Legalidade e Anterioridade: Os Escudos Constitucionais do Contribuinte no Direito Tributário

Princípios Constitucionais Tributários: Legalidade e Anterioridade (Parte 1)

Os princípios constitucionais tributários são as linhas-mestras que limitam e orientam o poder de tributar do Estado. Entre eles, dois se destacam como autênticos “escudos” do contribuinte: legalidade e anterioridade. O primeiro impede cobranças sem lei; o segundo veda surpresas fiscais, ao exigir um lapso temporal entre a criação/majoração do tributo e a sua cobrança efetiva. Juntos, formam a coluna vertebral da segurança jurídica tributária.

1. Por que começar por legalidade e anterioridade?

Porque eles respondem a duas perguntas práticas que todo contribuinte faz: “Posso ser cobrado sem lei?” (legalidade) e “Se a lei saiu hoje, já pago amanhã?” (anterioridade). Sem essas respostas, não há previsibilidade, planejamento financeiro nem confiança nos investimentos. É por isso que, historicamente, onde a tributação se afasta desses princípios, a economia retrai e a litigiosidade explode.

2. Princípio da Legalidade Tributária

Inscrito no art. 150, I, da CF/88 e detalhado pelos arts. 97 e seguintes do CTN, determina: “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.”

2.1. O que a lei precisa definir (núcleo mínimo)

O art. 97 do CTN aponta o que depende de lei em sentido estrito:

  • instituição ou extinção de tributos;
  • majoração ou redução de alíquotas, salvo exceções constitucionais (ex.: IPI, II, IE, IOF e CIDE-combustíveis por decreto nas condições da CF);
  • definição do fato gerador, base de cálculo e sujeitos (ativo e passivo);
  • fixação de penalidades e hipóteses de exclusão/suspensão/extinção do crédito tributário.

Em termos práticos: sem lei não há novo imposto, não há nova multa, não há “alargamento” de fato gerador por ato infralegal. Portaria, instrução normativa ou decreto não podem criar obrigações materiais além do que a lei autorizou.

2.2. Reserva legal x Regulamentação

A reserva legal exige que os elementos essenciais constem da lei. A regulamentação traduz o “como fazer” e pode detalhar procedimentos, formularios e rotinas, sem inovar no mundo jurídico. O teste prático é simples: se a novidade impacta quanto, quem, o que ou quando se paga, então deveria estar na lei, não em ato infralegal.

2.3. Exceções constitucionais à legalidade estrita (flexibilizações)

A Constituição, visando agilidade macroeconômica, permite ao Poder Executivo modular alíquotas de tributos com função regulatória:

  • II e IE (comércio exterior), IPI, IOF e CIDE-combustíveis – alíquotas podem ser alteradas por decreto, respeitando limites constitucionais e legais;
  • Contribuições previdenciárias incidentes sobre folha/salário não entram nessas flexibilizações;
  • ICMS e ISS dependem de leis específicas e, em geral, normas complementares (convênios, LC, lei municipal).

Essas hipóteses não revogam a legalidade; apenas deslocam, sob autorização constitucional, o instrumento de alteração de alíquota para um ato do Executivo, com controle político e judicial.

2.4. Jurisprudência estruturante sobre legalidade

  • Tese do século (ICMS fora da base de PIS/Cofins): reforça a ideia de que a base de cálculo é matéria de lei e que o “faturamento” não comporta tributo alheio;
  • Taxas x tarifas: o STF coíbe taxas sem base em exercício de poder de polícia ou serviço específico e divisível;
  • Substituição tributária e regime monofásico: exigem lei e respeito a limites constitucionais.

3. Segurança jurídica e legalidade: efeitos práticos

Para a empresa, a legalidade permite precificar produtos com base estável; para a pessoa física, evita “surpresas” no bolso. Para a Fazenda, dá legitimidade e previsibilidade arrecadatória. O fluxo é virtuoso: mais confiança → mais investimento → mais base tributária.

4. Princípio da Anterioridade

O art. 150, III, “b” e “c”, da CF/88 traz dois escudos temporais: anterioridade anual (do exercício) e anterioridade nonagesimal (noventena). A mensagem é direta: não se cobra tributo de uma lei “de ontem”.

4.1. Anterioridade anual (do exercício)

Lei publicada hoje só pode ter efeitos de cobrança a partir do próximo exercício financeiro (1º de janeiro). Ex.: lei que majora IPTU em setembro/2025 só pode ser cobrada em 2026.

4.2. Anterioridade nonagesimal (noventena)

Além do próximo exercício, muitas hipóteses exigem 90 dias entre a publicação e a cobrança (art. 150, III, “c” e §1º). A noventena evita “viradas de mesa” mesmo quando a lei sai no fim do ano.

