Refúgio e Deslocamento Interno: regras essenciais, proteção e soluções na prática
Panorama global e razões do deslocamento forçado
Os movimentos forçados de pessoas — refugiados, solicitantes de refúgio e deslocados internos (IDPs) — são impulsionados por conflitos armados, perseguições, violências generalizadas, colapsos institucionais, desastres e impactos das mudanças climáticas. Relatórios recentes de organismos internacionais apontam um recorde histórico de pessoas sob proteção internacional e necessidade humanitária. Embora os números variem ano a ano, a tendência é de crescimento contínuo, com os IDPs respondendo pela maior parcela do total e os refugiados superando dezenas de milhões.
Definições e categorias de proteção
Refugiado (padrão 1951/1967)
É a pessoa que, temendo com razão ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de nacionalidade e não pode ou, por esse temor, não quer regressar. O Protocolo de 1967 removeu a limitação temporal e geográfica originalmente prevista.
Declaração de Cartagena/1984 (ampliação latino-americana)
Recomenda reconhecer como refugiadas também pessoas que fogem de violência generalizada, conflitos internos, violação massiva de direitos humanos ou outras circunstâncias que perturbem gravemente a ordem pública. Vários países da região internalizaram esse conceito ampliado, criando base para reconhecimentos coletivos (prima facie) em fluxos massivos.
Solicitante de refúgio
Quem requer proteção e aguarda decisão do procedimento. Gozam de garantias procedimentais (não devolução, documentação provisória, entrevista pessoal, recurso) e não podem ser penalizados por entrada irregular (art. 31, Convenção/1951), desde que se apresentem às autoridades.
Apátrida
Pessoa que não é considerada nacional por nenhum Estado segundo sua legislação. Não necessariamente é refugiada, mas pode ser. Regimes modernos preveem procedimentos de determinação de apatridia e vias de naturalização facilitada.
Deslocado interno (IDP)
Indivíduo ou grupo de pessoas forçado a fugir de sua casa ou local de residência habitual em razão de conflito armado, situações de violência generalizada, violações de direitos humanos, desastres ou projetos de desenvolvimento, que não cruzou fronteira internacional. A proteção baseia-se em Direitos Humanos e nos Princípios Orientadores/1998 (soft law), além de leis nacionais; no continente africano, a Convenção de Kampala/2009 é juridicamente vinculante para seus Estados-partes.
Fontes normativas: internacional, regional e doméstica
Direito Internacional dos Refugiados
- Convenção de 1951 e Protocolo de 1967 — espinha dorsal: definição de refugiado, non-refoulement (art. 33), documentação, trabalho, educação, não discriminação, não penalização pela entrada irregular, acesso a tribunais, assistência pública, liberdade de movimento e naturalização.
- Direito Internacional dos Direitos Humanos — ICCPR, ICESCR, CRC, CEDAW etc. garantem um padrão mínimo aplicável a todas as pessoas sob jurisdição, inclusive solicitantes de refúgio e refugiados.
- Direito Internacional Humanitário — em conflitos, protege civis, limita métodos de guerra, prevê acesso humanitário e proibição de deslocamento forçado arbitrário.
Instrumentos regionais
- América Latina: Declaração de Cartagena e Planos de Ação subsequentes (p.ex., Brasil 2014) — conceito ampliado, soluções duráveis, integração e responsabilidade compartilhada.
- África: Convenção de Kampala (IDPs) e Convenção da OUA de 1969 (refugiados), que também amplia a definição.
- Europa: sistema comum de asilo (diretivas de procedimentos, acolhida e qualificação; Dublin para responsabilidade do exame).
Legislação doméstica (exemplo Brasil, como referência)
- Lei 9.474/1997: define mecanismos de implementação da Convenção/Protocolo; cria o CONARE e disciplina procedimento de refúgio, com entrevista, decisão colegiada e recurso; assegura documentação, trabalho e acesso a serviços.
- Lei 13.445/2017 (Lei de Migração) e regulamentos: prevê visto/acolhida humanitária, proteção a apátridas, princípios de não criminalização da migração, não devolução e integração.
- Normas infralegais: portarias e resoluções que, em emergências (p.ex., guerras, desastres), criam canais de visto humanitário e regularização simplificada.
Princípios transversais de proteção
- Non-refoulement: proibição de expulsar, deportar, rejeitar na fronteira ou indiretamente transferir pessoa para território onde haja risco real de perseguição, tortura ou tratamento cruel. É amplamente reconhecido como costume internacional, com status reforçado por tratados de direitos humanos.
