Crimes Ambientais: Como Funciona a Responsabilidade Penal de Empresas e Gestores no Brasil
Responsabilidade penal por crimes ambientais: fundamentos, sujeitos, elementos de imputação e estratégias de prevenção
A responsabilização penal por crimes ambientais no Brasil foi estruturada para dar efetividade ao mandamento constitucional de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (CF, art. 225). O §3º desse dispositivo estabelece que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas e jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos. A disciplina infraconstitucional está principalmente na Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), complementada por normas de processo penal, regras do Código Penal e, no campo administrativo, pelo Decreto 6.514/2008, entre outros diplomas setoriais (florestal, fauna, pesca, recursos hídricos, mineração, unidades de conservação, licenciamento etc.).
Embora o direito ambiental admita a responsabilidade civil objetiva pela teoria do risco integral, a esfera penal continua regida pelos princípios da legalidade, tipicidade, culpabilidade e pessoalidade, impondo-se a demonstração de conduta típica, ilícita e culpável, além do nexo causal (ou dever jurídico de agir nos crimes omissivos impróprios). A dificuldade prática costuma residir na identificação do sujeito responsável dentro de estruturas empresariais, na interface com o licenciamento e na prova do resultado ou perigo relevante ao bem jurídico.
Arquitetura normativa e categorias de crimes ambientais
Lei 9.605/1998: estrutura por núcleos de proteção
Os tipos penais da Lei 9.605/1998 distribuem-se em eixos temáticos: crimes contra a fauna (ex.: art. 29 — matar, perseguir, caçar, apanhar espécimes sem autorização; art. 32 — maus-tratos), crimes contra a flora (arts. 38 a 50-A — destruir/danificar floresta de preservação permanente, cortar árvores em APP, impedir regeneração natural, fabricar, comercializar ou usar motosserra sem licença, etc.), poluição e outros crimes ambientais (art. 54 — poluir de forma a resultar em danos à saúde humana, mortandade de animais ou destruição significativa da flora; art. 56 — fabricar, comercializar, transportar substâncias perigosas sem observância de exigências; art. 60 — exercer atividade potencialmente poluidora sem licença), além de crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (arts. 62 a 65) e crimes contra a administração ambiental (arts. 66 a 69-A — informações falsas, dificultar fiscalização, obstar ação integrante do SISNAMA).
Elementos objetivos e subjetivos
Grande parte dos crimes ambientais tem estrutura de perigo abstrato ou concreto. No art. 54 (poluição), o caput exige resultado de dano relevante ou risco concreto grave, enquanto os parágrafos preveem formas qualificadas pelo resultado (lesão corporal grave, morte). Muitos tipos admitem a forma culposa (§2º do art. 54) e, em outras hipóteses, exige-se dolo (vontade consciente) — p. ex., manter atividade potencialmente poluidora sem licença (art. 60) quando o agente conhece a necessidade do licenciamento e, conscientemente, se furta a obtê-lo.
Responsabilidade penal da pessoa jurídica e a superação da “dupla imputação”
Sujeito ativo: pessoa física e pessoa jurídica
O art. 3º da Lei 9.605/1998 consagra a responsabilidade penal da pessoa jurídica quando o crime é cometido por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da entidade. O STF (RE 548.181/PR) consolidou o entendimento de que não é necessária a “dupla imputação” (processar a PJ apenas se também processada pessoa física). Ainda que pessoas naturais não sejam identificadas, a PJ pode ser responsabilizada desde que haja prova de que a conduta derivou de decisão institucional, orientada por política, tolerância ou cultura de descumprimento.
Sanções aplicáveis às pessoas jurídicas
As penas para PJ não são privativas de liberdade. A lei prevê multas, restritivas de direitos (suspensão parcial/total de atividades; interdição de estabelecimento, obra ou atividade; proibição de contratar com o Poder Público; perda/suspensão de linhas de financiamento oficiais), prestação de serviços à comunidade (como custear programas ambientais ou obras de recuperação) e, em casos extremos, a liquidação forçada com perda do patrimônio para o Fundo Penitenciário Nacional (art. 24). A decisão deve demonstrar proporcionalidade, capacidade econômica, gravidade do fato e histórico sancionatório.
Responsabilidade penal das pessoas físicas: autores, partícipes e dirigentes
Crimes comissivos e omissivos impróprios
Na esfera individual, responde quem pratica o verbo nuclear do tipo ou quem, tendo dever legal de agir para evitar o resultado (dever de garante — art. 13, §2º, CP), se omite de forma relevante. Em empresas, o dever de garante pode recair sobre o diretor de operações, o responsável técnico, o gestor ambiental ou o síndico da massa em determinada usina. A imputação por omissão exige: (i) posição de garante por lei, contrato ou ingerência; (ii) possibilidade concreta de agir para evitar o resultado; (iii) previsibilidade e evitabilidade.
