Receptação: entenda quando o crime se caracteriza e quais são as punições previstas
Conceito legal e núcleo do tipo
A receptação é crime patrimonial que se configura quando alguém adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta, em proveito próprio ou de outrem, coisa que sabe ser produto de crime; também incorre quem influi para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. Trata-se do enunciado do art. 180, caput, do Código Penal, com pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa. 0
O bem jurídico tutelado é o patrimônio e, reflexamente, a administração da justiça, pois a circulação de produtos ilícitos estimula crimes antecedentes (furto, roubo, estelionato etc.). A estrutura típica exige: (i) existência de crime antecedente que tenha gerado a coisa (não é necessária condenação prévia, basta prova da origem criminosa); (ii) conduta típica (adquirir/receber/transportar etc.); (iii) dolo de aproveitar o produto do crime (na forma simples); e (iv) consumação com o efetivo ingresso da coisa na esfera de disponibilidade do agente.
• Objeto: coisa móvel proveniente de crime (ex.: eletrônicos, veículos, joias, cargas).
• Conduta: adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar ou influenciar terceiro de boa-fé.
• Conhecimento: ciência da origem criminosa (dolo direto ou eventual) – na forma culposa há presunção objetiva, ver adiante.
• Consumação: com o exercício de disponibilidade sobre a coisa; tentativa é possível em atos fracionáveis (ex.: flagrante na entrega).
• Pena básica: reclusão de 1 a 4 anos e multa. 1
Modalidades: simples, qualificada e culposa
Receptação simples (dolo)
Na modalidade simples, o agente age com ciência de que a coisa é produto de crime. Essa ciência pode ser demonstrada por circunstâncias objetivas (preço vil, ausência de nota fiscal, vendedor desconhecido, pressa na negociação) somadas a outros indícios (ocultação, adulteração de sinais identificadores, local ermo). A prova do dolo não exige confissão, sendo admitida a inferência pelas circunstâncias do caso concreto.
Receptação qualificada (atividade comercial/industrial)
O §1º do art. 180 traz a forma qualificada, mais grave, para quando a ação é praticada no exercício de atividade comercial ou industrial (adquirir, receber, transportar, conduzir, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda ou utilizar coisa que deve saber ser produto de crime). A pena eleva-se para reclusão de 3 a 8 anos e multa. O §2º equipara a atividade comercial qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercido em residência. 2
Na prática, essa figura alcança lojistas, ferros-velhos, desmanches, oficinas, e também quem explora comércio irregular/clandestino. Os tribunais têm reconhecido a qualificação quando se demonstra estrutura minimamente empresarial ou habitualidade no giro de bens ilícitos. 3
Receptação culposa
O §3º do art. 180 tipifica a receptação culposa: adquirir ou receber coisa que, pela natureza, pela desproporção entre valor e preço ou pela condição de quem oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso. A pena é de detenção de 1 mês a 1 ano, ou multa, ou ambas. Exemplos típicos: compra de notebook de topo por preço irrisório de desconhecido, sem qualquer documento; aquisição de fios de cobre cortados, em bloco, por valor claramente incompatível com o mercado. 4
Essa modalidade protege o mercado contra negligência grave do comprador, que alimenta a cadeia criminosa mesmo sem ciência efetiva. Em certas hipóteses, se o agente for primário, o juiz pode deixar de aplicar a pena, nos termos do §5º do art. 180 (privilégio voltado à receptação culposa). 5
• Simples (caput): reclusão 1–4 anos e multa. 6
• Qualificada (§1º) – comércio/indústria: reclusão 3–8 anos e multa; §2º equipara comércio irregular/clandestino. 7
• Culposa (§3º): detenção 1 mês–1 ano, ou multa, ou ambas; §5º admite perdão judicial ao primário em hipóteses específicas. 8
Outras previsões relevantes e temas conexos
