Sociedade em Conta de Participação (SCP): como funciona, quem responde e quando usar
Conceito e posição da SCP no sistema societário brasileiro
A Sociedade em Conta de Participação (SCP) é uma forma societária atípica, disciplinada no Código Civil brasileiro, em que a atividade constitutiva do objeto é exercida exclusivamente por um dos sócios, chamado sócio ostensivo, em seu próprio nome e sob sua inteira responsabilidade perante terceiros. Os demais sócios – os participantes – não aparecem ao mercado: contribuem com capital, bens, créditos, know-how ou serviços e partilham os resultados de acordo com o contrato, mantendo-se na esfera interna do empreendimento.
Trata-se de uma sociedade sem personalidade jurídica (não nasce um novo sujeito de direito na perspectiva civil), sem firma social e, em regra, sem registro público. O contrato pode ser sigiloso e provar-se por quaisquer meios admitidos em direito. Essa estrutura explica o nome “conta de participação”: na contabilidade do ostensivo, a SCP funciona como uma conta segregada na qual se acumulam receitas, despesas, ativos e passivos do negócio comum, para que se apurem resultados e se façam prestações de contas aos participantes.
Essência A SCP é um arranjo contratual para conduzir um empreendimento comum com exposição externa única (do ostensivo), preservando a confidencialidade dos investidores participantes e distribuindo resultados conforme regras privadas.
Sujeitos e responsabilidades: quem faz o quê
Sócio ostensivo
É a face pública da SCP. Assume negociações, firma contratos, emite notas e responde ilimitadamente perante terceiros, como se o negócio fosse apenas seu. Por isso, é comum que o ostensivo seja uma pessoa jurídica já operacional – uma empresa que domina o setor e empresta estrutura, reputação e equipe para executar o empreendimento. Internamente, o ostensivo deve prestar contas periódicas, guardar segregação contábil e seguir os limites definidos no contrato (alçadas, orçamento, relatórios, auditoria).
Sócio participante
Investe e compartilha resultados, mas não se relaciona com terceiros. Sua responsabilidade diante do mercado é, em princípio, inexistente; se, porém, o participante intervém diretamente nas tratativas externas (assinando, negociando, publicizando a SCP como “sócio”), pode tornar-se solidariamente responsável pelo que praticar – motivo pelo qual contratos costumam conter cláusulas de não intervenção combinadas com direitos de informação e veto sobre temas críticos.
Direitos típicos do participante
- Participar dos lucros na proporção da contribuição (ou segundo fórmula ajustada).
- Fiscalizar por meio de relatórios, auditorias e acesso a documentos.
- Vetar atos estratégicos previamente definidos (endividamento além do orçamento, alienação de ativos-chave).
- Retirar-se em eventos gatilho (mudança de controle do ostensivo, descumprimento grave, frustração do objeto).
Deveres do ostensivo
- Executar o objeto com diligência, dentro do orçamento e do escopo aprovados.
- Manter contabilidade segregada da SCP, inclusive centros de custo e conciliações.
- Prestar contas periódicas, com indicadores, notas e lastros.
- Guardiar confidencialidade e cumprir a política de riscos acordada.
Natureza jurídica, contabilidade e tributação (visão prática)
No plano civil, a SCP permanece um contrato sem personalidade. No plano empresarial e fiscal, a prática de mercado e normas administrativas exigem que o ostensivo mantenha escrituração própria para a SCP, muitas vezes com CNPJ específico para o empreendimento, permitindo emissão de documentos fiscais e apuração de tributos. Em geral, a SCP é equiparada a pessoa jurídica para fins tributários e apura IRPJ, CSLL, PIS/COFINS conforme o regime escolhido/permitido, com responsabilidade operacional do ostensivo. A distribuição de resultados ao participante segue as regras de lucro e a documentação contábil precisa (balancetes, atas de deliberação, recibos).
