Plano de Recuperação: como elaborar, conquistar quórum e aprovar com segurança
Panorama e fundamentos
A recuperação judicial é um procedimento voltado à superação da crise econômico-financeira do devedor, preservando a empresa, a função social e os empregos. O plano de recuperação é o coração desse processo: descreve meios de saneamento, prazos, descontos e garantias, viabilizando o pagamento aos credores e a continuidade da atividade. Sua disciplina está na Lei 11.101/2005, atualizada pela Lei 14.112/2020. Entre as balizas essenciais estão: apresentação do plano em prazo legal, deliberação pela assembleia de credores (AGC), possibilidade de cram down e fiscalização judicial do cumprimento.
Essência do plano: (i) organizar o fluxo de caixa e a matriz de pagamentos; (ii) equilibrar prazos/descontos com sustentabilidade; (iii) criar métricas de desempenho e gatilhos de revisão; (iv) inserir meios de recuperação compatíveis com a operação.
Conteúdo obrigatório do plano
O devedor deve apresentar o plano com meios de recuperação admitidos em lei (ex.: concessão de prazos e condições especiais, aumento de capital, venda de ativos, arrendamento, cisão/fusão, emissão de valores mobiliários, usufruto de empresa, entre outros), além de demonstrar a viabilidade com dados econômico-financeiros, projeções e tratamento dado a cada classe de credores. A base normativa é a LREF, especialmente os arts. 50 e 53. 0
Checklist documental sugerido
- Relatório explicativo dos meios de recuperação e da viabilidade (premissas macro e operacionais).
- Projeções (DRE, fluxo de caixa livre, balanço) com sensibilidade e covenants.
- Quadro de credores por classes (trabalhistas; com garantia real; quirografários/privilégios; ME/EPP) e mapas de pagamentos.
- Regras de governança durante a recuperação (reportes mensais, indicadores, auditoria independente se cabível).
- Cláusulas de tratamento isonômico dentro de cada classe e instrumentos de execução (confissões, garantias novas, step-up/earn-out).
Prazos processuais críticos
Após o deferimento do processamento, o devedor tem 60 dias para apresentar o plano. A contagem é contínua. 1
Havendo objeção, o juiz convocará a AGC, cuja data não pode exceder 150 dias contados do deferimento. 2
Desde o deferimento, vigora o stay period de 180 dias (suspensão de execuções e atos constritivos), com hipóteses de prorrogação introduzidas pela reforma. 3
Boas práticas de prazo: protocole o plano antes do 60º dia, com versão "congelada" para a pauta da AGC; mantenha um data room para dúvidas dos credores; alinhe marcos do plano ao fim do stay, prevendo gatilhos automáticos se a AGC ocorrer após o 150º dia.
Classes de credores e quóruns na AGC
Os credores deliberam por classes (trabalhistas; com garantia real; quirografários/privilégios; micro e pequenas empresas). O art. 45 fixa as regras de aprovação por classe, exigindo maiorias qualificadas previstas na LREF. 4
Alinhamento de quórum: teste previamente a adesão por classe (sondagens, term sheets), evite discriminações arbitrárias dentro da mesma classe e anexe planilhas demonstrando a isonomia de critérios.
Aprovação, cram down e homologação judicial
Se o plano não atingir os quóruns em todas as classes, o juiz pode conceder a recuperação por cram down quando cumpridos os requisitos do art. 58, §1º (redação da Lei 14.112/2020), que envolvem, entre outros, a aprovação por múltiplas classes e percentuais mínimos favoráveis nas classes dissidentes. 5
Evite nulidades: respeite a ordem de votação, registre presença e votos em ata, explicite critérios de cálculo por valor e por cabeça quando aplicável e anexe o laudo de viabilidade com premissas auditáveis.
Plano alternativo dos credores
Com a reforma, os credores passaram a poder apresentar plano alternativo, em hipóteses e prazos específicos definidos no art. 56 (p. ex., frustrada a aprovação do plano do devedor, mediante deliberação e prazos previstos em lei). A rejeição desse plano alternativo pode levar à convolação em falência, observadas as condições legais. 6
Viabilidade econômico-financeira e matriz de pagamentos
Projeções e premissas
Projete receitas, margens e CAPEX com três cenários (base, estresse, otimista). Mostre o fluxo de caixa livre por, no mínimo, 36 meses, destacando a capacidade de serviço da dívida após tributos e investimentos. As premissas devem dialogar com indicadores setoriais (volume, preço, câmbio, juros) e com o plano operacional (redução de SG&A, renegociação de contratos, mix de produtos).
Tratamento por classes
Para créditos trabalhistas, observe prioridade legal e prazos máximos; para garantia real, modele alongamentos com manutenção/renovação de garantias e, se for o caso, reforços (substituição por cessão fiduciária de recebíveis); para quirografários, combine deságio e step-ups condicionados a desempenho; para ME/EPP, avalie condições simplificadas e faixas de pagamento que preservem o pequeno fornecedor.
Matriz de pagamentos (exemplo ilustrativo)
- Trabalhistas: 12 parcelas mensais após carência de 3 meses, com teto por credor, iniciando em D+120 do deferimento, nos limites legais aplicáveis.
- Garantia real: 72 parcelas mensais com juros referenciados e grace period de 6 meses, mantendo covenants de cobertura.
