Recuperação Judicial: Requisitos, Etapas e Como Conduzir o Procedimento na Prática
Conceito, finalidades e marco legal
A recuperação judicial é o procedimento judicial que visa viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, preservando a empresa, sua função social e o emprego, conforme a Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falência – LRF), amplamente reformada pela Lei 14.112/2020. O processo é conduzido sob o princípio da preservação da atividade, por meio de medidas de reestruturação negociadas com credores e homologadas pelo juízo.
Quem pode pedir: legitimidade e vedações
Legitimidade ativa (art. 48 LRF)
- Empresário individual e sociedade empresária em atividade há, pelo menos, 2 anos.
- Grupos econômicos: podem requerer conjuntamente (consolidação processual) e, em hipóteses restritas, consolidação substancial (quando há confusão patrimonial relevante e interdependência operacional).
Quem não pode
- Empresas públicas, sociedades de economia mista, instituições financeiras, cooperativas de crédito, operadoras de planos de saúde, seguradoras, entidades de previdência complementar, conforme LRF e leis especiais.
Impedimentos
- Ter obtido concessão de RJ há menos de 5 anos (ou 8 anos se adotado plano especial de ME/EPP).
- Ter sido condenado por crime falimentar.
Requisitos formais do pedido (art. 51 LRF)
O pedido inicial deve ser instruído com documentação contábil e societária capaz de demonstrar a viabilidade do negócio e a extensão da crise. Entre os principais documentos:
- Exposição das causas concretas da crise e das medidas pretendidas.
- Demonstrações contábeis dos últimos 3 anos (BP, DRE, DFC e notas explicativas), relatório gerencial e balanço patrimonial especial.
- Relação nominal de credores por espécie (trabalhistas, garantia real, quirografários, microempresas e EPP), com valor atualizado e classificação.
- Relação de empregados, mês da admissão, função e salários.
- Extratos bancários recentes, contratos relevantes (financiamentos, arrendamentos, cessões fiduciárias), bens dos sócios controladores e participações.
- Comprovação de regularidade registral (Junta Comercial) e atividade por 2 anos.
Processamento: o que muda com a decisão inicial
Atendidos os requisitos, o juiz processa o pedido (art. 52), nomeia Administrador Judicial (AJ) e fixa remuneração. Com isso:
- Inicia-se o stay period de até 180 dias (suspensão de ações e execuções contra o devedor sujeitas à RJ), prorrogável uma vez em hipóteses excepcionais, sem culpa do devedor.
- Intimação para o devedor apresentar Plano de Recuperação Judicial (PRJ) em até 60 dias.
- Publicação de edital com a relação de credores; abre-se prazo de 15 dias para habilitações e divergências.
- AJ verifica créditos e apresenta quadro-geral (QGC) provisório/definitivo.
Créditos não sujeitos à RJ (continuam exequíveis): tributários (salvo transação/parcelamentos especiais), ACC (adiantamento de contrato de câmbio), propriedade fiduciária (alienação/cessão fiduciária), arrendamento mercantil e leasing, entre outros listados na LRF.
Plano de Recuperação: conteúdo mínimo e meios
O PRJ deve descrever detalhadamente a reestruturação, prazos e condições de pagamento, preservando isonomia intraclasse. Meios típicos (art. 50):
- Descontos (haircut), alongamento de prazos e carências, conversão de dívida em equity.
- Venda de UPI (unidade produtiva isolada) com blindagem de sucessão trabalhista/tributária (art. 60).
- Fusão, cisão, incorporação, alteração de controle, arrendamentos.
- Financiamento DIP (art. 69-A), com prioridade e garantias específicas.
- Mediação e conciliação com credores estratégicos; reestruturações prévias (pré-RJ).
Para ME/EPP, há plano especial mais simples (parcelamento até 36 parcelas, correção e juros legais), com quóruns próprios.
Assembleia de Credores e quóruns
Apresentado o PRJ, qualquer credor pode objetar em 30 dias. Havendo objeção, convoca-se a Assembleia-Geral de Credores (AGC), dividida em quatro classes:
- Classe I: trabalhistas e por acidente do trabalho.
- Classe II: com garantia real.
- Classe III: quirografários (sem garantia), inclusive bancários e fornecedores.
- Classe IV: microempresas e EPP.
O plano é aprovado pelo voto favorável em cada classe, observados quóruns de maioria simples de credores presentes e mais da metade do valor dos créditos votantes (regras específicas por classe). Em rejeição pontual, o juiz ainda pode conceder por cram down (art. 58, §1º), se atendidos requisitos como aprovação por, no mínimo, três das quatro classes (ou duas quando só houver três), inexistência de tratamento mais gravoso que o de liquidação e atendimento de mínimos de voto em valor/pessoas.
Efeitos jurídicos do deferimento e da concessão
- Manutenção de contratos essenciais e possibilidade de revisão de cláusulas ipso facto (que preveem rescisão por RJ), evitando a ruptura de insumos críticos.
- Suspensão de execuções e atos constritivos sobre créditos sujeitos; possibilidade de substituição de garantias e liberação de penhoras para viabilizar o PRJ.
- Tratamento dos trabalhistas: prioridade de pagamento (créditos vencidos há até 3 meses limitados; demais conforme plano).
