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Superendividamento: Como a Nova Lei Protege o Consumidor e Garante o Direito ao Recomeço

Superendividamento: medidas legais de proteção ao consumidor e como usar a lei na prática

O superendividamento é a situação em que o consumidor, de boa-fé, torna-se incapaz de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, atuais e futuras, sem comprometer o mínimo existencial necessário à sua subsistência e de sua família. No Brasil, o tema ganhou tratamento estruturado com a Lei nº 14.181/2021, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e promoveu uma mudança de cultura: sair do enfoque apenas repressivo (disputa sobre um contrato) para um modelo preventivo, educativo e de repactuação global das dívidas.

Este guia reúne, de forma operacional, as principais regras, direitos e passos do procedimento judicial e extrajudicial para prevenção e tratamento do superendividamento. Também traz checklists, quadros de referência e visuais didáticos (exemplos) para apoiar a atuação de consumidores, defensores, advogados, Procons, juizados e fornecedores de crédito.

Base legal essencial

  • Lei nº 14.181/2021 — altera o CDC e o Estatuto do Idoso para instituir prevenção e tratamento do superendividamento.
  • CDC (com redação da Lei 14.181): reforça o direito à informação, combate ao assédio de consumo e define regras de crédito responsável (arts. 4º, 6º, 39, 51, 54-A a 54-G, 104-A e 104-B, entre outros).
  • Princípios: boa-fé objetiva, dignidade da pessoa humana, preservação do mínimo existencial, prevenção de dívidas impagáveis e repactuação com transparência.

Conceitos básicos e dívidas abrangidas

O que é mínimo existencial

É o patamar mínimo de renda que deve permanecer livre de constrições para assegurar moradia, alimentação, saúde, educação, transporte essencial e condições básicas de vida. A lei não fixa um valor universal — cabe ao juiz dimensionar caso a caso, à luz de parâmetros técnicos e sociais, podendo apoiar-se em dados de orçamento familiar, políticas públicas e normas locais.

Que dívidas entram no plano?

  • Em regra, todas as dívidas de consumo assumidas de boa-fé, inclusive com instituições financeiras (cartão, CDC, cheque especial), lojas, serviços contínuos (água, luz, telecom), desde que relacionadas ao destino final (consumidor não profissional).
  • Ficam fora do regime: obrigações decorrentes de ilícitos (multa penal, indenização por dano doloso), pensão alimentícia, tributos, e, em muitos entendimentos, contratos com garantias reais de bem essencial (p.ex., financiamento habitacional) e dívidas de luxo ou contraídas com má-fé. O enquadramento é concreto e pode variar conforme jurisprudência local.

Prevenção: crédito responsável, informação e educação financeira

Deveres do fornecedor antes da contratação

  • Avaliação de risco compatível com a renda e o perfil do consumidor (evitar concessão irresponsável de crédito).
  • Informação clara sobre Custo Efetivo Total (CET), taxas, encargos, juros remuneratórios, multa, juros de mora, seguros e vendas casadas (vedadas).
  • Proibição de assédio e práticas agressivas, especialmente a idosos, pessoas em vulnerabilidade e na oferta de crédito consignado sem solicitação.
  • Período de reflexão e linguagem acessível nos contratos; entrega de sumário com principais condições.

Ferramentas de prevenção

  • Políticas internas de limites prudenciais e score que considerem a capacidade de pagamento e a preservação do mínimo existencial.
  • Programas de educação financeira e canal de renegociação contínuo.
  • Monitoramento de overlap de créditos (cartões + consignado + finanças digitais) e de refinanciamentos seriados com piora do CET.

Exemplo didático — composição típica de dívidas em famílias superendividadas (valores fictícios para visualização)

Cartão Consignado CDC/Boleto Serviços Outros Gráfico ilustrativo — substitua por dados reais de sua região

Tratamento do superendividamento: como funciona a repactuação global

1) Fase de conciliação com todos os credores

O consumidor pode propor, perante o Judiciário (Juizados/Varas Cíveis) ou Procon/Núcleos de Consumidor, um processo de repactuação com todos os credores (arts. 104-A e 104-B do CDC). O objetivo é firmar plano de pagamento consensual, preservando o mínimo existencial, com prazos e redução de encargos compatíveis. O juiz pode suspender ações e execuções relativas às dívidas abrangidas, para viabilizar a negociação global.

