Obrigações de Dar, Fazer e Não Fazer: como identificar e executar sem erro “`0
Modalidades de obrigações: dar, fazer e não fazer — como reconhecer e por que isso muda a execução
No direito brasileiro, a forma como o devedor se compromete determina o remédio jurídico se houver atraso ou descumprimento. Três eixos organizam a matéria: dar (transferir coisa), fazer (praticar uma atividade/serviço) e não fazer (abster-se de um comportamento). A classificação não é formalista: ela deriva do conteúdo econômico da prestação e guia o tipo de execução (entrega de coisa, tutela específica, multa por coerção, perdas e danos, etc.).
1) Obrigação de dar (transferir coisa ou direito)
- Coisa certa (determinada): a prestação recai sobre bem individualizado (ex.: o veículo placa ABC-1234, o quadro “X”). O devedor deve conservar e entregar a coisa no estado pactuado; não pode substituir por equivalente sem consentimento do credor.
- Coisa incerta (determinável): recai sobre gênero/qualidade (ex.: 500 sacas de café tipo 6). Até a concentração (escolha/separação), o devedor pode cumprir com qualquer bem que atenda gênero, qualidade e quantidade convencionados. Após a concentração, a obrigação se “individualiza”.
- Transferência de propriedade/direitos: além da entrega, pode haver dever de transferir domínio (ex.: outorga de escritura, endosso/cessão) e de garantir o exercício do direito (posse mansa, documentação).
2) Obrigação de fazer (prestação de atividade)
- Fungível: pode ser executada por terceiro às expensas do devedor (ex.: conserto de telhado, pintura comum). É chave para o credor porque viabiliza solução rápida: se o devedor não faz, o credor manda fazer e cobra o custo + perdas e danos.
- Infungível/intuitu personae: depende da habilidade pessoal do devedor (ex.: concerto por maestro específico, obra artística exclusiva). Ninguém “substitui” com equivalência. A tutela costuma ser por coerção (astreintes) e, se inviável, por perdas e danos.
- Meio x resultado: em serviços técnicos, pode haver obrigação de meio (empregar diligência, técnica e prudência) ou de resultado (alcançar um fim objetivo — p. ex., entregar software funcional com requisitos X). O enquadramento afeta a prova de inadimplemento.
3) Obrigação de não fazer (abstenção)
- É o dever de não praticar certo ato (ex.: cláusula de não concorrência, proibição de usar marca, não construir além do recuo).
- Violação: praticado o ato proibido, cabe ordem de desfazimento (demolição, retirada de marca) e multa diária para cessar a conduta, além de indenização pelos prejuízos.
Conexões úteis
- Alternatividade: há contratos com duas prestações possíveis (dar ou fazer), cabendo a opção ao devedor/credor; a escolha fixa a modalidade e guia a execução.
- Divisibilidade: algumas prestações admitem cumprimento parcial (entregas fracionadas); outras são indivisíveis (o quadro único). Isso influencia mora, purgação e cálculo de perdas.
- Garantias: arras, cláusula penal, retenção, fiança e garantias reais modulam o risco do inadimplemento em qualquer modalidade.
Mensagem-chave (Bloco 1)
Identificar se a obrigação é de dar, fazer ou não fazer determina os instrumentos de execução disponíveis: entrega/coisa e concentração (dar), execução por terceiro ou astreintes (fazer), ordens de cessação/desfazimento e multa (não fazer). Essa leitura evita pedidos errados e acelera a solução do caso.
Como executar cada modalidade: roteiro prático de remédios, provas e cálculos
A) Obrigações de dar
- Coisa certa: peça entrega com busca e apreensão ou imissão na posse (conforme o caso), cumulado com astreintes para compelir. Se a coisa pereceu por culpa do devedor, converte-se em perdas e danos; se pereceu sem culpa (caso fortuito), avalie a transferência de riscos pactuada e eventual resolução.
- Conservação e frutos: em mora, o devedor responde por deteriorações, frutos e rendimentos da coisa desde o atraso.
- Coisa incerta: enquanto não houver concentração (escolha/individualização), o devedor cumpre entregando qualquer bem que atenda o gênero-qualidade-quantidade. Depois da concentração, aplica-se a lógica de coisa certa.
- Transferência do domínio: além da entrega física, às vezes é necessário título hábil (escritura, registro, endosso). A execução deve descrever o ato translativo.
B) Obrigações de fazer
- Fungível: diante do inadimplemento, o credor pode mandar executar por terceiro, às expensas do devedor, sem prejuízo de perdas e danos. Útil para obras/serviços técnicos onde a troca de fornecedor é possível.
- Infungível: privilegia-se a tutela específica (ordem para fazer) com astreintes (multa diária) para coerção. Persistindo a inviabilidade (fática ou jurídica), a pretensão migra para indenização equivalente.
- Meio x resultado: na obrigação de meio, o foco probatório é diligência técnica (provas de protocolo, qualificação, boa prática). Na de resultado, compara-se o entregável com o que foi contratado.
C) Obrigações de não fazer
- Coerção e tutela inibitória: cabe ordem de abstenção com astreintes; em descumprimento, além da multa, exige-se o desfazimento do ato (ex.: retirar obra irregular, apagar conteúdo infrator).
- Cláusulas de não concorrência/confidencialidade: descreva com precisão objeto, prazo, território e público; em violação, combine cessação imediata com multa contratual e prova do dano (ou cláusula penal prefixada).
