Direito do consumidor

Recusa de Cobertura no Seguro de Vida: quando é ilegal, o que provar e como reverter

Recusa de cobertura em seguro de vida: matriz prática do que é (i)legal

Quem contrata um seguro de vida busca previsibilidade para situações de maior fragilidade. Por isso, uma negativa de pagamento atinge não só o orçamento dos beneficiários, mas a confiança no próprio mercado securitário. O ordenamento jurídico brasileiro combina regras do Código Civil, princípios do CDC (quando a relação é de consumo), regulação da Susep e jurisprudência do STJ para dizer quando a recusa é legítima e quando é ilegal. A seguir, um guia estruturado para analisar casos concretos, com base legal, critérios de prova e passos práticos.

Ponto de partida O seguro é contrato de máxima boa-fé. Segurado e seguradora devem agir com veracidade desde a proposta até a regulação do sinistro. O Código Civil exige boa-fé estrita (art. 765) e disciplina hipóteses de declaração inexata/reticência (art. 766), agravamento intencional do risco (art. 768) e mora no pagamento do prêmio (art. 763). 0

Quando a recusa tende a ser ilegal

Doença preexistente sem exames prévios exigidos

É recorrente a negativa com base em “doença preexistente”. Em seguro de pessoas, o ônus de qualificação do risco na contratação é da seguradora. Se ela não exige exames médicos ou não comprova má-fé do proponente, a recusa é, em regra, ilícita. A Segunda Seção do STJ consolidou o entendimento na Súmula 609: “A recusa de cobertura securitária, sob alegação de doença preexistente, é ilícita se não houve exigência de exames médicos prévios”. O tribunal reafirmou a orientação em julgados recentes. 1

Como demonstrar: juntar a proposta assinada, as condições gerais, o questionário de saúde e os pedidos de exame (se existiram). Se a seguradora não comprovou exigência de exames ou dolo/ocultação intencional do proponente, incremente a prova com laudos e histórico clínico mostrando diagnóstico posterior à contratação.

Suicídio fora do período legal de dois anos

O Código Civil define regra objetiva para o suicídio: não há cobertura nos dois primeiros anos da vigência inicial (ou da recondução após suspensão); passado esse prazo, a cobertura é devida. O STJ editou a Súmula 610 para pacificar o tema e garantir, mesmo no período de carência, a devolução da reserva técnica. Assim, encerrada a carência, a negativa é ilegal. 2

Negativa genérica ou sem motivação escrita

A recusa deve ser fundamentada, com indicação da cláusula contratual, do fato impeditivo e da prova que o sustenta. Nas relações de consumo, o CDC impõe informação adequada e clara e veda práticas abusivas. Negativas genéricas podem violar tais deveres e caracterizar má prestação de serviço, com direito à reparação. (Fundamento: art. 6º, III e art. 39 do CDC.)

Cancelamento automático sem notificação e sem prova de mora relevante

O art. 763 prevê que não terá direito à indenização o segurado em mora quanto ao prêmio, se o sinistro ocorrer antes da purgação. Porém, o STJ tem exigido cautela com cancelamentos unilaterais; decisões recentes reforçam a necessidade de comunicação prévia, salvo hipóteses excepcionais de longa inadimplência que tornam inequívoca a ruptura. Sem notificação e sem atraso significativo, a recusa tende a ser indevida. 3

Atenção: há casos em que o STJ dispensou notificação, diante de longo período sem pagamento antes do sinistro. Analise o histórico de prêmios e as comunicações arquivadas. 4

Boa prática do segurado: manter comprovantes de pagamento, e-mail/SMS de lembretes, 2ª via de boletos e extratos. Em débito automático, peça declaração do banco se houver falha na cobrança.

Quando a recusa pode ser legítima (desde que comprovada)

Suicídio nos dois primeiros anos de vigência

No período de carência legal de dois anos, não há cobertura para suicídio, assegurada a devolução da reserva técnica. A cláusula contratual que repita o art. 798 CC é válida. 5

Declarações inexatas ou reticência dolosa na proposta

Se o segurado oculta intencionalmente circunstâncias que influenciam a aceitação do risco ou o prêmio, pode perder o direito à garantia (art. 766 CC). A seguradora deve provar a má-fé (omissão consciente e relevante). Questionários mal elaborados ou com perguntas vagas não bastam para afastar a cobertura. 6

Agravamento intencional do risco

O art. 768 CC afasta a cobertura se o segurado agravar intencionalmente o risco do contrato (ex.: simulação de sinistro, conduta temerária consciente). Exige-se demonstração de intenção ou culpa grave, e nexo entre o comportamento e o evento. 7

Inadimplência relevante do prêmio no momento do sinistro

Se o sinistro ocorre durante mora e antes da purgação, a regra do art. 763 afasta a indenização. A análise, contudo, considera a dinâmica do contrato (parcelas pagas, aviso de atraso, tolerância da seguradora). 8

Fluxo de análise: é lícita a recusa?