4.3. Como os dois escudos se combinam

Regra geral: aplicam-se ambos (próximo exercício + 90 dias). A cobrança só começa quando os dois prazos tiverem sido respeitados. Exceções constitucionais podem afastar um ou outro, conforme o tributo.

4.4. Exceções constitucionais

  • II, IE, IPI e IOF: não se submetem à anterioridade; podem ser alterados imediatamente (regulação econômica);
  • Imposto de Renda: não se submete à noventena, mas observa a anterioridade anual;
  • Contribuições sociais (ex.: PIS/Cofins): observam a noventena (art. 195, §6º);
  • Empréstimos compulsórios para calamidade/guerra: sem anterioridade (art. 148, I), dada a urgência excepcional.

4.5. Casos de “pegadinha” frequentes

  • Reforma de base de cálculo x “majoração disfarçada”: alterar a base de cálculo para aumentar o valor devido exige respeito à anterioridade/noventena;
  • Revisão de planta de valores do IPTU: em regra, é majoração e deve observar anterioridade (e, quando cabível, noventena caso a lei local a incorpore).

5. Linha do tempo prática

Publicada a lei em 10/10/2025:

  1. Anterioridade anual: só em 01/01/2026;
  2. Noventena: 90 dias após 10/10/2025 ≈ 08/01/2026;
  3. Início de cobrança: quando o último prazo vencer. Aqui, 08/01/2026 (pois a anual já se cumpriu em 01/01/2026).

6. Legalidade + Anterioridade na prática do contribuinte

Se houver cobrança sem lei, ou antes de 1º de janeiro/noventena, cabe impugnação administrativa, mandado de segurança ou ação anulatória, buscando sustação de exigibilidade, compensação ou repetição do indébito.

7. Estudos de caso (didáticos)

7.1. “Decreto surpresa” aumentando alíquota de IOF

É possível imediatamente? Sim, porque a CF autoriza modulação por decreto no IOF. Mas isso é exceção expressa. Se o mesmo ocorresse no ISS, seria inconstitucional: alíquota de ISS depende de lei municipal e respeito aos prazos de anterioridade/noventena quando exigidos.

7.2. “Lei de base ampliada” do IPTU em dezembro

Mesmo publicada em 20/12, a cobrança só pode ocorrer no exercício seguinte (e, via de regra, não precisa de noventena quando a CF não a exige para IPTU). Em muitos municípios, porém, respeita-se também um intervalo mínimo por escolha política/legislativa.

8. Conclusão da Parte 1

Legalidade e anterioridade formam o alicerce da previsibilidade tributária. Sem elas, a tributação vira loteria; com elas, o sistema ganha racionalidade e aceitabilidade social. Na Parte 2, vamos aprofundar exceções, teses atuais, controle de constitucionalidade, impacto para planejamento tributário e um “kit de verificação rápida” para decidir, no dia a dia, se uma cobrança é exigível.

Princípios Constitucionais Tributários: Legalidade e Anterioridade (Parte 2)

9. Exceções constitucionais: por que existem?

As exceções (II, IE, IPI, IOF, CIDE-combustíveis, IR sem noventena, empréstimos compulsórios de guerra/calamidade etc.) refletem necessidades de política econômica e resposta rápida. O comércio exterior e o crédito exigem ajustes céleres; a guerra e a calamidade não esperam o próximo exercício. A chave é equilíbrio: flexibilidade sem arbitrariedade, sempre sob controle judicial e político.

9.1. “Flexibilidade responsável”

  • Mesmo quando há dispensa de anterioridade, motivação técnica e publicidade são cruciais;
  • Decretos que modulam IPI/IOF devem ser coerentes com finalidades regulatórias (ex.: desestimular consumo de crédito, conter inflação, incentivar setor produtivo).

10. Legalidade material: quando a lei existe, mas é inconstitucional

Ter lei não basta. É preciso que ela respeite a Constituição (legalidade material). Exemplos:

  • Lei municipal cria taxa de iluminação pública: inválida (já existe contribuição específica – COSIP – e taxa exige serviço específico e divisível);
  • Lei estadual inclui ICMS em sua própria base: ofende a CF e a lógica do sistema, além de violar capacidade contributiva;
  • Lei amplia fato gerador por analogia: vedado no art. 108, §1º, do CTN (interpretação extensiva x analogia para ampliar tributo).

