Direito médico e da saúde

Responsabilidade Civil em Tratamentos Alternativos: quando o terapeuta pode ser punido

Responsabilidade civil por tratamentos alternativos: limites, riscos e deveres do profissional

Os tratamentos alternativos, complementares ou integrativos (como fitoterapia, aromaterapia, florais, reiki, quiropraxia, ventosaterapia, acupuntura quando feita fora dos protocolos médicos, práticas de cura energética, entre outros) ocupam hoje um espaço real na busca dos pacientes por bem-estar e por opções menos invasivas. Muitos pacientes chegam a esses métodos depois de frustrações com a medicina convencional, por medo de efeitos colaterais, por crenças espirituais ou por indicação de amigos e influenciadores. Esse fenômeno é legítimo do ponto de vista social, mas ele não suspende o regime jurídico de proteção à saúde nem elimina o dever de indenizar quando o paciente sofre dano porque foi mal orientado, mal atendido ou desestimulado a buscar o tratamento convencional.

No Brasil, a responsabilidade civil não depende do nome do tratamento, mas do dano causado e do nexo com a conduta do agente. Isso significa que tanto um médico que usa terapia complementar quanto um terapeuta não médico, um influencer ou uma clínica de estética podem ser responsabilizados se: (i) indicarem método sem evidência para doença grave; (ii) fizerem o paciente abandonar tratamento necessário; (iii) omitirem riscos e contraindicações; (iv) venderem o procedimento como “cura certa”; ou (v) aplicarem técnica sem formação e sem ambiente seguro. O fundamento é sempre o mesmo: arts. 186 e 927 do Código Civil – quem causa dano a outrem, por ação ou omissão culposa ou dolosa, fica obrigado a repará-lo.

A particularidade dos tratamentos alternativos é que, muitas vezes, não há protocolo científico consolidado para comprovar eficácia e risco. Nesses casos, o dever de informação fica ainda mais rigoroso. O profissional sério precisa dizer ao paciente: “este método é complementar”, “não substitui o que o seu médico passou”, “a evidência é limitada”, “há relatos de melhora, mas não é tratamento de escolha”. Quando isso não é dito, o que se tem é defeito de informação – e o defeito de informação, no direito brasileiro, é gatilho de responsabilidade.

QUADRO INFORMATIVO – QUANDO O RISCO JURÍDICO AUMENTA

  • Quando o profissional diz que o tratamento alternativo substitui quimioterapia, antibiótico, insulinoterapia ou cirurgia;
  • Quando o paciente é induzido a interromper acompanhamento médico ou fisioterápico;
  • Quando o tratamento é vendido como “100% natural, logo sem risco”;
  • Quando há cobrança elevada sem entrega de documento, termo ou recibo;
  • Quando o método é aplicado por pessoa sem habilitação ou sem registro na profissão que está sendo invocada.

Natureza da responsabilidade: subjetiva, objetiva ou do serviço?

Em regra, os profissionais liberais respondem de forma subjetiva (art. 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor): é preciso provar culpa. Mas o contexto dos tratamentos alternativos costuma aproximar o caso da responsabilidade objetiva por defeito do serviço, pois frequentemente há uma relação de consumo – o paciente é consumidor, a clínica ou o terapeuta é fornecedor. Se a oferta do serviço é enganosa (“cura em 30 dias”, “reverte autismo”, “cura câncer com alimentação”; “substitui hemodiálise”; “desinflama órgãos em 24 horas”), pode-se enquadrar no CDC, tornando a defesa mais difícil, porque bastará demonstrar publicidade enganosa e dano.

Quando o tratamento alternativo é oferecido dentro de uma clínica médica, com CNPJ da área da saúde, recepção, site, redes sociais e cards de divulgação, o padrão que o Judiciário espera é de medicina baseada em evidências. Se a clínica oferece um método que não tem respaldo e isso causa prejuízo ao paciente (como atraso no diagnóstico, piora do tumor, lesão cutânea por produto natural, intoxicação por chás ou óleos), abre-se espaço para reconhecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica com base no art. 14 do CDC.