Do ponto de vista de compliance, a mensagem é direta: a ausência de personalidade e de registro público não autoriza informalidade. Sem controles, a SCP degrada em caixa paralelo do ostensivo, acumulando riscos de litígios, autuações e perda de confiança entre os sócios.
Checklist de conformidade: (i) contrato detalhado; (ii) matriz de aprovações e orçamento; (iii) contabilidade segregada (centros de custos, contas bancárias dedicadas, notas fiscais vinculadas); (iv) relatórios periódicos; (v) regras de distribuição; (vi) mecanismos de resolução de disputas (mediação e arbitragem); (vii) política de conflitos de interesse.
Vantagens e riscos: quando a SCP faz sentido
- Confidencialidade dos participantes e das condições do investimento.
- Rapidez: não exige registro público para existir.
- Flexibilidade contratual para distribuir riscos e resultados.
- Alavancagem da estrutura do ostensivo (equipe, licenças, contratos).
- Responsabilidade externa concentrada no ostensivo.
- Descaracterização se participante aparecer perante terceiros.
- Conflitos por informação assimétrica e governança pobre.
- Fiscalização limitada se as prestações de contas forem fracas.
- SPE Ltda./S.A. quando se deseja personalidade própria e blindagem.
- Consórcio (sem personalidade e com exposição de todos perante terceiros).
- Joint venture contratual genérica (menos padronizada que a SCP).
Gráfico: papéis e fluxos em uma SCP típica
Estrutura contratual: cláusulas que não podem faltar
- Defina atividades, território e marcos temporais (início, término, extensão).
- Vincule a extinção à finalização do empreendimento ou a gatilhos (inadimplemento, mudança de controle, evento regulatório).
- Detalhe aportes (dinheiro, bens, serviços), cronograma e valoração.
- Preveja mecanismo de distribuição (waterfall, prioridade, retorno preferencial, carry).
- Alçadas do ostensivo e direitos de veto do participante em assuntos-chave.
- Calendário de prestações de contas, auditoria e métricas.
- Política de seguros, garantias e compliance.
- Cláusula de não intervenção externa do participante, com exceções controladas.
- Regras de retirada, apuração de haveres, tag/drag se houver cessão de posição.
- Procedimentos de liquidação (apuração do resultado, ordem de pagamentos, guarda de documentos).
- Mediação e arbitragem com sede e regulamento definidos.
- Cláusula de confidencialidade com penalidades e exceções legais.
Exemplos práticos de uso da SCP
1) Desenvolvimento imobiliário específico
Um incorporador (ostensivo) celebra SCP com três investidores (participantes) para fazer o retrofit de um edifício comercial, explorando a venda das unidades. O ostensivo aporta equipe técnica, licenças e relacionamento com fornecedores; os participantes aportam capital escalonado. O orçamento prevê gatilhos de chamada e limites de dívida. Ao final, os lucros são distribuídos conforme um waterfall: primeiro, devolução do capital aportado; depois, um retorno preferencial aos participantes; e, finalmente, o carry do ostensivo como incentivo de performance. Vantagens: sigilo sobre os investidores e agilidade para operar. Riscos: concentração de responsabilidade no ostensivo e necessidade de controles robustos para evitar disputas de custo.
2) Produção audiovisual
Produtora (ostensiva) e marca patrocinadora (participante) firmam SCP para coproduzir uma série. A produtora conduz contratações, direitos autorais e logística; a marca participa do planejamento e tem direitos de veto sobre uso da imagem. Receitas de licenciamento compõem a conta da SCP e são partilhadas por janelas (TV aberta, streaming, internacional). Em razão do alto risco e da dificuldade de prever receitas, estabelece-se auditoria independente e data room atualizado.
3) E-commerce experimental
Uma varejista tradicional (ostensiva) testa um marketplace nichado com um desenvolvedor de plataforma (participante). O participante aporta tecnologia e recebe uma parcela das receitas durante 24 meses, com opção de conversão em contrato de longo prazo. A SCP permite aprender com o piloto, sem alterar a estrutura societária da varejista nem expor o parceiro diante de fornecedores estratégicos.