11. Anterioridade: mapeando hipóteses especiais

Tributo Anterioridade anual Noventena Observações
II / IE Dispensada Dispensada Regulação de comércio exterior por decreto
IPI Dispensada Dispensada Função extrafiscal marcante
IOF Dispensada Dispensada Crédito, câmbio, seguros e títulos
IR Aplica Dispensada Em regra, sem noventena
Contribuições sociais (PIS/Cofins/CSLL) Aplica (regra) Aplica Art. 195, §6º, CF
ICMS/ISS Aplica Em regra, aplica* *Conforme a hipótese; seguir CF e LC 87/96 e LC 116/03
IPTU/IPVA Aplica Noventena discutida conforme norma local Jurisprudência exige lei para majorar base e alíquota

12. Checklist prático de conformidade

  1. Há lei em sentido estrito? Se não, há probabilidade alta de ilegalidade.
  2. Ato infralegal inovou? Se alterou base, alíquota, fato gerador ou sujeito → provável vício.
  3. Respeitou anualidade e noventena? Conte datas com cuidado (atenção a publicação x vigência).
  4. É caso de exceção constitucional? Se sim, verifique motivação e finalidade.
  5. Houve “majoração disfarçada”? Ampliação de base ou corte de benefício equipara-se a aumento.

13. Litígios recorrentes e boas práticas

Litígios comuns: atualização de IPTU por “planta de valores” sem lei; PIS/Cofins sobre receitas não operacionais; redirecionamento de responsabilidade sem base legal; autuações com base em IN/Portaria que inovam.

Boas práticas: monitorar diários oficiais; versionar cálculos; registrar datas de publicação e início de cobrança; treinar times para o “duplo gatilho” (anualidade + noventena); manter pareceres e papers de suporte.

14. Planejamento tributário com segurança

  • Apoiar decisões em lei, precedentes e soluções de consulta;
  • Evitar estruturas baseadas apenas em “lacunas regulamentares”;
  • Documentar substância econômica e propósito negocial;
  • Revisitar posições quando o STF/STJ pacificarem sentido diverso.

15. Estudos de caso (aplicação aprofundada)

15.1. Município revisa IPTU em novembro

Lei aprovada em 15/11/2025 eleva a alíquota e reajusta a planta genérica. Cobrança em 2026? Sim (anualidade). Em geral, sem noventena específica exigida pela CF; mas verifique legislação local e jurisprudência regional.

15.2. Decreto federal altera IPI para itens de tecnologia verde

Vigência imediata possível? Sim, IPI é exceção. Controle: finalidades extrafiscais e coerência com política industrial/ambiental.

15.3. Lei estadual aumenta MVA do ICMS-ST em dezembro

Aplica anualidade e, conforme a hipótese, noventena (muitas cortes entendem que a alteração de MVA/ICMS-ST, quando majora carga, respeita anterioridade). Atenção ao convênio CONFAZ e à lei estadual.

16. Perguntas de concurso (gabarito comentado)

  1. É possível majorar IOF por decreto com vigência imediata? Sim, exceção constitucional.
  2. Lei de IR publicada em julho pode ser cobrada em outubro? Não, deve respeitar anualidade (em regra, sem noventena).
  3. Portaria pode ampliar fato gerador de taxa? Não, reserva legal em matéria tributária (CTN, art. 97).
  4. Noventena aplica-se a PIS/Cofins? Sim, art. 195, §6º, CF.

17. Roteiro de defesa do contribuinte

  • Identificar o ato normativo (lei? decreto? IN?) e sua data de publicação;
  • Conferir competência e materialidade (fato base + base de cálculo + alíquota + sujeito);
  • Checar anualidade/noventena/exceções;
  • Apontar violação a princípios (legalidade, irretroatividade, segurança jurídica);
  • Requerer tutela para suspender exigibilidade, com planilha demonstrativa;
  • Prever alternância: impugnação administrativa → judicial.

18. Síntese executiva para gestores

Antes de aprovar aumento tributário, pergunte: (i) há lei em sentido estrito? (ii) o aumento é explícito ou “disfarçado”? (iii) respeitamos anualidade e noventena? (iv) é caso de exceção? (v) qual a justificativa pública (impacto, finalidade, transição)? Esse check reduz contencioso, melhora a comunicação e reforça legitimidade.

19. Conclusão final

Legalidade e anterioridade não são obstáculos ao desenvolvimento, mas condições para um crescimento sustentável e inclusivo. Eles evitam choques tarifários, protegem o planejamento de famílias e empresas e fortalecem a confiança no Estado. Em um país de alta complexidade fiscal, quem domina esses dois princípios tem metade do caminho andado para interpretar qualquer mudança tributária com precisão e serenidade.

20. Próximos passos na trilha

Na sequência da sua série de Direito Tributário, avançaremos para: isonomia e capacidade contributiva, vedação ao confisco e progressividade/regressividade, fechando o arcabouço constitucional que dá sentido à justiça fiscal.

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