Diagrama decisório resumido
SINISTRO E NEGATIVA MOTIVADA?

Exames exigidos? (doença preexistente)

Carência legal de 2 anos (suicídio)

Mora do prêmio e notificação

Prova de má-fé/agravamento?

Sem provas suficientes → tendência: RECUSA ILÍCITA

Com base legal e prova robusta → RECUSA LÍCITA

Base legal: CC arts. 765, 766, 768, 763, 798; STJ Súmulas 609 e 610.

Provas e documentos: o que pedir, o que guardar

Antes do sinistro: proposta completa, questionário de saúde, condições gerais e especiais, comprovantes de pagamento, correspondências sobre carência, reajustes e alterações de capital.

Na regulação: comunicação formal do sinistro (protocolo), certidões (óbito), laudos, prontuário, histórico de emprego para seguros em grupo, cópias de todas as negativas e pedidos de complementação.

Se a recusa vier: solicite motivação escrita com cláusulas citadas; peça cópia do processo de regulação; protocole reclamação em ouvidoria da seguradora e na Susep; avalie ação judicial com prova pericial quando necessário.

Regras especiais frequentemente invocadas

Carência legal para suicídio

O art. 798 CC estabelece incontestabilidade temporal: dentro dos dois primeiros anos, a seguradora pode negar o capital; depois, deve pagar. A Súmula 610 do STJ superou entendimento antigo, encerrando discussões sobre premeditação e assegurando a reserva técnica ao beneficiário durante a carência. 9

Boa-fé e transparência na contratação

O art. 765 CC reforça que as partes devem observar a mais estrita boa-fé e veracidade em todas as fases do contrato, inclusive na pós-contratação (comunicação de agravamento do risco). Sempre que a negativa se basear em suposta má-fé, cabe à seguradora provar o elemento subjetivo e a relevância da informação omitida. 10

Mora do prêmio

O art. 763 CC afasta a indenização se o segurado estiver em mora e o sinistro ocorrer antes da purgação. A jurisprudência, entretanto, tem debatido notificação prévia, tolerância e adimplemento substancial. Notícias oficiais do STJ destacam a exigência de aviso ao segurado para rescisão, temperada por hipóteses de inadimplência prolongada. 11

Prazo para cobrar judicialmente

Para ações entre segurado/beneficiário e seguradora, o prazo prescricional geral é de um ano, nos termos do art. 206, §1º, II do CC, com marco inicial conforme a modalidade de seguro; a Súmula 101/STJ confirma o entendimento inclusive em seguros de vida em grupo. Decisões recentes reiteram a regra do prazo anual. 12

Observação: a depender do pedido e da causa de pedir, pode haver discussão sobre prazos diferentes (p.ex., pedidos de danos morais autônomos por falha de serviço). Analise o enquadramento do seu caso com cuidado.

Como estruturar uma contestação à negativa

Roteiro em 6 etapas

  1. Coletar documentos: apólice completa, proposta, comprovantes, correspondências e a carta de negativa.
  2. Mapear fundamento da recusa (doença preexistente, carência, mora, má-fé, agravamento, exclusão).
  3. Conferir aderência à base legal: Súmula 609 (exames), Súmula 610/CC 798 (suicídio), CC 763 (mora), CC 766 (reticência), CC 768 (agravamento).
  4. Produzir contraprovas (laudos, histórico clínico, comprovantes de pagamento, testemunhas).
  5. Acionar ouvidoria/Susep com narrativa objetiva e pedidos concretos.
  6. Judicializar se preciso: peça tutela de urgência quando houver necessidade alimentar do beneficiário; requeira prova pericial e inversão do ônus se aplicar o CDC.
Erros que enfraquecem o caso

  • Não juntar a proposta original e o questionário de risco.
  • Desconsiderar o prazo de 1 ano para ajuizar.
  • Ignorar a reserva técnica devida em carência por suicídio.
  • Basear-se só em conversas verbais, sem provas escritas.