2) Plano judicial compulsório (quando não há consenso)

Se a conciliação fracassar, o juiz pode aprovar um plano judicial que alinha prazos, limita encargos e prioriza o adimplemento segundo critérios de essencialidade e proporcionalidade. O plano costuma atingir até 5 anos (parâmetro frequente na prática), mas o prazo concreto dependerá do caso, da renda e da natureza dos contratos. O consumidor mantém o compromisso de não contrair novas dívidas que comprometam o plano, e os credores devem observar a ordem de pagamentos fixada.

3) Salvaguardas

  • Transparência e simetria informacional — todos os credores devem fornecer saldos, taxas, CET e histórico dos contratos.
  • Proteção contra assédio — proibição de ligações insistentes, ofertas agressivas e rolagens sucessivas que piorem o CET.
  • Revisão de cláusulas abusivas — o juiz pode afastar comissões, seguros embutidos não contratados, venda casada e custos desproporcionais.

Documentos necessários para iniciar o pedido

  • Comprovantes de renda (holerite, extratos, imposto de renda).
  • Orçamento familiar (moradia, alimentação, saúde, transporte, educação).
  • Relação de dívidas com credores, saldos, parcelas, taxas e CET.
  • Comprovação de boa-fé (histórico de pagamentos, tentativas de negociação prévia).
  • Indicação do mínimo existencial pretendido e justificativa.

Fluxo resumido do tratamento (ilustrativo)

Pedido com documentos Audiência global de conciliação Plano consensual ou análise judicial Homologação e monitoramento

Adapte o fluxo aos protocolos do seu tribunal/Procon e inclua etapas locais de mediação.

Direitos do consumidor e deveres dos fornecedores

Direitos reforçados pelo CDC

  • Informação adequada e clara (CET, taxas, riscos, consequências do atraso).
  • Proteção contra assédio e contratos com cláusulas abusivas.
  • Revisão contratual quando houver onerosidade excessiva ou desequilíbrio.
  • Repactuação com todos os credores preservando o mínimo existencial.
  • Educação financeira e acesso a informação simplificada antes da contratação.

Deveres dos fornecedores

  • Praticar crédito responsável e não estimular endividamento imprudente.
  • Cooperar no procedimento de repactuação, fornecendo dados completos e propostas realistas.
  • Abster-se de práticas agressivas de cobrança e venda casada.
  • Respeitar o plano homologado, ajustando plataformas de cobrança e cadastros.

Pontos controvertidos e boas práticas para casos difíceis

Financiamento habitacional, veículos e garantias reais

Há debate sobre a abrangência desses contratos no plano global. Muitos juízos resguardam o bem essencial (moradia), mas evitam impor reduções compulsórias em contratos com garantias reais já exequíveis. A solução prática costuma ser acomodar parcelas dentro do mínimo existencial e recalibrar encargos acessórios, sem inviabilizar a garantia.

Consignado e assédio a idosos

O crédito consignado — com desconto direto em folha — exige cautela redobrada. A lei coíbe oferta agressiva, telemarketing insistente e contratação sem pedido expresso. Em superendividamento, tribunais têm reordenado descontos, limitado percentuais e exigido transparência sobre portabilidade/refinanciamento.

Fintechs, BNPL e microcrédito digital

Modelos Buy Now, Pay Later e microcrédito instantâneo demandam avaliação de risco mais robusta, pois a facilidade de contratação pode ocultar CET elevado e efeito bola de neve. Boas práticas incluem painéis de dívida total por CPF (com consentimento) e bloqueios automáticos quando o mínimo existencial é ultrapassado.