4) Agronegócio com ciclo curto
Trading (ostensiva) e investidores (participantes) compõem SCP para financiar uma janela de compra e revenda de café. O contrato limita alavancagem, define hedge mínimo e estabelece gatilho de stop-loss. As margens por lote são reportadas quinzenalmente; a liquidação ocorre ao fim da safra.
Quadros informativos
Quando preferir SCP
- Projeto com duração definida e dependente da estrutura do ostensivo.
- Necessidade de confidencialidade sobre investidores e condições.
- Desejo de rápida implantação sem abrir nova pessoa jurídica.
Quando evitar
- Empreendimentos com grande passivo regulatório ou alto endividamento.
- Cenários que exigem blindagem patrimonial de todos perante terceiros.
- Operações com necessidade de financiamentos bancários complexos (que preferem SPE).
Documentos essenciais
- Contrato da SCP (objeto, governança, contas, distribuição, saídas).
- Política de compliance e conflitos de interesse.
- Plano de negócios e orçamento aprovado.
- Registros contábeis segregados e balancetes.
Modelos de cláusulas (trechos exemplificativos)
Cláusula de não intervenção externa
Não intervenção. O Participante não praticará atos perante terceiros em nome da SCP ou do Ostensivo, salvo autorização escrita. Qualquer atuação externa implicará responsabilidade exclusiva do interveniente, sem prejuízo de rescisão e perdas e danos.
Cláusula de prestação de contas e auditoria
Contas e auditoria. O Ostensivo manterá escrituração segregada da SCP, com centros de custo, contas bancárias dedicadas e controles de notas. Enviará balancetes mensais, DRE e fluxo de caixa projetado. O Participante poderá realizar auditoria independente uma vez por ano ou quando houver indícios objetivos de irregularidade.
Cláusula de distribuição (waterfall)
Distribuição de resultados. Os resultados positivos serão distribuídos nesta ordem: (i) devolução do capital aportado pelos Participantes; (ii) retorno preferencial anual de [x]% sobre o saldo de capital; (iii) partilha do excedente na proporção [y]% Participantes / [z]% Ostensivo (carry).
Erros comuns e como preveni-los
- Contrato lacônico: gera incerteza sobre poderes, despesas reembolsáveis e métricas. Solução: checklists e anexos técnicos (orçamento, cronograma, KPIs).
- Participante aparecendo perante fornecedores: risco de responsabilidade solidária. Solução: treinar equipes e padronizar comunicações.
- Contabilidade misturada: dificulta apuração de resultados e atrai litígios. Solução: contas bancárias dedicadas, centro de custos e auditoria.
- Saídas mal desenhadas: travam o empreendimento em crises. Solução: cláusulas de buy-out, liquidação escalonada e prazo de cura para inadimplementos.
Linhas de comparação: SCP x SPE x Consórcio
Roteiro de implantação em 10 passos
- Definir o objeto e a tese econômica (tamanho, riscos, retorno).
- Escolher o ostensivo (capaz, auditável, com capacidade operacional).
- Mapear participantes, perfis e aportes.
- Negociar governança, direitos de veto e alçadas.
- Construir orçamento, KPIs e cronograma.
- Minutar o contrato e anexos (plano, política de riscos, compliance).
- Preparar estrutura contábil e fiscal segregada; se necessário, CNPJ.
- Assinar, abrir contas e iniciar operações.
- Executar prestações de contas periódicas e auditorias.
- Encerrar com apuração de haveres, liquidação e arquivo documental.