Quadro comparativo: hipóteses comuns de recusa

Doença preexistente: recusa é ilegal se a seguradora não exigiu exames e não comprova má-fé. (Súmula 609/STJ). 13

Suicídio: dentro de 2 anos → pode recusar (devolve reserva técnica); após 2 anos → recusa ilegal. (CC 798 e Súmula 610/STJ). 14

Mora do prêmio: se comprovado atraso no momento do sinistro, sem purgação, recusa pode ser válida; cuidado com notificação e tolerância. (CC 763; jurisprudência STJ). 15

Reticência/má-fé: exige prova robusta de que a omissão foi intencional e relevante. (CC 766). 16

Agravamento intencional: recusas sustentadas em conduta dolosa/culpa grave do segurado que agravou o risco. (CC 768). 17

Prazo para ação: regra geral de 1 ano entre segurado/beneficiário e seguradora; ver marcos iniciais conforme o tipo de seguro. (CC 206 §1º II; Súmula 101/STJ; precedentes recentes). 18

Aspectos regulatórios e de mercado: por que a recusa deve ser excepcional

A supervisão do mercado é exercida pela Susep, que disciplina produtos, cláusulas e condutas por meio de CNSP e Circulares. A Circular Susep nº 621/2021, por exemplo, revisou regras de seguros de danos; em vida, permanece a exigência de condições claras, de informação adequada ao consumidor e de processos de regulação auditáveis. Boas práticas incluem matriz de decisão padronizada, rastreabilidade de documentos, e comunicação ativa com beneficiários. 19

Estratégias probatórias para beneficiários e para seguradoras

Beneficiários

  • Reúna todos os papéis entregues na contratação e na regulação.
  • Peça cópia integral do processo de sinistro e registre protocolos.
  • Em “doença preexistente”, destaque ausência de exames e diagnósticos posteriores.
  • Em carência por suicídio, confira datas e peça reserva técnica.
  • Em mora, verifique notificações, boletos e eventual tolerância da seguradora.
Seguradoras

  • Formalize questionários claros e, quando preciso, exames prévios.
  • Implemente trilhas de auditoria (quem decidiu, com base em quê).
  • Mantenha matriz de carência (CC 798) e fluxo de reserva técnica.
  • Notifique mora de forma inequívoca e documente a comunicação.
  • Evite cláusulas ambíguas; publicidade e materiais devem refletir as condições de apólice.

Modelos de redação que reduzem litígios

Clareza contratual: destaque visual para carências, exclusões, requisitos de exames e obrigações de comunicação do segurado. Forneça quadro-resumo com prazos e exemplos. Entregue glossário (apólice, prêmio, risco coberto, sinistro). Essa abordagem previne negativas e facilita a prova em juízo.

Passo a passo em caso de recusa aparentemente ilegal

  1. Exija a motivação escrita com referência aos documentos do processo de regulação.
  2. Peça cópia integral do dossiê do sinistro (artigos, pareceres, questionários e laudos).
  3. Protocole reclamação na ouvidoria da seguradora, preservando todos os números de atendimento.
  4. Se persistir, leve o caso à Susep e aos órgãos de defesa do consumidor.
  5. Considere a via judicial dentro do prazo de um ano, estruturando a prova (documental, pericial e testemunhal) segundo a tese aplicável (Súmulas 609/610; CC 763, 766, 768).

Conclusão

A negativa de cobertura no seguro de vida não é aberta: ela precisa se encaixar em hipóteses legais e ser lastreada por prova. De um lado, a lei protege o equilíbrio atuarial (boa-fé, carência do suicídio, mora relevante, agravamento intencional). De outro, protege a confiança legítima do consumidor (exames prévios para alegar preexistência, dever de informação, motivação escrita, devolução da reserva técnica, cautela com cancelamentos). Quem conhece essa matriz evita litígios desnecessários e decide melhor: o beneficiário sabe quando insistir e a seguradora sabe quando pagar. Em caso de conflito, a orientação prática é documentar, comparar com a base legal e agir rapidamente para não perder prazos — com foco no que a jurisprudência realmente reconhece como recusa legítima ou ilegal.

Base técnica e fontes legais

  • Código Civil: art. 757 (conceito de seguro), 765 (boa-fé), 766 (declaração inexata/reticência), 768 (agravamento intencional), 763 (mora do prêmio), 798 (suicídio – carência de dois anos), 206, §1º, II (prescrição anual). 20
  • STJ – Súmulas e notícias: Súmula 609 (preexistência sem exames), Súmula 610 (suicídio e reserva técnica), Súmula 101 (prescrição ânua em seguro de vida, inclusive em grupo), decisões sobre notificação em mora e reafirmação do prazo de 1 ano. 21
  • Regulação Susep: diretrizes gerais e circulares aplicáveis, dever de informação e padronização de produtos. 22

Perguntas frequentes

Quando a recusa por doença preexistente é ilegal?