Diretores, prepostos e o problema do domínio do fato
É frequente a denúncia contra “todos os diretores” em eventos de poluição. A jurisprudência vem exigindo lastro probatório individualizado, não bastando invocar a posição hierárquica. O critério útil é o domínio do fato (ou competência funcional) sobre a atividade de risco: quem define a política ambiental, aprova dispêndios de controle, determina manutenção de barragens, licencia emissões, etc. Sem nexo funcional e sem possibilidade de evitação, a imputação tende a ser rechaçada.
Licenciamento, conformidade regulatória e tipicidade
Art. 60 (ausência de licença) e o papel do risco
Exercer atividade potencialmente poluidora sem licença ou em desacordo com a licença caracteriza crime formal. A defesa costuma discutir a tipicidade quando há pedido de renovação em curso, alvará provisório, autorização tácita ou fato do príncipe (morosidade estatal). Nessas hipóteses, a avaliação do dolo e da ilicitude material é central: se a empresa demonstrar engajamento diligente para licenciar e cumprir condicionantes, pode-se afastar a tipicidade ou reconhecer redução da reprovabilidade com medidas despenalizadoras.
Condição de degradabilidade e os crimes de poluição
No art. 54, a prova pericial é decisiva: medição de DBO/DQO, metais pesados, pH, vazão, toxicidade e correlação causal com a fonte. Perigo abstrato não basta quando o tipo requer resultado danoso relevante ou risco concreto. O laudo deve indicar superação de padrões legais, existência de nexo e significância do dano. O princípio da precaução, valioso em política pública, não substitui a prova típica e o juízo de culpabilidade no processo penal.
Medidas penais negociais e alternativas
Transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal
Como muitos crimes ambientais possuem pequena ou média potencialidade ofensiva, cabem instrumentos de justiça consensual: transação penal e suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1995), além do acordo de não persecução penal (ANPP, art. 28-A do CPP). Nesses pactos, obrigações ambientais (recompor áreas degradadas, executar PRAD, custear projetos de preservação, modernizar ETE/ETA) podem ser ajustadas com participação do órgão ambiental. Para PJ, a negociação costuma vincular-se a programas de integridade ambiental, auditoria independente e monitoramento por período.
Concorrência de esferas: penal, administrativa e civil
Independência e comunicação entre instâncias
As esferas são independentes (CF, art. 225, §3º), mas comunicáveis em certos aspectos: a licitude ou ilicitude administrativa (licença válida) pode repercutir no dolo/culpa; a condenação penal pode facilitar a prova na ação civil; o auto de infração pode instruir a notícia-crime. A absolvição penal por inexistência do fato ou negativa de autoria influencia a esfera civil/administrativa, enquanto absolvições por insuficiência de provas nem sempre geram efeitos automáticos.
Competência, investigação e prova
Quem julga e quem investiga
A competência é, em regra, da Justiça Estadual. Será da Justiça Federal quando o crime atingir bens, serviços ou interesses da União (ex.: IBAMA, unidades de conservação federais, mar territorial, terras indígenas) ou envolver autarquia federal em fiscalização. A investigação pode ser conduzida pela Polícia Civil, Polícia Federal (em hipóteses federais) ou Ministério Público, com apoio de órgãos ambientais do SISNAMA. Perícias oficiais e independentes são cruciais, assim como cadeia de custódia de amostras.
Dosimetria da pena e critérios de política criminal
Multas, substitutivas e penas restritivas
Para pessoas físicas, a pena privativa de liberdade costuma ser substituída por restritivas de direitos (prestação de serviços, limitação de fim de semana) quando preenchidos os requisitos do CP, privilegiando-se a reparação do dano e a readequação de processos produtivos. Para PJ, a gradação da multa considera porte, culpa e vantagem auferida. A publicação de sentença condenatória em meios de grande circulação é sanção pedagógica relevante para inibir “greenwashing”.
Tipo | Artigo | Elemento central | Observações |
Poluição | 54 | Dano relevante ou risco grave à saúde/biota | Formas culposas e qualificadas por resultado |
Atividade sem licença | 60 | Exercício sem licença/autorização | Crime formal; atenção a renovação em curso |
Maus-tratos a animais | 32 | Submeter animal a crueldade | Lei 14.064/2020 agravou quando cão/gato |
Danos a APP/UC | 38/40/40-A | Destruir/impedir regeneração | Consulta a plano de manejo e zoneamento |
Jurisprudência orientadora
Pessoa jurídica sem dupla imputação; compliance e culpabilidade
O STF, no RE 548.181/PR, reconheceu que a PJ pode ser processada e condenada independentemente da imputação simultânea à pessoa física, desde que demonstrada a decisão empresarial no interesse ou benefício da entidade. O STJ tem reiterado que meras irregularidades administrativas não basteiam o crime do art. 54 quando ausentes dano relevante ou risco concreto. Por outro lado, o exercício de atividade sem licença (art. 60) não exige resultado danoso, mas pressupõe dolo (consciência da necessidade de licença). Empresas com programa robusto de compliance ambiental, auditorias internas e mecanismos de resposta a incidentes têm maior êxito em demonstrar ausência de culpabilidade organizacional ou em obter soluções negociais proporcionais.