- Quirografários: deságio de 45% + 48 parcelas, com bônus de cumprimento antecipado (early payment discount).
- ME/EPP: microparcelamento em 36 vezes sem deságio para créditos até determinado teto, com prioridade operacional de pagamento.
Governança, transparência e monitoramento
Inclua reportes mensais ao AJ e Comitê de Credores, com DRE gerencial, fluxo de caixa realizado vs. projetado, KPIs (EBITDA, alavancagem, capital de giro) e gatilhos para revisão do plano. Preveja auditoria independente anual e política de transações com partes relacionadas. Em operações com venda de ativos, detalhe o processo competitivo (teasers, data room, cronograma, critérios).
Erros comuns e como evitar
- Subestimar o capital de giro necessário aos primeiros 12 meses pós-AGC.
- Propor descontos/prazos sem lastro na geração de caixa e sem métricas de desempenho.
- Tratar desigualmente credores de uma mesma classe sem justificativa técnica.
- Ignorar eventos de vencimento antecipado e direitos de terceiros (p. ex., covenants cruzados).
- Deixar o cronograma do plano desconectado de 60/150/180 dias legais, expondo a empresa a execução ao fim do stay.
Conclusão
Um bom plano de recuperação combina técnica financeira, conformidade legal e negociação inteligente. Dominar prazos (plano em 60 dias; AGC em até 150; stay period de 180), conhecer os quóruns por classes e, se necessário, operar o cram down, são peças decisivas. A qualidade da informação — projeções realistas, governança e execução contratual — é o que transforma a aprovação em recuperação efetiva.
Guia rápido
• Finalidade: o plano de recuperação organiza meios, prazos e garantias para superar a crise, preservar a empresa e pagar credores com viabilidade financeiro-operacional.
• Prazos críticos: apresentar em até 60 dias do processamento; se houver objeção, a assembleia de credores deve ocorrer até 150 dias; vigora stay period de 180 dias para suspender execuções.
• Conteúdo mínimo: meios de recuperação (art. 50), matriz de pagamentos por classes, projeções e laudo de viabilidade, regras de governança e transparência.
• Votação: deliberação por classes (trabalhistas; garantia real; quirografários; ME/EPP) com quóruns próprios. Sem quórum, é possível cram down se cumpridos os requisitos legais.
• Plano alternativo: credores podem propor alternativa em hipóteses legais; rejeição pode levar à falência se não houver solução viável.
• Boas práticas: data room para dúvidas, testes de adesão por classe, isonomia intraclasse, covenants medidos por KPIs, auditoria e acompanhamento mensal.
• Erros a evitar: subestimar capital de giro, descontos sem lastro em fluxo de caixa, discriminações arbitrárias e cronogramas desconectados de 60/150/180 dias.
FAQ
O que precisa constar no plano para ser considerado completo?
Descrição clara dos meios de recuperação, projeções (DRE, balanço e fluxo de caixa), tratamento por classes, cronograma de pagamentos, garantias e regras de governança e fiscalização. Anexe laudo de viabilidade com premissas auditáveis.
Como funcionam as classes e os quóruns de aprovação?
Credores votam por classes (trabalhistas; com garantia real; quirografários; ME/EPP). Cada classe possui maiorias legalmente previstas. A aprovação exige observar valor dos créditos e cabeças quando aplicável, sempre com isonomia intraclasse.
Quando é possível o cram down?
Se ao menos parte relevante das classes aprovar e os percentuais mínimos legais forem atingidos, o juiz pode conceder a recuperação mesmo com dissidência de classe, desde que o plano não imponha tratamento mais gravoso injustificado e preserve a viabilidade.
O que acontece se o plano não for aprovado?
Pode haver apresentação de plano alternativo pelos credores nas hipóteses legais. Persistindo a rejeição, o processo pode ser convolado em falência, salvo novas negociações dentro dos limites da lei.
Quais indicadores usar para monitorar o cumprimento?
EBITDA, geração de fluxo de caixa livre, alavancagem, capital de giro, DSO/DPO, venda de ativos vs. cronograma, e taxa de adesão a acordos individuais. Preveja gatilhos de revisão e remédios para descumprimento.
Base normativa essencial (fontes legais)
• Lei 11.101/2005 (LREF), arts. 47 (princípios), 50 (meios), 53 (conteúdo do plano), 56 (assembleia e prazos), 58 §1º (cram down), 45 (quóruns por classe).
• Lei 14.112/2020 – reforma da LREF: ajustes no stay period, plano de credores, mediação e prorrogações.
• Normas locais dos Tribunais sobre AGC, comitê de credores e relatórios do administrador judicial.
Considerações finais
Um plano bem-sucedido alia conformidade legal, viabilidade financeira e negociação qualificada. Estruture pagamentos compatíveis com a geração de caixa, assegure isonomia intraclasse, alinhe o cronograma aos marcos de 60/150/180 dias e mantenha transparência com relatórios e KPIs. Assim, a aprovação tende a se converter em recuperação efetiva e sustentável.
Estas informações são educativas e não substituem a atuação de profissionais qualificados (advogados, administrador judicial, assessores financeiros e auditoria). Antes de decidir, avalie o caso concreto, riscos regulatórios e impactos para credores, sócios e empregados.