- Tributos: negociáveis por transação tributária (Lei 13.988/2020) e parcelamentos especiais; a RJ não extingue o dever fiscal.
Execução do plano, fiscalização e encerramento
Concedida a RJ (homologado o plano), o devedor cumpre suas obrigações sob fiscalização por 2 anos. O descumprimento relevante pode levar à convolação em falência. Após esse período, o processo pode ser encerrado, prosseguindo o cumprimento do PRJ em juízo ou por meios privados, conforme estipulado.
Contratos com garantia fiduciária e ACC: atenção prática
Créditos lastreados por propriedade fiduciária (duplicatas, recebíveis, estoques) e ACC não se submetem aos efeitos da RJ. Na prática, é comum a renegociação simultânea para evitar bloqueio de capital de giro. A boa arquitetura do PRJ equilibra as fontes de caixa com a proteção do fluxo operacional.
Dados e indicadores que ajudam o juízo e os credores
É recomendável anexar projeções financeiras (12–36 meses), cenários de EBITDA, curvas de caixa, sensibilidade de receitas/custos e mapa de desinvestimentos. Esses elementos dão suporte técnico ao AJ e credores para aprovarem um plano factível.
Boas práticas estratégicas
- Realizar negociações prévias (“pré-pack” brasileiro) com credores âncora para chegar à AGC com consenso mínimo.
- Mapear contratos essenciais e cadeias críticas (energia, fornecedores únicos, logística), protegendo-os no plano.
- Prever gatilhos de performance (step-up/step-down) e covenants operacionais realistas.
- Comunicação transparente com empregados e comunidade para preservar reputação e market share.
Conclusão
A recuperação judicial é uma ferramenta sofisticada de governança de crise. O sucesso depende de diagnóstico contábil robusto, plano tecnicamente consistente, diálogo com credores e execução disciplinada. A reforma de 2020 tornou o instituto mais flexível (DIP, transação tributária, mediação, consolidação), sem perder de vista a viabilidade econômica real. Empresas que tratam o processo como projeto de transformação — não apenas alongamento de passivos — têm maiores chances de sair do juízo recuperacional mais enxutas, capitalizadas e competitivas.
Guia rápido
- Finalidade: permitir que empresas viáveis em crise econômico-financeira se reestruturem sem encerrar atividades.
- Fundamento legal: Lei nº 11.101/2005, alterada pela Lei nº 14.112/2020.
- Quem pode requerer: empresário individual ou sociedade empresária com pelo menos 2 anos de atividade regular.
- Documentos essenciais: demonstrações contábeis, relação de credores e empregados, contratos e exposição das causas da crise.
- Etapas principais: pedido judicial, deferimento, nomeação do administrador, apresentação do plano e assembleia de credores.
- Prazo do plano: o devedor deve apresentar o plano em até 60 dias após o deferimento do processamento.
FAQ NORMAL
1. Qual é o principal objetivo da recuperação judicial?
O objetivo é preservar a atividade econômica, mantendo empregos e promovendo o pagamento ordenado das dívidas, desde que o negócio seja viável. É uma medida de reestruturação, não de perdão de dívidas.
2. Toda empresa pode pedir recuperação judicial?
Não. Estão excluídas instituições financeiras, seguradoras, cooperativas de crédito, sociedades de economia mista e empresas públicas. Apenas empresários e sociedades empresárias com mais de dois anos de atividade regular podem requerer.
3. O que acontece após o deferimento do pedido?
O juiz suspende ações e execuções contra a empresa por até 180 dias (período de “stay”), nomeia um administrador judicial e intima o devedor a apresentar o plano de recuperação.
4. Quais dívidas não são incluídas na recuperação?
Não se submetem à recuperação dívidas tributárias, créditos com propriedade fiduciária, arrendamentos mercantis e contratos de câmbio vinculados à exportação (ACC).
5. O que é o “plano de recuperação judicial”?
É o documento em que a empresa propõe aos credores formas de reestruturação, como parcelamentos, descontos, conversão de dívida em ações, ou venda de unidades produtivas, entre outras medidas previstas na Lei 11.101/2005.
6. O que acontece se o plano for descumprido?
O descumprimento do plano leva à convolação em falência, encerrando o processo recuperacional e iniciando a liquidação judicial da empresa.
Referências legais e doutrinárias
- Lei nº 11.101/2005 – Dispõe sobre recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e da sociedade empresária.
- Lei nº 14.112/2020 – Reforma da LRF: trouxe o financiamento DIP, transação tributária e regras de mediação.
- Artigos 47 a 75 – Definem os objetivos, requisitos e procedimentos da recuperação judicial.
- STJ, REsp 1.700.487/SP – Admite a consolidação substancial em casos de interdependência econômica entre empresas do mesmo grupo.
- STJ, REsp 1.700.487/SP e REsp 1.885.834/SP – Reforçam a possibilidade de mediação prévia e durante a recuperação judicial.
Considerações finais
A recuperação judicial representa uma ferramenta essencial de preservação econômica e social, desde que usada com transparência e responsabilidade. É fundamental o acompanhamento por advogados especializados e consultores contábeis para que o plano seja sustentável e cumpra sua função social.
Essas informações têm caráter educativo e não substituem a orientação de um profissional qualificado.