Mora, culpa e conversão em perdas e danos
- Mora do devedor: atraso sem justificativa desloca-lhe os riscos e abre astreintes e indenização por lucros cessantes (ganhos que o credor deixou de auferir).
- Impossibilidade superveniente: se a prestação tornou-se impossível sem culpa do devedor, em regra extingue a obrigação, resolvendo-se o contrato com devoluções. Com culpa, converte-se em perdas e danos.
- Cláusula penal: quantia prefixada para o caso de inadimplemento/atraso; não impede pedir indenização complementar quando expressamente prevista ou quando o dano for superior (conforme limites legais e entendimento contratual).
Provas e cálculos (o que evita surpresas)
- Dar: notas, registros de propriedade/posse, laudos de estado, recibos de entrega, fotos, inventários; cálculo de frutos/rendimentos desde a mora.
- Fazer: cronogramas, ordens de serviço, requisitos, relatórios de avanço, aceites parciais, registros de tentativa de solução; orçamento comparativo para execução por terceiro.
- Não fazer: prints, notificações, perícias técnicas (marca, software, construção), prova de impacto econômico e de clientela.
Mensagem-chave (Bloco 2)
Execução eficiente segue um fluxo simples: qual é a modalidade? → escolha o remédio adequado (entrega/transferência; fazer por terceiro/astreintes; cessar/desfazer) → quantifique perdas e lucros cessantes → documente cada passo. Trocar o remédio (p. ex., pedir só dinheiro onde cabe tutela específica) encarece e retarda a solução.
Aplicação prática: modelos de cláusula, cenários típicos, FAQ e checklist para não errar
Modelos rápidos (adapte ao seu contrato)
- Dar — coisa certa: “O DEVEDOR entregará ao CREDOR, até dd/mm/aaaa, o bem [descrição e identificação], respondendo por sua conservação até a entrega. Em atraso, sujeita-se a multa diária de R$ xxx, sem prejuízo de perdas e danos e dos frutos do período de mora.”
- Fazer — fungível: “Não executada a prestação até dd/mm/aaaa, poderá o CREDOR mandar executar por terceiro, às expensas do DEVEDOR, arcando este com a diferença de preço, além da cláusula penal de R$ xxx.”
- Fazer — intuitu personae: “A prestação é personalíssima. Em descumprimento, caberá ordem judicial de fazer com astreintes de R$ xxx por dia. Tornando-se impossível por fato imputável ao DEVEDOR, converter-se-á em indenização.”
- Não fazer: “O DEVEDOR se obriga a abster-se de [conduta] pelo prazo de x meses, sob pena de multa de R$ xxx por evento e multa diária enquanto perdurar a violação, além do desfazimento do ato e perdas e danos.”
Cenários críticos (com solução enxuta)
- Venda com coisa substituída “por equivalente”: se a obrigação é de dar coisa certa, o credor pode recusar o equivalente e exigir exatamente o bem contratado, com multa e frutos desde a mora.
- Prestador some na obra (fazer fungível): notifique para purgar a mora e, no silêncio, contrate terceiro; guarde orçamentos/contratos para regresso do custo adicional + multa.
- Desenvolvedor exclusivo adoece (fazer personalíssimo): avalie impossibilidade sem culpa → suspensão/resolução sem penalidade; se houver culpa (abandono), busque astreintes e, frustrada a tutela específica, indenização.
- Cláusula de não concorrência vaga: especifique segmento, território, prazo e clientela; em violação, combine cessação imediata + multa por evento robusta (evita discutir “valor do dano” a cada vez).
- Coisa incerta com oscilação de preço: defina padrões de qualidade, janela de entrega e índice de reajuste; a concentração (separação) consolida o risco sobre o lote escolhido.
FAQ rápido
1) Posso converter direto em dinheiro?
Pode quando a tutela específica é impossível ou ineficaz. Mas começar pelo remédio específico (entregar/cessar/fazer) costuma ser mais rápido e protetivo ao crédito.
2) Quando cabe astreintes?
Em obrigações de fazer e não fazer, para coagir ao cumprimento. É ajustável pelo juiz conforme resistência/tempo e capacidade econômica.
3) E se a prestação se torna impossível por caso fortuito?
Sem culpa do devedor, tende a haver extinção com retorno das partes ao estado anterior; com culpa, há indenização.
4) Em obrigação de meio, como provo inadimplemento?
Demonstre violação de deveres de diligência (protocolos, prazos, técnica). Em obrigação de resultado, prove que o resultado objetivo não foi alcançado.
5) Posso cumular multa contratual e perdas e danos?
Em regra, a cláusula penal substitui a prova do prejuízo até o limite estipulado; a cumulação total depende do que foi pactuado e dos limites legais. Redação clara evita litígios.
Checklist final (antes de assinar ou acionar)
- Identifique a modalidade (dar, fazer, não fazer) e se é coisa certa/incerta, fungível/infungível, meio/resultado.
- Escolha o remédio coerente: entrega/transferência, fazer por terceiro/astreintes, cessação/desfazimento.
- Garanta provas (documentos, registros, fotos, laudos, logs) e notificação de mora.
- Preveja cláusula penal, multa diária e reembolso de execução por terceiro quando cabível.
- Registre frutos, lucros cessantes e custos para cálculo do ressarcimento.
Conclusão operacional
Quem lê o contrato pela lente “dar-fazer-não fazer” escolhe o atalho certo na execução: entrega específica quando há coisa; coerção/terceiro quando há fazer; inibição/desfazimento quando há não fazer. O resultado é menos litígio, mais recuperação de valor e contratos que realmente funcionam.