Já quando o tratamento é prestado por pessoa que se apresenta como “terapeuta holístico”, “terapeuta energético”, “coach de cura natural” ou semelhante, o juiz vai analisar se houve aparência de profissional habilitado. Se houve – se o ambiente parecia clínica, se usou jaleco, se exibiu certificados, se falou em parceria com médicos – então é bastante provável que o julgador aplique o mesmo padrão de cuidado da área da saúde. Em outras palavras: não adianta se esconder atrás do rótulo de “alternativo” se o que foi feito foi, na prática, atendimento de saúde.

Dever de informação reforçado e consentimento esclarecido

O ponto mais sensível da responsabilidade civil por tratamentos alternativos é o dever de informação. Em medicina clássica, o profissional já precisa informar riscos, benefícios e alternativas. Em terapia sem comprovação robusta, essa obrigação é maior e mais minuciosa, porque o paciente precisa saber que está saindo da rota da evidência.

Por isso, é recomendável – e muitos juízes consideram isso uma boa prática – usar termo de consentimento informado específico, com linguagem clara, dizendo:

  • que o método é complementar, não substitutivo;
  • que o paciente deve manter acompanhamento médico convencional;
  • que os resultados podem variar e não há garantia;
  • que há riscos (alergia, dor, atraso no tratamento, interação com remédios, contaminação);
  • que o paciente foi orientado a procurar serviço de urgência se houver piora.

Se esse termo não existe e o profissional apenas “conversou” com o paciente, fica mais fácil alegar que houve falha no dever de informar. E, em responsabilidade civil médica e de saúde, quando há falha na informação, o ônus costuma pender a favor do paciente.

QUADRO INFORMATIVO – ELEMENTOS MÍNIMOS DO TERMO

• Identificação do tratamento e do profissional;

• Finalidade do método e limitação de resultados;

• Informação de que o método é não exclusivo e não substitutivo;

• Possíveis riscos e desconfortos;

• Aviso de manutenção do tratamento convencional;

• Assinatura do paciente e do profissional, com data.

Abandono ou atraso de tratamento convencional como fonte de dano

Grande parte das ações de indenização envolvendo terapias alternativas decorre não do procedimento em si, mas do conselho para abandonar a medicina tradicional. Há relatos de pacientes com câncer, doenças autoimunes, transtornos psiquiátricos, diabetes tipo 1 e síndromes respiratórias graves que foram induzidos a parar de usar medicamentos ou a recusar cirurgia porque o terapeuta garantiu que o método natural “resolveria na raiz”. Meses depois, a doença piora, o prognóstico fica reservado e a família busca o Judiciário. Nessa situação, o nexo causal fica evidente: a piora só aconteceu porque o tratamento eficaz foi interrompido por orientação do réu.

O argumento de defesa de que “o paciente escolheu não operar” não afasta a responsabilidade quando se prova que essa escolha foi fruto de informação falsa, incompleta ou tendenciosa. O direito do paciente à autonomia é válido, mas ele só é legítimo quando é autonomia esclarecida. Se o profissional promete o impossível, nega a ciência ou minimiza o risco (“não se preocupe, seu tumor vai murchar com suco X”), estamos diante de culpa por imperícia e imprudência.

Profissionais de saúde x não profissionais: quem pode responder?

É importante diferenciar entre:

a) Profissional de saúde oficialmente habilitado (médico, dentista, fisioterapeuta, enfermeiro, nutricionista, psicólogo) que passa a oferecer terapia alternativa como complemento;

b) Terapeuta, massoterapeuta, reikiano, instrutor ou coach que NÃO é profissional de saúde, mas presta serviço que afeta a saúde;

c) Influencer, plataforma digital, youtuber ou página que divulga e vende “kits de cura” ou “mapas de desintoxicação” sem conhecimento técnico.