Integração com políticas ESG e governança ambiental
Prevenção como melhor defesa
Para além do contencioso, a melhor política penal é a prevenção. Programas ESG com mapa de riscos ambientais, procedimentos operacionais padrão, licenciamento em dia, gestão de resíduos, planos de emergência (PGR, PAEBM, PAE), monitoramento contínuo de efluentes/emissões e canal de denúncias fortalecem a cultura de conformidade. Treinamentos periódicos, metas de redução e registros auditáveis materializam o dever de cuidado e reduzem a probabilidade de eventos típicos.
- Inventário de obrigações legais por planta/atividade (licenças, outorgas, autorizações, condicionantes).
- Procedimentos para gestão de incidentes e comunicação imediata ao órgão ambiental.
- Plano de manutenção preditiva de ETE/ETA e sistemas de contenção; registros com rastreabilidade.
- Auditorias internas e externas (amostragem, cadeia de custódia, comparativo com normas técnicas).
- Conselho/Comitê com papel de supervisão e minutas de decisão (trilha de accountability).
Estudos de caso didáticos
1) Vazamento de efluente com mortandade de peixes
Indústria sofre falha em bomba de equalização e lança efluente sem tratamento, causando mortandade. Tipificação provável: art. 54, caput, com possibilidade de forma culposa (§2º) se evidenciada negligência. Provas-chave: perícia de campo, séries históricas de monitoramento, manutenção programada. Defesa: demonstração de plano de emergência acionado, ações de mitigação, colaboração e reparação rápida (acordo/ANPP).
2) Obra com supressão de vegetação em APP sem autorização
Empreiteira abre acesso em encosta de APP. Tipificação: art. 38 (destruir ou danificar floresta de preservação permanente). Elementos: laudo de caracterização, georreferenciamento, fotos, checagem de licenças. Estratégia: regularização ambiental possível? Se não, recomposição e medidas compensatórias no bojo de instrumento negocial.
Indicadores e “gráfico” didático de sanções
GRÁFICO CONCEITUAL — Intensidade relativa de sanções
Advertência/Obrigações de Fazer
Multa/Pena Restritiva (PF)
Interdição/Suspensão (PJ)
Liquidação Forçada (PJ)
Escala qualitativa para fins pedagógicos; a dosimetria concreta depende da lei e das circunstâncias do caso.
Prescrição, concurso de crimes e aspectos processuais
Prescrição
A prescrição penal segue as regras do Código Penal, com prazos conforme a pena máxima em abstrato e marcos interruptivos (recebimento da denúncia, sentença condenatória etc.). Em crimes permanentes (ex.: manutenção irregular continuada), o termo inicial pode se protrair no tempo até a cessação da permanência, afetando o cálculo.
Concurso de crimes e concurso formal
Uma mesma conduta pode violar múltiplos tipos (ex.: poluição e dano à UC). Avalia-se concurso material, formal ou crime único com resultado qualificado. Condutas de falsidade para obter licença (art. 69-A) frequentemente aparecem em concurso com o núcleo ambiental.
Boas práticas defensivas e de acusação
Para a Defesa
- Exigir laudo pericial completo (pontos de coleta, cadeia de custódia, incerteza de medição, norma técnica). Se necessário, pedir contraprova por perito assistente.
- Demonstrar compliance ambiental, medidas de prevenção e resposta imediata, treinamentos, investimentos e parada de risco.
- Mapear nexo causal alternativo (fontes concorrentes, cheias, eventos naturais) e discutir tipicidade material quando cabível.
- Negociar ANPP/sursis processual com obrigações ambientais úteis, com cronograma e auditoria.
Para a Acusação/Órgãos ambientais
- Produzir prova ambiental cientificamente robusta; documentar perigo concreto/dano quando exigido.
- Evidenciar decisão empresarial (atas, e-mails, planos) para responsabilizar PJ, evitando denúncias genéricas.
- Priorizar medidas que reparem o dano e previnam reincidência, inclusive por justiça negocial com monitoramento.
Conclusão
A responsabilidade penal por crimes ambientais é peça indispensável na tutela do meio ambiente, mas deve operar com rigor técnico, respeitando as garantias penais e processuais. O sistema brasileiro permite sancionar pessoas físicas e jurídicas, exige prova qualificada de tipicidade e culpabilidade, e valoriza medidas restaurativas e de compliance. Empresas que integram a agenda ESG, mantêm licenças válidas, monitoram riscos e reagem prontamente a incidentes reduzem drasticamente sua exposição penal. Para o poder público, a prioridade deve ser investigar com padrões científicos, articular esferas (penal, civil, administrativa) e orientar soluções que reparem, compensem e previnam danos ambientais, garantindo que a responsabilização seja ao mesmo tempo efetiva e justa.