O Código Penal ainda prevê, no art. 180-A, a receptação de animal (semovente domesticável de produção, como gado), com regime próprio; e o §6º do art. 180 determina que, tratando-se de bens e instalações do patrimônio da União, Estados, Municípios, empresas concessionárias de serviços públicos ou sociedades de economia mista, a pena do caput aplica-se em dobro, reforçando a proteção do patrimônio público e de serviços essenciais. 9
Sujeitos, objeto e consumação
Sujeito ativo é qualquer pessoa (crime comum), com agravamento se praticado no âmbito comercial/industrial (§1º). Sujeito passivo é, em regra, o proprietário lesado pelo crime antecedente — e secundariamente a coletividade — dado o estímulo à criminalidade. Objeto material é a coisa móvel proveniente de crime. A consumação ocorre com o ato típico que coloca a coisa sob disponibilidade do agente (p.ex., recebimento ou ocultação), e a tentativa é admitida quando o iter criminis pode ser fracionado (ex.: flagrante na entrega). 10
Como os tribunais reconhecem o dolo e a culpa
O dolo costuma ser extraído de circunstâncias objetivas: preço vil, vendedor sem lastro, ausência de nota e adulterações (chassi raspado, números suprimidos). Esses elementos, somados, sinalizam ciência (ou ao menos dolo eventual), especialmente na prática habitual do comércio de bens usados. Já a culpa decorre de desatenção grave a sinais evidentes de ilicitude, quando a pessoa deveria presumir a origem criminosa. 11
Receptação no comércio: riscos, due diligence e conformidade
Estabelecimentos de compra e venda de bens usados (eletrônicos, joias, veículos, sucata, peças) são monitorados porque podem escoar produto de crime. A forma qualificada visa desestimular cadeias comerciais que, pela capilaridade, retroalimentam furtos e roubos. Medidas de compliance e due diligence são chave para reduzir risco penal e proteger o negócio.
• Cadastrar o alienante (RG/CPF, foto, comprovante de endereço).
• Exigir documento de origem (nota fiscal, declaração formal do proprietário, termo de transferência).
• Checar bases de bens roubados/furtados (p.ex., chassi, IMEI, números de série).
• Avaliar preço versus mercado (evitar preço vil).
• Manter livro/arquivo de entradas e saídas com fotos e números identificadores.
• Adotar política de recusa (sem nota, sem cadastro, sem compra).
• Treinar equipe para reconhecer adulterações e comportamentos suspeitos.
• Instituir cláusulas contratuais que prevejam responsabilidade do fornecedor pela origem lícita.
Provas, investigação e cadeia de custódia
A investigação se vale de documentos de transação (notas, recibos, comprovantes de transferência), mensagens, rastreamento logístico, perícias (p.ex., IMEI de celulares, chassi de veículos, etiquetas RFID), além de relatos de vítimas e testemunhas. Nas hipóteses comerciais, livros de registro e sistemas de gestão de estoque são fundamentais para reconstruir o fluxo do bem. A cadeia de custódia deve ser preservada para validade probatória.
Na receptação culposa, os pontos críticos de prova são: disparidade gritante de preço, origem não demonstrada e perfil do vendedor (desconhecido, sem referências, pressa excessiva). Esses elementos compõem a presunção objetiva do §3º (o agente deveria saber). 12
Dosimetria da pena, benefícios e efeitos
A pena no caput (1–4 anos) permite, em muitos casos, substituição por restritivas de direitos se preenchidos os requisitos do art. 44 do CP; já na qualificada (3–8 anos), isso se torna mais difícil, dada a pena superior e a reprovabilidade maior da conduta. Em receptação culposa, pela natureza de detenção e pelo mínimo de 1 mês, é frequente a aplicação de penas alternativas. Em crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça, pode incidir o arrependimento posterior (art. 16 do CP) com redução de 1/3 a 2/3 se houver reparação do dano até o recebimento da denúncia. (Fundamento geral de direito penal; reforço: o art. 180 é crime patrimonial sem violência.)