- Não discriminação e igualdade de tratamento em direitos fundamentais, sem distinção de raça, sexo, nacionalidade, condição migratória.
- Unidade familiar e melhor interesse da criança: orientam decisões sobre reunião familiar, acolhimento e alternativas à detenção.
- Confidencialidade do procedimento e não penalização por entrada irregular (desde que haja apresentação às autoridades e boa-fé).
- Responsabilidade primária do Estado para com IDPs e dever de permitir acesso humanitário.
Procedimentos de determinação da condição de refugiado (RSD)
Garantias mínimas
- Informação na língua compreendida; registro e emissão de documento provisório que resguarde contra deportação;
- Entrevista individual com intérprete e oportunidade de apresentar provas e declarações sobre trajetória, riscos e temores;
- Direito a assistência jurídica, decisão fundamentada e recurso efetivo;
- Procedimentos acelerados ou na fronteira não podem suprimir garantias essenciais.
Padrões probatórios
Aplica-se a lógica da verossimilhança e da prova indiciária em razão das dificuldades intrínsecas do contexto (fuga, destruição de documentos, traumas). Coerência interna do relato, sua plausibilidade e informações oficiais sobre o país de origem (COI) sustentam a análise. Em fluxos massivos, pode-se adotar reconhecimento prima facie (carteiras coletivas), principalmente com base em Cartagena.
Direitos, deveres e integração
Refugiados e solicitantes
- Documentação (provisória e, após reconhecimento, definitiva), trabalho, educação, saúde e acesso a programas sociais, sob igualdade razoável com nacionais;
- Liberdade de circulação e proteção contra prisão arbitrária. Crianças e famílias: alternativas à detenção e acolhimento adequado;
- Reunião familiar, viagem com documento próprio (emissão de laissez-passer), e caminho para naturalização conforme lei interna;
- Deveres: respeitar a legislação do Estado de acolhida e não ameaçar segurança nacional ou ordem pública. A cláusula de exclusão (art. 1F/1951) afasta proteção em crimes graves internacionais.
Deslocados internos
- Direito a proteção contra deslocamentos arbitrários e a assistência humanitária durante o deslocamento;
- Direito a documentação, acesso a serviços, propriedade e restituição/compensação de bens em caso de retorno ou integração local em outra área do país;
- Participação nas decisões sobre abrigamento, relocação e soluções duráveis; atenção a grupos vulneráveis (crianças, idosos, mulheres, pessoas com deficiência e minorias).
Fronteira, portos e medidas de controle
Políticas de interdição extraterritorial, terceiro país seguro e controles remotos precisam respeitar o non-refoulement e garantir acesso ao procedimento. A recusa sumária (pushback) sem avaliação individual ou salvaguardas viola obrigações internacionais. Em mar, valem os deveres de resgate e desembarque em lugar seguro.
Detenção e alternativas
A detenção de solicitantes deve ser excepcional, necessária, proporcional e por tempo estritamente limitado, com revisão judicial. Crianças e famílias não devem ser detidas por motivos migratórios; preferem-se programas de acompanhamento, acolhimento comunitário e liberdade condicionada.
Soluções duráveis
Repatriação voluntária
Retorno livre e informado quando as causas de risco cessam. Envolve acordos tripartites (país de origem, acolhida e ACNUR), garantias de segurança e reintegração.
Integração local
Consolidação de direitos de residência, acesso a trabalho, serviços e, muitas vezes, caminho para a cidadania. Exige políticas públicas de reconhecimento de diplomas, aprendizado de língua e inclusão urbana.
Reassentamento
Mecanismo pelo qual um terceiro Estado aceita receber refugiados reconhecidos que não podem permanecer no primeiro país de asilo por risco contínuo ou vulnerabilidades. É solução limitada por cotas e capacidades; prioriza perfis com necessidades de proteção agudas.
Desastres e mudanças climáticas
Os tratados de 1951/1967 não contemplam desastres ambientais como causa autônoma de refúgio, mas a proteção pode emergir em três vias: (i) se o desastre se combina com conflito/perseguição (abrindo a via clássica); (ii) por proteções complementares e humanitárias nacionais; (iii) por marcos de direitos humanos e agendas como a Iniciativa Nansen/Protection Agenda para deslocamentos transfronteiriços por desastres. Para IDPs, os Princípios Orientadores cobrem desastres súbitos e lentos (secas, elevação do mar), enfatizando prevenção, aviso prévio, participação e reassentamento planejado.