Conclusão
A Sociedade em Conta de Participação é um instrumento versátil para viabilizar projetos com agilidade e sigilo, aproveitando a estrutura do ostensivo e atraindo capital e competências dos participantes. Seu ganho está na flexibilidade contratual; seu risco, na assimetria de informações e na responsabilidade externa concentrada. Uma SCP bem-sucedida exige contrato robusto, contabilidade segregada, prestação de contas rigorosa e governança clara. Quando essas peças se encaixam, a SCP entrega o que promete: rapidez para começar, foco no projeto e distribuição eficiente do resultado entre quem opera e quem investe.
Perguntas frequentes sobre Sociedade em Conta de Participação (SCP)
O que é uma SCP e onde está prevista?
É uma sociedade não personificada, em que a atividade é exercida exclusivamente pelo sócio ostensivo, em seu nome e responsabilidade, com participação de um ou mais sócios participantes que não se apresentam a terceiros. Regras principais: arts. 991 a 996 do Código Civil.
Quem responde perante terceiros?
Somente o ostensivo contrata e responde perante o mercado. O participante, como regra, não tem responsabilidade externa, salvo se intervier ostensivamente nas relações com terceiros, hipótese em que poderá responder pelos atos que praticar.
A SCP precisa de registro ou tem personalidade jurídica?
Não. A SCP não possui personalidade jurídica e, para existir, dispensa registro público. O contrato pode ser sigiloso e prova-se por quaisquer meios admitidos em direito.
Como funciona a contabilidade e a prestação de contas?
O ostensivo deve manter escrituração segregada da SCP (conta de participação), com registros de receitas, despesas, ativos e passivos, e prestar contas aos participantes nos prazos contratuais. Em caso de conflito, cabe ação de prestação de contas no Judiciário.
Como se dá a distribuição de lucros e os aportes?
Conforme o contrato da SCP. É comum adotar mecanismos de waterfall (devolução de capital, retorno preferencial, partilha do excedente) e cronogramas de chamadas de capital. Documentos contábeis devem embasar qualquer distribuição.
O participante pode aparecer para clientes e fornecedores?
Não é recomendado. A intervenção externa pode gerar responsabilidade solidária pelos atos praticados. Use cláusula de não intervenção e padronize comunicações para evitar risco de descaracterização.
É possível obter CNPJ para a SCP?
Sim, para fins fiscais/operacionais, muitas SCPs são inscritas em CNPJ e equiparadas a pessoa jurídica para apuração de tributos (IRPJ, CSLL, PIS/COFINS), permanecendo, no plano civil, como sociedade não personificada.
Quais são os eventos de dissolução mais comuns?
Conclusão do objeto, falência/insolvência do ostensivo (com apuração de haveres dos participantes), vencimento do prazo, distrato por comum acordo ou resolução por descumprimento grave.
Quais vantagens e riscos práticos da SCP?
Confidencialidade • Rapidez de implementação • Flexibilidade contratual • Aproveitamento da estrutura do ostensivo.
Responsabilidade concentrada no ostensivo • Informação assimétrica • Fiscalização limitada se o contrato for lacônico • Risco de descaracterização pela intervenção do participante.
Em quais situações a SCP é mais usada?
Projetos com prazo e escopo definidos em que se deseja sigilo e agilidade: incorporação/retrofit imobiliário, safra e trading, coprodução audiovisual, pilotos de e-commerce, parcerias tecnológicas com divisão de receitas.
Base técnica – principais referências legais
- Código Civil – arts. 991 a 996 (natureza, prova do contrato, atuação exclusiva do ostensivo, responsabilidade perante terceiros, escrituração e efeitos em caso de falência).
- Contabilidade/tributos – equiparação da SCP a pessoa jurídica para fins fiscais e possibilidade de CNPJ, com apuração de IRPJ, CSLL, PIS/COFINS conforme regime aplicável.
- Processo civil – prestação de contas como via para fiscalização dos participantes quando houver controvérsia contábil.
- Compliance – boas práticas de segregação contábil, relatórios e auditoria para reduzir riscos de litígio e autuação.