, recuos, vagas, impactos viários.
  3. Ambiental: APP, licenças prévia/de instalação/operação, passivos ambientais, contaminação do solo.
  4. Conexões: água, esgoto, energia, drenagem e mitigação de cheias.
  5. Vizinhança: eventuais servidões, restrições convencionais, conflitos históricos.

Extinção, caducidade e efeitos

O direito de superfície extingue-se: (i) pelo termo; (ii) por inadimplemento contratual relevante; (iii) por destruição total da obra sem reconstrução no prazo estipulado; (iv) por resgate nas hipóteses legais/contratuais; ou (v) por acordo. Em regra, ao término ocorre a consolidação no patrimônio do proprietário do solo, com ou sem indenização pela obra remanescente, conforme estipulado. É recomendável averbar a extinção na matrícula para saneamento jurídico.

Aplicações práticas e estratégias

  • Incorporação e retrofit: viabiliza empreendimentos em terrenos valiosos sem aquisição do solo, reduzindo CAPEX e permitindo retorno do ativo construído ao final.
  • Infraestrutura e energia: parques solares/eólicos, estacionamentos públicos, terminais urbanos – separando a obra da propriedade do solo público/privado.
  • Habitação de interesse social: municípios concedem superfície para entidades sem fins lucrativos construírem e operarem moradias com contrapartidas sociais.
  • Regularização fundiária: famílias obtêm direito real sobre a edificação em solo público/privado, respeitando função social e regramento local.

Boas práticas de governança contratual

Para reduzir litígios, recomenda-se instituir comitê de acompanhamento, cronograma de marcos (licença, início de obra, habite-se), indicadores de desempenho (manutenção, seguros, inadimplência), cláusulas de mediação/arbitragem para controvérsias técnicas e matriz de riscos (força maior, atrasos de rede pública, achados arqueológicos). A relação é de longo prazo; transparência e métricas mitigam surpresas.

Conclusão

O direito de superfície é ferramenta versátil para estruturar projetos e ampliar o aproveitamento do solo com segurança jurídica. Ao separar o domínio do terreno da titularidade das acessões, viabiliza modelos de parceria, reduz custo de entrada e permite atender à função social da propriedade, sobretudo nas cidades. O êxito depende de contrato bem desenhado, registro preciso e compliance urbanístico-ambiental. Com governança adequada, a superfície entrega flexibilidade aos agentes privados e preserva o interesse público do ordenamento territorial.

Guia rápido

  • O direito de superfície permite que uma pessoa construa, plante ou mantenha edificação em terreno alheio, sem ser proprietária do solo.
  • É um direito real previsto no Código Civil (arts. 1.369 a 1.377) e no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001).
  • Pode ser oneroso ou gratuito, por prazo determinado ou indeterminado, e deve ser registrado na matrícula do imóvel para ter validade contra terceiros.
  • Ao término, a construção retorna ao proprietário do terreno, salvo disposição diversa no contrato.
  • É amplamente utilizado em projetos urbanos, habitação social, energia renovável e concessões públicas.

FAQ NORMAL

O que diferencia o direito de superfície da locação de terreno?

O direito de superfície é um direito real, conferindo ao superficiário o domínio sobre a construção ou plantação. Já a locação é um contrato obrigacional, sem registro, e não gera direito oponível a terceiros.

É possível vender ou transferir o direito de superfície?

Sim. O superficiário pode transferir, hipotecar ou herdar o direito, desde que o contrato não restrinja. Toda operação deve ser registrada em cartório para manter validade jurídica e publicidade.

O que acontece ao final do contrato de superfície?

Encerrado o prazo, as construções normalmente revertem ao proprietário do terreno, com ou sem indenização, conforme estipulado no instrumento. Essa regra deve ser expressa no contrato e averbada na matrícula.

Quais impostos incidem sobre o direito de superfície?

Em geral, incidem ITBI (na constituição onerosa), IPTU (para o superficiário sobre a área edificada) e IR/CSLL em operações empresariais. É essencial definir a responsabilidade tributária no contrato.

A superfície pode ser utilizada para projetos públicos ou PPPs?

Sim. Entes públicos usam a superfície em concessões urbanas, infraestrutura e habitação de interesse social, sem alienar o solo. O instrumento é estratégico para a gestão urbana e o desenvolvimento sustentável.

Quais são os requisitos formais para criar o direito de superfície?

É necessária uma escritura pública e o registro no Cartório de Imóveis. Sem registro, o contrato tem efeito apenas entre as partes e não produz direito real contra terceiros.

Base normativa e técnica

  • Código Civil (Lei nº 10.406/2002) – arts. 1.369 a 1.377: define o direito de superfície, transmissibilidade e extinção.
  • Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) – arts. 21 a 24: trata da aplicação urbana e da função social.
  • Lei nº 13.465/2017 – ampliou a utilização do instituto em regularização fundiária urbana.
  • Decreto-Lei nº 271/1967 – antecessor do conceito moderno, ainda aplicável em concessões públicas.
  • Doutrina: Silvio de Salvo Venosa e Maria Helena Diniz destacam o caráter autônomo do direito real e sua importância na função social da propriedade.

Considerações finais

O direito de superfície é uma ferramenta jurídica moderna que estimula o uso racional do solo, viabilizando empreendimentos com segurança jurídica e função social. Sua correta aplicação requer contrato detalhado, registro formal e atenção às normas urbanísticas e ambientais. É um instrumento valioso para a integração entre poder público e iniciativa privada.

Essas informações têm caráter informativo e não substituem a consulta a um profissional especializado ou advogado.

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