Quando a seguradora não exigiu exames médicos prévios na contratação e não comprova má-fé do proponente. A jurisprudência consolidada (Súmula 609/STJ) considera ilícita a negativa apenas com base em questionário, sem diligência técnica.

Como funciona a carência de dois anos para suicídio?

O art. 798 do CC prevê que o suicídio não é coberto nos dois primeiros anos da vigência inicial (ou recondução). Após esse prazo, a recusa é ilegal. Durante a carência, é devida a devolução da reserva técnica (Súmula 610/STJ).

O não pagamento do prêmio sempre autoriza negativa?

O art. 763 do CC afasta a indenização se o sinistro ocorrer em mora antes da purgação. Contudo, a rescisão/cancelamento exige coerência contratual e, em regra, comunicação prévia. Em atrasos curtos ou quando há tolerância da seguradora, a recusa pode ser indevida.

O que são declarações inexatas e reticência dolosa (art. 766 CC)?

É a omissão intencional de fato relevante ao risco. Para negar, a seguradora deve provar a má-fé (consciência e relevância). Perguntas vagas ou ambíguas em questionário não bastam para afastar a cobertura.

O que é agravamento intencional do risco (art. 768 CC)?

Quando o segurado, de forma dolosa ou com culpa grave, cria/eleva o risco assumido (p. ex., simula sinistro). Exige nexo entre a conduta e o evento. Sem essa prova, a negativa é frágil.

A seguradora pode negar sem explicar por escrito?

Não. O consumidor tem direito à informação adequada (art. 6º, III, CDC). A negativa deve trazer fundamentação, cláusula aplicada e indicação da prova usada. Recusas genéricas são passíveis de reparação por falha na prestação.

Qual é o prazo para propor a ação contra a seguradora?

Regra geral: 1 ano (art. 206, §1º, II, CC), com marcos iniciais conforme a modalidade e o fato. A Súmula 101/STJ aplica o prazo anual também a seguro de vida em grupo. Atenção ao cômputo quando há pedido de danos morais autônomos.

Em caso de carência por suicídio, o beneficiário tem direito a algum valor?

Sim. Mesmo sem cobertura nos 2 primeiros anos, há direito à reserva técnica acumulada, conforme a Súmula 610/STJ. É preciso requerer e comprovar a vigência da apólice e os pagamentos do prêmio.

Quais documentos fortalecem a contestação da negativa?

Proposta assinada, condições gerais e especiais, questionário de saúde, comprovantes de prêmio, comunicações de mora, dossiê do sinistro (laudos, certidões), carta de negativa com fundamento e protocolos de ouvidoria/Susep.

É possível reclamar fora do Judiciário?

Sim. Registre na ouvidoria da seguradora e na Susep. Se não resolver, busque o Poder Judiciário com pedido de tutela de urgência quando a situação exigir.

Mapa mental rápido

Negativa ilegal (tendência)
Preexistência sem exames prévios • Suicídio após 2 anos • Cancelamento sem notificação razoável • Justificativa genérica.
Negativa legítima (se provada)
Suicídio até 2 anos (com reserva técnica) • Mora no prêmio no momento do sinistro • Reticência dolosaAgravamento intencional.

Base técnica: fundamentos legais e referências

Código Civil (contrato de seguro)

  • Art. 757 – conceito e objeto do contrato de seguro.
  • Art. 765boa-fé objetiva e veracidade nas relações securitárias.
  • Art. 766declaração inexata/reticência dolosa e perda do direito.
  • Art. 768agravamento intencional do risco.
  • Art. 763mora no pagamento do prêmio e sinistro.
  • Art. 798suicídio e carência de dois anos.
  • Art. 206, §1º, IIprescrição anual em ação do segurado/beneficiário.

Jurisprudência do STJ (síntese)

  • Súmula 609 – preexistência: negativa é ilícita se não houve exigência de exames.
  • Súmula 610 – suicídio: reserva técnica devida e regra de 2 anos.
  • Súmula 101 – prescrição ânua também no seguro em grupo.
  • Precedentes sobre notificação em cancelamentos por mora e sobre a necessidade de prova robusta de má-fé e agravamento.

Regulação setorial

  • Susep/CNSP – normas sobre padronização de produtos, dever de informação e processos de regulação de sinistro auditáveis (consultar circulares vigentes aplicáveis ao produto de vida).

Boas práticas do segurado: guardar proposta, condições gerais, recibos e protocolos; exigir negativa escrita; solicitar cópia do dossiê do sinistro; observar o prazo de 1 ano para ação.

Riscos jurídicos usuais: recusar com base apenas em questionário; cancelar sem comunicação; negar após 2 anos por suicídio; ignorar devolução de reserva técnica; alegar reticência sem prova de má-fé.


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