Estatística básica — composição do deslocamento forçado (ilustrativa)
Para visualizar a composição típica do deslocamento global (refugiados, IDPs, solicitantes e apátridas), o gráfico abaixo usa proporções ilustrativas inspiradas em relatórios recentes. Valores exatos mudam a cada ano e por fonte.
Competências institucionais e coordenação
Órgãos nacionais
- Autoridade de refúgio (comissão/colegiado) para RSD e política de integração;
- Órgãos de migração, fronteiras e documentação civil (emissão de protocolos, carteiras, CPF, registros);
- Entes subnacionais (estados/municípios) para acolhimento, abrigamento, saúde, educação, assistência social.
Organismos internacionais
- ACNUR: proteção internacional a refugiados e apátridas; apoio técnico ao RSD, reassentamento e integração;
- OIM: gestão de mobilidade, retorno voluntário assistido, abrigamento e logística;
- OCHA/Cruz Vermelha/ONGs: coordenação humanitária, proteção e assistência a IDPs.
Regime jurídico de IDPs: do deslocamento à solução
Antes e durante o deslocamento
- Proibição de deslocamentos arbitrários (p.ex., para mudanças demográficas) e garantias de consulta e informação quando relocação for inevitável;
- Proteção de propriedades, documentos e meios de subsistência (não destruição, não pilhagem);
- Acesso a assistência humanitária, abrigo digno, água, saneamento, saúde e educação sem discriminação.
Pós-deslocamento
- Liberdade de movimento dentro do país e escolha entre retorno, integração local ou reassentamento interno em área diferente;
- Segurança de posse, restituição ou compensação por perdas, mecanismos de resolução de disputas e reparação;
- Programas de meios de vida e reconstrução comunitária com enfoque em gênero e diversidade.
Triagem de vulnerabilidades e proteção específica
- Crianças e adolescentes: tutoria/guarda, rastreamento e reunificação familiar, educação, proteção contra recrutamento forçado e tráfico;
- Mulheres e pessoas LGBTI+: prevenção e resposta a violência sexual e de gênero, acesso a saúde sexual e reprodutiva, medidas de confidencialidade;
- Pessoas com deficiência e idosos: adaptações razoáveis, acessibilidade, serviços assistivos, prioridade em abrigos e realocações;
- Sobreviventes de tortura ou trauma: cuidados psicossociais, isenção de entrevistas repetitivas e abordagens sensíveis ao trauma.
Governança, dados e monitoramento
Políticas eficazes exigem registro e gestão de informações que respeitem privacidade e protejam os dados pessoais — inclusive por avaliações de risco e minimização. Em emergências, sistemas de inscrição rápida e documentação biométrica melhoram a prestação de serviços e a prevenção de fraudes, desde que vinculados a salvaguardas e consentimento informados.
Boas práticas operacionais para gestores públicos e parceiros
- Garantir acesso ao território e ao procedimento com triagem e documentação imediata;
- Ativar protocolos de proteção para crianças e grupos vulneráveis (alternativas à detenção, abrigamento adequado);
- Estabelecer coordenação intersetorial (saúde, educação, assistência, trabalho) e planos de integração com indicadores;
- Promover reconhecimento de diplomas e inserção laboral, combinando aulas de língua e mapeamento de competências;
- Desenvolver mecanismos de queixa e ouvidoria acessíveis, com mediação intercultural e intérpretes;
- Publicar dados abertos agregados, protegendo a privacidade, para transparência e avaliação de políticas.
Responsabilidade internacional, retorno e readmissão
As soluções demandam cooperação e partilha de responsabilidades (financiamento, reassentamento, apoio técnico). Acordos de readmissão devem respeitar o non-refoulement e incluir salvaguardas individuais. Em retornos massivos de IDPs ou refugiados, instrumentos de reparação e reconciliação (comissões de verdade, programas de restituição de propriedade) são cruciais para evitar novos ciclos de violência.
Debates atuais e tendências
- Externalização do controle migratório vs. acesso ao asilo — tensão entre gestão de fronteiras e obrigações de direitos humanos;
- Proteções complementares para pessoas que não enquadram estritamente a definição de 1951, mas enfrentam risco real de danos graves (tortura, tratamentos cruéis, ameaça generalizada);
- Mobilidade climática e planos de realocação preventiva em zonas costeiras e áridas, articulados com adaptação climática e redução de riscos de desastres;
- Transformação digital dos procedimentos (inscrição, entrevistas remotas) com equidade de acesso e proteção de dados.
