Direito Penal

Peculato: entenda a definição, as espécies e as punições desse crime contra a administração pública

Peculato no Código Penal: definição, alcance e bens jurídicos

O peculato é o delito pelo qual o funcionário público (em sentido amplo, conforme art. 327 do Código Penal) apropria-se, desvia ou subtrai dinheiro, valor ou bem móvel — público ou particular — do qual tem a posse ou administração em razão do cargo; ou, ainda, concorre culposamente para o crime de outrem, dentre outras figuras específicas. A tutela recai sobre a probidade administrativa, a fidúcia institucional depositada na atuação do agente público e, de modo mediato, sobre o patrimônio público e a confiança da coletividade na legalidade da gestão estatal.

O núcleo do tipo mais conhecido (art. 312 do CP, caput) descreve duas condutas principais: apropriar-se e desviar. A primeira supõe o animus de dono (tratar o bem como se fosse seu); a segunda, a transferência de finalidade ou de destinação do bem, em proveito próprio ou de terceiro. O §1º do mesmo artigo compõe o chamado peculato-furto, em que o agente, embora não tendo a posse, subtrai (ou concorre para a subtração) de dinheiro, valor ou bem sob administração pública; e o §2º prevê o peculato culposo, quando o funcionário concorre por culpa (negligência, imprudência ou imperícia) para o crime de outrem. Outras figuras autônomas do capítulo — como o peculato mediante erro de outrem (art. 313) — completam o sistema.

Quem é considerado “funcionário público”

  • Art. 327, caput: quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
  • Equiparações: quem trabalha em entidades paraestatais ou em empresas prestadoras de serviços contratadas ou conveniadas para a execução de atividade típica da Administração (funcionário público por equiparação).
  • Agravante: a pena é aumentada quando o crime é cometido por ocupante de cargo em comissão ou função de direção/assessoramento em entidade da Administração.

Espécies de peculato e distinções operacionais

Peculato-apropriação (art. 312, caput)

Configura-se quando o agente público, tendo a posse lícita do bem em razão do cargo, apropria-se dele — ou seja, passa a comportar-se como proprietário, incorporando-o ao seu patrimônio ou tratando-o como coisa sua. É clássico em rotinas de caixa, almoxarifado e tesouraria, quando valores são desviados para contas pessoais, ou bens de consumo duráveis são retidos de forma definitiva.

  • Sujeito ativo: funcionário público em sentido amplo (art. 327).
  • Objeto material: dinheiro, valor ou bem móvel, público ou particular, sob posse do agente em razão do cargo.
  • Elemento subjetivo: dolo com animus rem sibi habendi (vontade de ter a coisa para si).
  • Pena: reclusão de 2 a 12 anos, e multa.

Peculato-desvio (art. 312, caput)

Ocorre quando o agente confere ao bem pública ou particularmente administrado destinação diversa da prevista, com vantagem para si ou para terceiro. Não há incorporação direta ao patrimônio do servidor; há mudança de finalidade, geralmente para favorecimento indevido (pessoa física ou jurídica). Exemplos: empenhar dotação de forma simulada para beneficiar empresa amiga; usar combustível, veículos, mão de obra e materiais em obras privadas.

  • Prova típica: rastreio documental (logs de sistema, notas de empenho, ordens de serviço), depoimentos e perícias contábeis.
  • Pena: reclusão de 2 a 12 anos, e multa.

Peculato-furto (art. 312, §1º)

Se o agente não detém a posse do bem, mas, valendo-se de facilidades do cargo, subtrai (ou concorre para subtrair) dinheiro, valor ou bem móvel sujeito à administração pública, incide o peculato-furto. A hipótese é autônoma e mais próxima do furto, porém especializada pelo vínculo funcional que fornece a oportunidade para a subtração.

  • Exemplos: servidor de TI que, usando credenciais internas, retira equipamentos; vigilante que facilita a remoção de bens apreendidos.
  • Pena: reclusão de 2 a 12 anos, e multa (mesma do caput).

Peculato culposo (art. 312, §2º)

Verifica-se quando o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem — por descuido, imperícia, imprudência ou negligência — permitindo que terceiro cometa peculato. O tipo pune a falta de zelo do agente em guardar e fiscalizar os bens sob sua responsabilidade.

  • Exemplo: gestor que deixa senhas expostas ou não observa procedimentos mínimos de custódia, possibilitando apropriação por colega ou terceirizado.
  • Pena: detenção de 3 meses a 1 ano.
  • Extinção ou redução: se o agente repara o dano antes do trânsito em julgado da sentença, a punibilidade é extinta; se depois, a pena é reduzida da metade.