Nos três casos, pode haver responsabilidade civil. Porém, para o profissional habilitado, há ainda a responsabilidade ética/disciplinar perante o conselho de classe se o método usado for incompatível com as diretrizes da profissão ou colocar o paciente em risco. Já para o terapeuta não habilitado, abre-se espaço para discutir também o exercício ilegal da profissão, além da indenização. E, para o influencer, é possível falar em responsabilidade solidária com quem produziu o produto ou o curso, já que ele participou da cadeia de fornecimento.

Produtos “naturais” e interações perigosas

Outro foco de responsabilização são os tratamentos alternativos baseados em produtos naturais, chás, cápsulas manipuladas, óleos e pomadas artesanais. O fato de serem naturais não os torna inofensivos. Há plantas hepatotóxicas, há chás que interferem na coagulação, há óleos que potencializam anestésicos, há manipulações sem controle sanitário. Se o paciente sofre reação adversa, alergia, queimadura, hepatite medicamentosa ou dano renal em razão do produto indicado, quem indicou e quem forneceu podem ser responsabilizados.

Aqui, o profissional deve observar também a legislação sanitária: vender, fracionar, importar ou manipular sem licença produtos para saúde é irregular e, se der problema, reforça a culpa. Quando a prática ocorre dentro de clínica, o risco é maior, porque passa ao paciente a ideia de que o produto é seguro e aprovado.

QUADRO INFORMATIVO – SINAIS DE ALERTA PARA O PACIENTE

  • Promessa de “cura de todas as doenças”;
  • Indicação de que “não precisa mais ir ao seu médico”;
  • Venda casada de curso + produto + consulta;
  • Ausência de recibo ou contrato;
  • Proibição de o paciente gravar ou levar alguém.

Clínicas, spas e franquias de bem-estar: responsabilidade empresarial

Muitas vezes o tratamento alternativo é oferecido como pacote de bem-estar, assinatura mensal ou protocolo detox em clínicas e spas. Nesses cenários, há claramente uma relação de consumo e a empresa responde objetivamente. Se o protocolo causa dano (desidratação, hipoglicemia, queimadura estética, crise de ansiedade por técnica mal conduzida), a clínica pode ser condenada independentemente de culpa da atendente, pois teria o dever de garantir profissionais aptos, ambiente seguro e material adequado.

Franquias e redes precisam ter atenção redobrada: a publicidade nacional que promete resultados entra no processo. Não adianta a unidade local dizer que “só aplicou o método”. Se a franquia inteira vende que o protocolo “cura dor crônica” ou “rejuvenesce órgãos”, ela pode ser chamada para responder em conjunto.

Uso de gráficos e promessas de resultado: quando viram prova contra o profissional

Muitos terapeutas e clínicas divulgam nas redes gráficos de evolução, antes e depois, tabelas de dor, curvas de emagrecimento. Isso funciona bem para marketing, mas funciona melhor ainda para o advogado do paciente, porque mostra exatamente o tom da promessa feita. Se o gráfico apresenta “100% de melhora em 4 sessões” sem explicar amostra, fonte e variação individual, o juiz pode concluir que houve publicidade enganosa. Gráficos e cards são, portanto, provas documentais daquilo que foi prometido.

Por isso, o material visual deve sempre trazer disclaimers: “resultados podem variar”, “tratamento complementar”, “não interrompa seu tratamento médico”, “fotos autorizadas”. Essa é uma forma simples de reduzir o risco de condenação.

Conclusão

A busca por tratamentos alternativos é legítima e faz parte da autonomia do paciente. Mas quem oferece, divulga, aplica ou vende esses métodos precisa entender que o rótulo “alternativo”, “holístico” ou “natural” não é blindagem jurídica. Se houver dano, se o paciente for mal informado, se houver incentivo ao abandono do tratamento formal, se o produto causar reação, se a promessa for exagerada ou se a clínica der a aparência de serviço de saúde sem cumprir os mesmos padrões de segurança, nascerá o dever de indenizar.

O caminho mais seguro para atuar com terapias complementares é simples: informar com clareza, não prometer cura, não substituir o médico do paciente, documentar o consentimento e manter o tratamento dentro do seu limite técnico. Assim, a prática integrativa cumpre o papel de somar, e não de colocar o profissional e o próprio paciente em situação de vulnerabilidade jurídica.