Quando os bens pertencem a entes públicos ou concessionárias, a pena do caput dobra (§6º), refletindo a proteção de infraestruturas essenciais (p.ex., cabos de energia/telecom). 13
Casos práticos (hipóteses didáticas)
Compra de celular sem nota por preço irrisório
Um consumidor adquire smartphone topo de linha por R$ 300 em praça pública, sem caixa nem nota, de vendedor itinerante. Mesmo sem prova de ciência efetiva, a desproporção de preço, a condição do vendedor e a falta de documentos preenchem a culpa do §3º. 14
Loja de usados que rotineiramente compra sem procedência
Estabelecimento mantinha estoque de notebooks e bicicletas sem registros de origem, com parte dos números de série raspados. O contexto sugere atividade comercial estruturada voltada ao escoamento de produtos ilícios, atraindo a qualificação do §1º (3–8 anos). 15
Intermediação para terceiro de boa-fé
Pessoa “ajuda” a vender bicicleta sabidamente furtada a colega que desconhece a origem. O intermediário influenciou para que terceiro, de boa-fé, adquirisse coisa criminosa, incidindo no caput do art. 180. 16
Linhas de defesa comuns e riscos
Ausência de dolo (na simples) e boa-fé comprovada são eixos centrais: apresentação de nota fiscal, contratos, rastros de pagamento regular, pesquisa de preços compatível e cadastro do vendedor podem enfraquecer a tese acusatória. Na culposa, questiona-se a presunção objetiva quando o preço não é vil e o fornecedor oferece documentação mínima. Em comércio, a mitigação passa por programas de conformidade e registros padronizados.
• Nota fiscal ou declaração formal de procedência com dados do vendedor.
• Preço compatível com o mercado e comprovação da pesquisa.
• Transferência bancária identificada (em vez de dinheiro vivo).
• Registro de números de série/IMEI no ato da compra e consulta prévia a bases públicas.
• Disponibilidade imediata para entregar o bem e colaborar com a investigação.
Impactos sociais e políticas de redução de receptação
O combate à receptação tem efeito estrutural no ciclo do crime patrimonial: reduzir a demanda por produtos ilícitos encarece a operação criminosa, desestimulando furtos e roubos. Por isso, a legislação agrava a pena para o comércio estruturado e dobra a resposta penal quando atingidos bens públicos. 17
Boas práticas para consumidores e empresas
Consumidores: desconfie de preços muito abaixo do mercado; exija nota fiscal e garantia; verifique números de série/IMEI e, em veículos, histórico e gravames. Empresas: implante políticas de KYC (conheça seu fornecedor), cadastre transações, mantenha controles internos com segregação de funções e use checklists para entrada de produtos.
Conclusão
A receptação se caracteriza quando o agente faz circular produto de crime, sabendo disso (forma simples/qualificada) ou quando, em razão de negligência grave, deveria saber (forma culposa). A lei agrava a resposta quando há estrutura comercial ou quando o patrimônio público é afetado, porque quebrar a ponta de demanda é essencial para reduzir crimes antecedentes. Do ponto de vista prático, consumidores e empresários devem adotar rotinas de verificação de procedência e registro, enquanto, na esfera processual, a prova do dolo ou da culpa é construída por indícios objetivos (preço vil, ausência de nota, vendedor suspeito, adulterações).
Para acusados, a estratégia passa por comprovar boa-fé, documentar a origem, avaliar arrependimento posterior e, quando cabível, buscar soluções consensuais. Para vítimas e órgãos de persecução, rastrear números de série, preservar cadeia de custódia e mapear a rede de escoamento elevam a taxa de recuperação de bens. Em qualquer cenário, a análise jurídica deve ser individualizada e apoiada nos parâmetros legais aqui resumidos: art. 180 (caput, §§1º–3º e 6º), art. 180-A e institutos de parte geral aplicáveis. 18
Guia rápido
- Artigo base: 180 do Código Penal (Receptação).