Peculato mediante erro de outrem (art. 313)

É o chamado “peculato-estelionato”: o funcionário, no exercício do cargo, apropria-se de dinheiro ou valor que recebeu por erro de terceiro (por exemplo, quando cidadão recolhe taxa pública a servidor, por engano, e este incorpora o valor). Não exige a posse prévia em razão do cargo, mas o recebimento por erro inerente à função.

  • Pena: reclusão de 1 a 4 anos, e multa.
  • Dolo específico: consciência do erro e vontade de se apropriar do valor recebido indevidamente.

Quadro comparativo rápido das espécies

Espécie Núcleo Posse prévia em razão do cargo? Pena
Apropriação (312, caput) Apropriar-se do bem Sim Reclusão 2–12 anos e multa
Desvio (312, caput) Dar destinação diversa Sim Reclusão 2–12 anos e multa
Furto (312, §1º) Subtrair ou concorrer para subtração Não (há administração pública sobre o bem) Reclusão 2–12 anos e multa
Culposo (312, §2º) Concorrer por culpa para crime de outrem Detenção 3 meses–1 ano; extinção/redução se reparar
Mediante erro de outrem (313) Apropriar-se do que recebeu por erro Recebimento por erro, no exercício do cargo Reclusão 1–4 anos e multa

Elementos estruturais e questões probatórias

Objeto material e disponibilidade

Embora o tipo se refira a dinheiro, valor ou bem móvel, admite-se que certos bens imateriais ou documentos representativos (valores mobiliários, créditos, cartões corporativos) sejam objeto do delito. O ponto crucial é a disponibilidade fática conferida pelo cargo. No desvio, o foco está na quebra de finalidade pública (deslocamento indevido da destinação). Em apropriação e furto, o centro é a inclusão patrimonial (para si ou para outrem) ou a retirada clandestina do bem do patrimônio público/particular administrado.

Consumação e tentativa

  • Apropriação: consuma-se quando o agente inverte o título da posse, praticando atos de dono. A restituição posterior não descaracteriza a consumação, podendo atuar apenas na dosimetria.
  • Desvio: consuma-se com o ato de dar destinação diversa (p. ex., pagamento indevido), ainda que etapas burocráticas subsequentes venham a ser sustadas.
  • Furto: consuma-se com a subtração e inversão da posse; tentativa é possível quando interrompido por fatores alheios ao agente.
  • Culposo: é crime de resultado (o de outrem), exigindo demonstração do nexo causal entre a culpa e a ocorrência do peculato alheio.

Vantagem e terceiro beneficiado

Os tipos do caput exigem proveito próprio ou alheio, o que abarca situações em que o terceiro favorecido é pessoa física ou jurídica (empresa contratada, associação, fundação privada, etc.). A prova costuma passar por trilhas financeiras, contratos simulados, notas fiscais, ordens de pagamento e perícias que revelem a transferência de utilidade indevida.

Fontes probatórias usuais

  • Contábil/financeira: extratos, liquidações, conciliações, auditorias independentes.
  • Digital: logs de sistemas, trilhas de autorização, e-mails institucionais.
  • Documental: notas de empenho, ordens de serviço, requisições, processos de pagamento e documentos de guarda (almoxarifado/depósito).
  • Testemunhal: servidores da cadeia de custódia do bem, controladores internos e externos.
  • Perícias: contábeis e de engenharia, para aferir quantidade/qualidade de bens e serviços.

Relações com outros delitos e concurso de crimes

Frequentemente o peculato aparece em concurso com corrupção (art. 317), concussão (art. 316), organização criminosa (Lei 12.850/2013), lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998), fraude em licitações/contratos (arts. 337-E a 337-P do CP) e falsidades documentais. Em hipóteses de desvio para empresas de fachada, também se vislumbra o delito de lavagem como etapa de ocultação/integração do produto. Na execução, a distinção entre peculato-desvio e emprego irregular de verbas públicas (art. 315) depende da gravidade e finalidade da alteração: o primeiro supõe proveito ilícito ou ruptura relevante da finalidade pública; o segundo, emprego irregular sem finalidade específica de proveito.

Improbidade administrativa x peculato

Os mesmos fatos podem gerar responsabilização civil-administrativa por improbidade (Lei 8.429/1992, na redação vigente) e penal por peculato. Não há bis in idem porque bens jurídicos e sanções são distintos. Todavia, a prova compartilhada e decisões terminativas em uma esfera podem influenciar o juízo sobre o dolo, a existência do dano e a recomposição ao erário.

Boa governança e prevenção de riscos de peculato

Controles internos e segregação de funções

  • Dupla checagem para pagamentos e saídas de estoque; perfis de acesso granulares em sistemas; revisões independentes.
  • Rastreabilidade (documentos numerados, logs imutáveis, conciliações periódicas e inventários físicos).
  • Política de conflitos de interesse e declarações de relacionamento com fornecedores.
  • Auditorias internas e externas com plano amostral baseado em risco.
  • Canal de denúncias, treinamentos e rodízio de funções sensíveis (tesouraria, compras, almoxarifado).