Checklist — como montar um plano sustentável

  • Calcule o mínimo existencial com base em despesas comprovadas.
  • Ordene dívidas por essencialidade, taxa efetiva e risco.
  • Defina prazo total realista (muitas vezes até 5 anos) e parcela única mensal.
  • Preveja cláusulas de revisão em caso de variação relevante de renda.
  • Exclua seguros embutidos e serviços não solicitados; recalcule o CET.
  • Implemente monitoramento (juízo ou Procon) e canal de suporte ao consumidor.

Educação financeira e reabilitação do crédito

Além do plano, a lei estimula educação financeira e boas práticas de consumo: criar orçamento familiar, priorizar a reserva de emergência, avaliar o CET antes de contratar, evitar créditos rotativos e refinanciamentos múltiplos, e usar a portabilidade para reduzir custo quando comprovadamente vantajosa. Fornecedores podem bonificar adimplência no plano e acelerar a reabilitação do score, gerando incentivos positivos.

Tópicos rápidos para atuação imediata

  • Mapeie todas as dívidas (incluindo as digitais) e pare de contrair novas até fechar o plano.
  • Reúna documentos e procure Procon/Defensoria ou advogado para iniciar a conciliação global.
  • Nas audiências, negocie CET, juros e prazos; registre tudo em ata.
  • Peça suspensão de ações de cobrança e bloqueio de assédio enquanto durar a repactuação.
  • Implemente controle mensal (planilha ou app) e reporte problemas ao juízo/Procon para ajustes do plano.

Conclusão: repactuar com dignidade e prevenir novas dívidas

A Lei do Superendividamento consolidou no Brasil um caminho institucional para restaurar a capacidade de pagamento do consumidor sem destruir sua subsistência. O sucesso depende de três pilares: prevenção (crédito responsável e educação), tratamento (plano global transparente e exequível) e monitoramento (cumprimento fiel, com ajustes quando necessário). Para fornecedores, adotar práticas de concessão responsável reduz inadimplência estrutural e litígios; para o consumidor, planejamento e informação significam recuperar o equilíbrio financeiro com segurança jurídica.

Guia rápido — Superendividamento

  • Definição: ocorre quando o consumidor, de boa-fé, não consegue pagar suas dívidas sem comprometer o mínimo existencial.
  • Base legal: Lei nº 14.181/2021, que alterou o CDC e o Estatuto do Idoso para prevenir e tratar o superendividamento.
  • Princípios: dignidade da pessoa humana, boa-fé, transparência e preservação do mínimo existencial.
  • Dívidas abrangidas: todas as dívidas de consumo contraídas de boa-fé, inclusive bancárias e de serviços contínuos (água, luz, telefone).
  • Dívidas excluídas: pensões alimentícias, indenizações por ilícitos, tributos e dívidas contraídas com má-fé.
  • Procedimento:
    • 1️⃣ Pedido do consumidor para repactuar todas as dívidas.
    • 2️⃣ Audiência global de conciliação com credores.
    • 3️⃣ Plano de pagamento consensual ou imposto judicialmente.
    • 4️⃣ Suspensão temporária das cobranças enquanto durar o processo.
  • Direitos do consumidor:
    • Informação clara e transparente sobre juros e encargos.
    • Proteção contra assédio e publicidade enganosa.
    • Revisão de cláusulas abusivas.
    • Preservação do mínimo existencial.
  • Deveres do fornecedor: conceder crédito responsável, evitar assédio e cooperar na repactuação.
  • Documentos necessários: comprovantes de renda, orçamento familiar, lista de dívidas e histórico de tentativas de negociação.
  • Possibilidades de solução: plano judicial até 5 anos, com parcelamento, redução de juros e limitação de descontos.
  • Educação financeira: promover reabilitação do crédito, criação de reserva e consumo consciente.
  • Órgãos de apoio: Procon, Defensoria Pública, Juizados Especiais e Bancos Centrais para renegociação responsável.
  • Mensagem prática: procure orientação jurídica ou o Procon antes que o endividamento se torne irreversível — a lei oferece mecanismos reais de recomeço com dignidade.

FAQ — Superendividamento (sem acordeão)

O que é superendividamento segundo a lei?