- Tipo penal: Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar produto de crime.
- Bem jurídico protegido: Patrimônio e segurança do comércio.
- Formas: Simples (dolo), qualificada (atividade comercial) e culposa.
- Pena: 1 a 4 anos (simples); 3 a 8 anos (qualificada); 1 mês a 1 ano (culposa).
- Prova: origem ilícita do bem e ciência ou culpa do agente.
- Diferença para furto: no furto, o agente subtrai; na receptação, ele aproveita o produto do crime.
- Exemplos práticos: compra de celular roubado, desmanche irregular, venda de cabos furtados.
- Competência: Justiça Comum Estadual.
- Prescrição: conforme pena aplicada (arts. 109 e seguintes do CP).
O que é receptação e quando se caracteriza?
A receptação ocorre quando alguém adquire, transporta ou guarda produto de crime, com conhecimento ou culpa sobre sua origem ilícita. O dolo é presumido quando há indícios claros de que o bem provém de furto ou roubo.
Quais são as modalidades de receptação?
O Código Penal prevê três formas: simples (art. 180, caput), qualificada (exercício de comércio ou indústria) e culposa (quando o agente deveria presumir a origem criminosa).
Qual a diferença entre receptação e furto?
No furto, o agente subtrai diretamente o bem; na receptação, ele apenas adquire ou oculta algo já furtado, dando continuidade ao crime original.
É preciso condenação do autor do crime anterior?
Não. Basta provar que o bem é produto de crime, ainda que o autor do delito antecedente não tenha sido identificado ou condenado.
O que caracteriza a receptação culposa?
Caracteriza-se pela negligência: o comprador adquire algo com preço muito baixo, sem nota ou de pessoa suspeita, sem verificar a procedência.
Quais são as penas aplicáveis?
Simples: reclusão de 1 a 4 anos e multa; qualificada: 3 a 8 anos e multa; culposa: detenção de 1 mês a 1 ano ou multa.
Existe agravante para receptação de bens públicos?
Sim. O §6º do art. 180 do CP dobra a pena quando o objeto pertence ao poder público, concessionária ou sociedade de economia mista.
O que é receptação qualificada?
Ocorre quando o agente pratica o ato no exercício de atividade comercial ou industrial, inclusive clandestina ou irregular.
Quais provas são usadas na investigação?
Nota fiscal, valor de compra, identificação de vendedores, mensagens, imagens de câmeras e adulteração de números de série ou chassi são indícios relevantes.
O comprador pode ser absolvido se provar boa-fé?
Sim. Caso comprove a origem legítima do bem e demonstre diligência mínima (nota fiscal, pagamento rastreável, preço compatível), pode haver absolvição.
Fundamentação legal e técnica
A receptação é disciplinada pelo artigo 180 do Código Penal e seus parágrafos. A modalidade culposa está prevista no §3º e a qualificada no §1º. A jurisprudência do STJ reforça que o dolo pode ser inferido por indícios (AgRg no REsp 1962833/RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas). Além disso, a Súmula 554 do STF dispõe que a restituição do bem não extingue a punibilidade, apenas influencia na pena.
Outras normas complementares: art. 91, II, do CP (perda dos instrumentos e produtos do crime), e art. 16 (arrependimento posterior). Para receptação de animal, aplica-se o art. 180-A do CP.
Considerações finais
A receptação é uma das infrações mais recorrentes em crimes patrimoniais, alimentando o ciclo de furtos e roubos. O combate eficaz exige atenção não apenas da polícia, mas também dos consumidores e comerciantes, que devem verificar a procedência dos produtos e evitar negócios suspeitos. A boa-fé se comprova com documentação e diligência. Já quem atua de forma profissional e negligente está sujeito a penas severas e até à perda do negócio.
Essas informações têm caráter educativo e não substituem a análise individual de um advogado ou profissional habilitado. Em caso de dúvida, procure orientação jurídica especializada.