Guia rápido

• Tratamento alternativo gera responsabilidade civil? Sim, quando causa dano, atrasa ou faz o paciente abandonar o tratamento convencional.

• Quem pode responder? Médico, terapeuta, clínica, spa, influencer e até a empresa que vende o protocolo como “cura”.

• O que mais pesa para o juiz? Falta de informação clara, promessa de resultado, estímulo a largar o médico e ausência de termo de consentimento.

• Como reduzir risco? Dizer que é complementar, não substitutivo, explicar limites, registrar autorização e não garantir cura.

• Qual o fundamento? Código Civil (arts. 186 e 927), CDC (publicidade e serviço defeituoso), além de normas dos conselhos quando o autor é profissional de saúde.

FAQ

1. Se o paciente escolheu o tratamento alternativo, ainda posso ser responsabilizado?

Pode. A escolha do paciente só é válida se foi uma autonomia informada. Se você omitiu riscos, exagerou resultados ou disse que poderia “trocar” o tratamento médico por um natural, houve vício de informação e nasce o dever de indenizar.

2. E se eu apenas vendi o produto natural, sem aplicar o tratamento?

Quem fornece produto de saúde responde solidariamente quando o uso foi estimulado de forma enganosa ou sem contraindicações. Se o produto causou reação ou atrasou tratamento, o vendedor pode ser incluído na ação, com base no CDC.

3. Profissional não médico também responde?

Sim. Terapeuta holístico, coach de saúde, massoterapeuta ou influencer que atua como se fosse profissional de saúde pode ser responsabilizado civilmente e até por exercício ilegal da profissão, se se apresentar como médico, fisioterapeuta ou nutricionista.

4. Posso prometer resultado em tratamentos alternativos?

Não é recomendável. Promessa de resultado absoluto (“cura em 30 dias”, “reverte câncer”, “substitui insulina”) é vista como publicidade enganosa e agrava a responsabilidade. O correto é falar em melhora possível, complementaridade e variação individual.

5. A clínica responde pelo erro do terapeuta terceirizado?

Na maioria dos casos, sim. A clínica tem dever de vigilância e responde objetivamente pelo serviço defeituoso prestado em suas dependências, com base no art. 14 do CDC.

Base técnica (fundamentação)

Código Civil (arts. 186 e 927): estabelece que quem causa dano, por ação ou omissão culposa ou dolosa, deve repará-lo. Aplicável quando o tratamento alternativo provoca piora, reação adversa, atraso diagnóstico ou abalo moral.

Código de Defesa do Consumidor (arts. 6º, 14, 30, 31 e 37): protege o paciente-consumidor contra publicidade enganosa e serviço defeituoso. Se o protocolo foi ofertado como “cura” ou “substituição” e não entregou o prometido, há vício de informação e responsabilidade objetiva.

Normas dos Conselhos Profissionais: quando o autor é médico, dentista, enfermeiro, nutri ou fisio, aplicam-se os deveres de não causar dano, de atuar com base em evidência e de não desestimular tratamento indispensável. O descumprimento gera processo ético, que reforça a prova na esfera cível.

Princípio da autonomia esclarecida: o paciente pode escolher terapias não convencionais, mas essa escolha exige informação plena sobre eficácia, riscos e alternativas. Sem isso, fala-se em consentimento viciado.

Nexo causal por omissão: se o terapeuta não orienta o paciente a manter o oncologista ou o endocrinologista e a doença progride, a omissão funciona como causa do dano e gera o dever de indenizar.

Considerações finais

Tratar com métodos alternativos não é, por si só, ilícito. O que gera responsabilidade é enganar, omitir ou substituir o tratamento eficaz sem respaldo. Quem atua nessa área precisa documentar, informar, não prometer cura e respeitar o limite da própria habilitação. Assim, protege o paciente e também o próprio negócio.

Essas informações não substituem a análise de um advogado, do Ministério Público ou do conselho profissional competente para o seu caso concreto.

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