É a situação em que o consumidor, de boa-fé, torna-se incapaz de pagar a totalidade das suas dívidas de consumo — presentes e futuras — sem comprometer o mínimo existencial próprio e da família. A definição foi incorporada ao CDC pela Lei nº 14.181/2021, que criou mecanismos de prevenção e tratamento do endividamento excessivo.

Quais dívidas podem entrar no plano de repactuação?

Em regra, todas as dívidas de consumo assumidas de boa-fé: cartão de crédito, CDC/financiamentos, cheque especial, lojas, serviços essenciais (água, luz, telecom) e contratos bancários. Ficam fora, normalmente, pensão alimentícia, indenizações por ilícito doloso, tributos e obrigações de luxo ou contraídas com má-fé. O juiz avalia caso a caso.

Como funciona o procedimento judicial de tratamento?

O consumidor apresenta pedido com documentos (renda, orçamento, lista de dívidas e CET). O juízo designa audiência global com todos os credores para buscar um plano consensual. Se não houver consenso, pode ser aprovado plano judicial compulsório, com prazos (muitas vezes até 5 anos), preservando o mínimo existencial e reordenando encargos. Execuções e cobranças podem ser suspensas durante a negociação.

O que é “mínimo existencial” e como é calculado?

É a parcela de renda que deve permanecer livre para assegurar moradia, alimentação, saúde, educação e transporte essenciais. A lei não fixa um valor único: o cálculo é concreto, com base em provas de despesas e parâmetros locais. O plano só é válido se resguardar esse patamar.

Quais são os direitos do consumidor na fase de prevenção?

O fornecedor deve praticar crédito responsável, fornecer informação clara do CET, evitar assédio (especialmente a idosos/vulneráveis), coibir venda casada e permitir reflexão antes da contratação. Cláusulas abusivas podem ser afastadas e contratos, revistos quando houver desequilíbrio.

Consignado entra no plano? E os descontos em folha?

Sim, pode entrar, desde que preservado o mínimo existencial. Tribunais têm autorizado reordenação de percentuais e a limitação de descontos para viabilizar o plano global, com transparência sobre refinanciamentos e portabilidade.

O que acontece com o “nome sujo” e as cobranças durante o processo?

O juiz pode determinar suspensão de cobranças/execuções das dívidas englobadas e ajustes em cadastros enquanto se negocia o plano. Após a homologação e o cumprimento, os registros devem refletir a situação regularizada.

Quais documentos preciso juntar para iniciar?

Comprovantes de renda, orçamento familiar detalhado, lista de dívidas com saldos, taxas e CET, histórico de pagamentos e tentativas de negociação, e proposta inicial de mínimo existencial com justificativa.

O plano pode reduzir juros e alongar prazos?

Sim. O objetivo é viabilizar o pagamento sem sacrificar a subsistência. É comum prever redução de encargos, parcelamento e ordem de prioridades entre credores, desde que haja boa-fé e que o conjunto seja executável.

Quais erros mais atrapalham o pedido?

Ocultar dívidas, contrair novas obrigações durante a negociação, não comprovar despesas essenciais, propor plano inexequível e não apresentar documentação completa. Boa-fé e transparência são indispensáveis.


Base técnica (fontes legais)

  • Lei nº 14.181/2021 — altera o CDC e o Estatuto do Idoso; institui prevenção e tratamento do superendividamento.
  • Código de Defesa do Consumidor (arts. 4º, 6º, 39, 51, 54-A a 54-G, 104-A e 104-B — repactuação global, audiência com credores e preservação do mínimo existencial).
  • Princípios: dignidade da pessoa humana, boa-fé objetiva, transparência, função social do crédito e proteção contra assédio.
  • Atos e enunciados locais de Tribunais/Procons/Defensorias (procedimentos de mediação e parâmetros do mínimo existencial).

Aviso importante

Este material tem caráter informativo e educacional. Apesar de baseado no CDC e na Lei nº 14.181/2021, ele não substitui a avaliação individualizada de um(a) profissional qualificado(a). Cada caso exige análise de documentos, renda, mínimo existencial e negociações específicas com credores, preferencialmente com apoio do Procon, da Defensoria Pública ou de advogado(a) de sua confiança.

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