Conclusão
O regime jurídico de refugiados e deslocados internos é um mosaico que combina normas globais, regionais e nacionais. Seu núcleo é o compromisso com a dignidade humana e a proibição de devolução a risco. Para refugiados, a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967, reforçados por instrumentos regionais (como Cartagena), estruturam direitos, deveres e procedimentos; para IDPs, os Princípios Orientadores e leis internas impõem responsabilidade primária ao Estado e parâmetros de assistência. Políticas públicas eficazes exigem: acesso ao território e ao procedimento, triagem de vulnerabilidades, integração socioeconômica, coleta de dados com salvaguardas e coordenação multissetorial. Diante de conflitos prolongados, crises políticas, desastres e mudanças climáticas, a proteção internacional deve permanecer adaptável, baseada em evidências e fiel aos princípios que a justificam: humanidade, solidariedade e responsabilidade compartilhada.
FAQ — Refugiados e deslocados internos (acordeão)
1) Qual a diferença entre refugiado, solicitante de refúgio e deslocado interno (IDP)?
Refugiado: quem, temendo com razão perseguição por raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, está fora do país e não pode/quer retornar (Convenção de 1951; Protocolo de 1967). Solicitante: pessoa que requereu refúgio e aguarda decisão, com garantias procedimentais e proteção contra devolução. IDP: pessoa forçada a se deslocar por conflito, violência, violações de direitos humanos ou desastres, sem cruzar fronteira (Princípios Orientadores sobre Deslocamento Interno, 1998).
2) O que é o princípio do non-refoulement e quando ele se aplica?
É a proibição de devolver (expulsar, deportar, rejeitar na fronteira ou transferir indiretamente) pessoa para território onde corra risco real de perseguição, tortura ou tratamento cruel. Consta do art. 33 da Convenção de 1951 e é reforçado por tratados de direitos humanos (p.ex., proibição absoluta de tortura). Aplica-se a refugiados, solicitantes e, na prática, também a outros estrangeiros quando há risco de graves violações.
3) Quais direitos básicos refugiados e solicitantes possuem no Estado de acolhida?
Documentação provisória e, após reconhecimento, definitiva; acesso ao trabalho, educação, saúde e assistência; não penalização por entrada irregular (art. 31, 1951); acesso a tribunais, liberdade de movimento e reunião familiar. Crianças e famílias devem ter alternativas à detenção e proteção segundo o melhor interesse.
4) Como é protegido o deslocado interno (IDP) se não há Convenção específica global?
A proteção dos IDPs decorre do Direito Internacional dos Direitos Humanos, do Direito Internacional Humanitário (em conflitos) e dos Princípios Orientadores/1998 (soft law). Na África, a Convenção de Kampala/2009 é vinculante. Leis nacionais devem garantir prevenção de deslocamentos arbitrários, assistência, documentação, liberdade de movimento e soluções duráveis (retorno, integração local ou reassentamento interno).
5) Desastres e mudanças climáticas geram status de refugiado?
Os tratados de 1951/1967 não trazem “clima/desastre” como motivo autônomo. A proteção pode ocorrer por conceitos ampliados regionais (p.ex., Cartagena/1984 quando houver “grave perturbação da ordem pública”), por proteções complementares/humanitárias domésticas ou quando desastres se combinam com perseguição ou risco de tortura. Para IDPs, os Princípios Orientadores cobrem deslocamentos por desastres e impõem deveres de prevenção e reassentamento seguro.
- Convenção de 1951 e Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados (definição, art. 31 não penalização; art. 33 non-refoulement).
- Declaração de Cartagena/1984 (América Latina): conceito ampliado de refugiado por violência generalizada, conflitos e grave perturbação.
- Princípios Orientadores sobre Deslocamento Interno/1998 e, na África, Convenção de Kampala/2009 (IDPs).
- Tratados de Direitos Humanos (ICCPR, ICESCR, CRC, CEDAW) e DIH (Convenções de Genebra) aplicáveis segundo o contexto.
- Exemplo doméstico (Brasil): Lei 9.474/1997 (procedimento de refúgio, CONARE) e Lei 13.445/2017 (Lei de Migração: vistos/acolhida humanitária, apatridia).