Indicadores de risco (sinais de alerta)

  • Diferenças persistentes entre estoque físico e contábil sem justificativas plausíveis.
  • Pagamentos urgentes recorrentes fora do fluxo normal, sem documentação robusta.
  • Uso de conta única por vários servidores, sem trilha individualizada de autorização.
  • Contratos com aditivos atípicos e alterações de escopo que beneficiam sempre os mesmos.
  • Reembolso de despesas com notas de procedência duvidosa ou empresas recém-constituídas.

Visual didático: severidade comparada das penas

Gráfico de barras ilustrativo: alturas proporcionais às faixas de pena privativa de liberdade previstas no Código Penal.

Questões sensíveis em defesa e acusação

Erro de proibição e atipicidade material

Se o agente atua sob interpretação razoável de norma administrativa — p. ex., acreditando que podia remanejar itens entre projetos com fundamento em regulamento — pode haver erro de proibição inevitável, excluindo a culpabilidade. Já a atipicidade material surge em hipóteses de mínima ofensividade e ausência de prejuízo ou de risco relevante à probidade, quando o fato não ultrapassa a esfera disciplinar. Contudo, desvios com proveito particular ou quebra de finalidade raramente comportam essa leitura.

Reparação do dano e efeitos penais

Nos peculatos dolosos (caput e §1º), a reparação não extingue a punibilidade, mas pode reduzir a pena, demonstrar arrependimento e mitigar consequências civis. Já no peculato culposo, a lei prevê extinção da punibilidade se a reparação ocorrer antes do trânsito e redução pela metade se posterior.

Competência e conexão

A competência, via de regra, segue o lugar da consumação. Em desvios com repasses federais, convênios ou sistemas informatizados federais, a Justiça Federal pode ser chamada, conforme interesse direto da União. Em situações com organização criminosa e pluralidade de crimes, a conexão pode unificar julgamentos para melhor apuração do contexto.

Estudos de caso (hipóteses exemplificativas)

  • Desvio de combustíveis: gestor autoriza abastecimentos “fantasmas” em cartões corporativos; triangulação de notas aponta proveito para frota privada de terceiros. Enquadramento: peculato-desvio.
  • Caixa do posto de saúde: atendente recolhe em numerário valores de taxas e os deposita em conta pessoal, quitando só parte no sistema. Enquadramento: peculato-apropriação ou por erro, conforme dinâmica do recebimento.
  • TI e equipamentos: servidor de tecnologia substitui computadores novos por usados em almoxarifado e direciona os novos a terceiros. Enquadramento: peculato-furto (subtração valendo-se do cargo).
  • Chaves e cofres: responsável deixa senhas de cofre anotadas à vista; colega retira valores. Enquadramento: peculato culposo para o primeiro (concorrência por culpa) e doloso para o segundo.

Boas práticas para reduzir exposição

  1. Inventários periódicos e conciliações com assinatura eletrônica e timestamp verificado.
  2. Fluxos eletrônicos de autorização (quatro-olhos) para pagamentos, baixas de estoque e movimentação de bens.
  3. Matriz de riscos por unidade/setor com indicadores (KRIs) e resposta escalonada.
  4. Segregação de funções e rodízio de pessoal em posições críticas.
  5. Auditoria contínua (data analytics) para detectar padrões anômalos de gasto e consumo.

Panorama estatístico e leitura crítica

Não há série nacional unificada e oficial de processos por peculato que cubra todos os entes da federação com granularidade anual. Relatórios de tribunais de contas e de Justiça apontam variações regionais e influência de fatores como profissionalização dos controles, digitalização de processos e governança orçamentária. Em geral, órgãos com estoques materiais relevantes (saúde, educação, manutenção viária, segurança) e grandes fluxos financeiros exibem maior exposição a desvios, o que demanda auditoria contínua e transparência ativa para reduzir a assimetria informacional.

Conclusão

O peculato sintetiza a violação mais sensível da confiança pública: a utilização de prerrogativas funcionais para apropriar-se, desviar ou subtrair valores e bens administrados pelo Estado. Seu regime jurídico combina tipos dolosos severos (com penas de até 12 anos) e uma figura culposa pedagógica, que reforça o dever de cuidado com o patrimônio sob guarda. A diferenciação entre apropriação, desvio, furto, culposo e erro de outrem demanda análise afinada do título da posse, da finalidade do bem e da trilha documental. Em paralelo, a prevenção requer governança e controles internos orientados a risco, com forte rastreabilidade de atos e auditoria contínua, de modo a reduzir oportunidades, fortalecer a responsabilização e preservar a probidade administrativa como valor central do Estado Democrático de Direito.

Mais sobre este tema

Mais sobre este tema

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *