Justiça Militar no Brasil: Quem Julga o Quê e Como Funciona na Prática
Justiça Militar no Brasil: competência, estrutura e funcionamento prático
A Justiça Militar brasileira compõe a estrutura do Poder Judiciário com a missão de julgar crimes militares e controvérsias diretamente relacionadas à disciplina e à hierarquia das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) e das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares estaduais. Seu desenho constitucional aparece nos arts. 124 e 125, §§ 3º e 4º, da CF/1988; a organização infraconstitucional está principalmente na Lei 8.457/1992 (Organização da Justiça Militar da União – JMU), no Decreto-Lei 1.002/1969 (Código de Processo Penal Militar – CPPM) e no Decreto-Lei 1.001/1969 (Código Penal Militar – CPM), alterado pela Lei 13.491/2017, que expandiu o conceito de crime militar. Também existem leis estaduais orgânicas da Justiça Militar dos Estados (JME) e normas de organização judiciária dos Tribunais de Justiça.
Mapa normativo — o que procurar
- CF/88, art. 124: competência da Justiça Militar da União (JMU).
- CF/88, art. 125, §§ 3º e 4º: Justiça Militar dos Estados (JME) e regra do Tribunal do Júri para militares estaduais em crimes dolosos contra a vida de civis.
- Lei 8.457/1992: organiza a JMU (STM, Auditorias Militares, Conselhos de Justiça e Juízes-Auditores).
- CPM (DL 1.001/1969) + Lei 13.491/2017: define crimes militares próprios e impropriamente militares; disciplina especial em operações de GLO.
- CPPM (DL 1.002/1969): inquérito policial militar (IPM), ação penal militar, ritos e recursos.
- Leis estaduais: organização da JME (existem TJs militares em SP, MG e RS; nos demais, câmaras especializadas nos TJs).
Competência: quem julga o quê
Justiça Militar da União (JMU)
A JMU julga, em regra, militares das Forças Armadas (e, em hipóteses legais, civis) por crimes militares definidos no CPM e por delitos que, após a Lei 13.491/2017, passaram a incluir também crimes previstos na legislação penal comum quando praticados nas circunstâncias do art. 9º, II e III, do CPM (ex.: em serviço, em local sob administração militar, em razão da função ou em operação militar). A JMU também aprecia ações que envolvam atos disciplinares quando há reflexo jurisdicional (p. ex., habeas corpus contra prisões disciplinares ilegais), mas não substitui a autoridade administrativa na gestão cotidiana da disciplina.
Crimes dolosos contra a vida de civil cometidos por militares das Forças Armadas têm regra específica: a alteração promovida em 2017 inseriu hipótese em que, durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou missões específicas definidas em lei, tais crimes são de competência da Justiça Militar da União. Fora desses cenários, aplica-se a regra geral do júri popular quando o fato for de competência da justiça comum. Em qualquer caso, é indispensável examinar as circunstâncias fáticas, o tipo de missão e os atos normativos que a balizaram.
Justiça Militar dos Estados (JME)
Compete à JME julgar policiais militares e bombeiros militares por crimes militares definidos em lei. O art. 125, §4º, da CF/88 reserva à Justiça comum (Tribunal do Júri) os crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militares estaduais, inclusive quando em serviço — regra mantida pela jurisprudência. Já os demais delitos militares (desacato a superior, deserção, violência contra inferior, peculato militar, crimes contra a administração militar etc.) ficam na esfera da JME, que também analisa algumas matérias administrativas correlatas.
Crimes militares: próprios x impróprios; tempo de paz x tempo de guerra
No CPM, distinguem-se crimes propriamente militares (sem equivalente no CP comum: deserção, violência contra superior, motim etc.) e crimes impropriamente militares (têm equivalente comum, mas se tornam militares pela circunstância legal, como peculato, roubo, lesão corporal quando praticados em condições do art. 9º). Em tempo de guerra, o rol se expande, há tribunais de guerra e regras mais gravosas; em tempo de paz, prevalecem as garantias constitucionais usuais.
- Há relação funcional com o serviço, unidade, missão, lugar sujeito à administração militar ou bem sob guarda militar?
- O fato decorre de ordem, missão oficial ou de dever legal de atuação militar?
- O sujeito ativo é militar (da ativa, reserva convocada, assemelhado nas condições legais)?
- O tipo penal está no CPM ou, sendo crime comum, recai nas hipóteses do art. 9º (Lei 13.491/2017)?
- Há civil envolvido? Se sim, verifique as hipóteses de competência da JMU (excepcional) e a regra do júri na JME (militares estaduais).
Estrutura orgânica
JMU — 1ª e 2ª instâncias
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Auditorias Militares (1ª instância): sedes regionais onde atuam o Juiz-Auditor (magistrado togado) e os Conselhos de Justiça (órgãos colegiados que mesclam o juiz togado e oficiais). Há dois formatos: Conselho Permanente (para julgamento de praças) e Conselho Especial (para oficiais), com composição e rodízio definidos em lei.
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STM — Superior Tribunal Militar (2ª instância): tribunal superior com competência recursal e originária; compõe-se de ministros militares (oficiais-generais das três Forças) e ministros civis de notável saber jurídico, todos nomeados na forma constitucional. Julga apelações, habeas corpus, revisões criminais e ações originárias específicas.
JME — 1ª e 2ª instâncias
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Nos Estados, a 1ª instância é exercida por Juiz de Direito do Juízo Militar (magistrado togado) com participação de Conselhos de Justiça formados por oficiais da PM/BM — modelo semelhante ao da JMU.
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Na 2ª instância: há Tribunal de Justiça Militar em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Nos demais, a competência recursal é exercida por Câmaras Criminais/Turmas especializadas do Tribunal de Justiça estadual.
Ministério Público, Defensoria e Polícia Judiciária Militar
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MPM (ramo do MPU) atua na JMU; MP estadual atua na JME. A ação penal militar é, em regra, pública incondicionada.
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Defensoria Pública (União/Estados) ou defensores dativos assistem acusados hipossuficientes.
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A Polícia Judiciária Militar (PJM) realiza o IPM, presidido por autoridade militar, com remessa ao MP. O controle jurisdicional é do juiz competente, com garantias constitucionais (contraditório, ampla defesa, legalidade das cautelares).
Procedimento e peculiaridades
Fase pré-processual: IPM e medidas cautelares
O IPM é instaurado por autoridade militar e deve respeitar legalidade, prazos e direitos fundamentais (assistência de advogado/defensor, contraditório diferido, exame de corpo de delito em crimes que deixam vestígios etc.). Prisões em flagrante seguem regras do CPPM; prisão cautelar (preventiva/temporária na legislação correlata) exige fundamentação e controle judicial. A remessa do IPM ao MP permite denúncia, arquivamento ou diligências complementares.
Ação penal militar
Recebida a denúncia pelo Juiz-Auditor (JMU) ou Juiz do Juízo Militar (JME), forma-se o processo. A instrução ocorre diante do Conselho de Justiça, presidido pelo juiz togado, com juramento dos oficiais. Há debate oral, quesitação e votação. Em muitos tipos, admite-se suspensão condicional do processo e acordos em moldes especiais quando compatíveis com a legislação. A pena pode implicar efeitos militares (perda de posto e patente, exclusão das forças) decididos em processo próprio e/ou por competência do tribunal, conforme o caso.
Recursos
As decisões de 1º grau são recorríveis ao STM (JMU) ou ao TJM/TJ (JME) por apelação. Cabem habeas corpus, revisão criminal e recursos internos. Contra acórdãos, admite-se recurso extraordinário ao STF nas hipóteses constitucionais.
Funcionalidades institucionais (princípios e controles)
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Independência judicial e imparcialidade: o juiz togado preside e dirige a instrução; oficiais julgam ao lado do togado para trazer a expertise militar sobre disciplina e hierarquia.
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Controle constitucional: atos da Justiça Militar submetem-se ao STF (jurisdição constitucional) e ao CNJ (controle administrativo).
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Devido processo legal, contraditório e ampla defesa aplicam-se integralmente; peculiaridades do CPPM não afastam o núcleo duro das garantias.
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Publicidade e exceções: regra é a publicidade; sigilo em hipóteses legais (segurança de operações, informação sensível).
Tensões interpretativas contemporâneas
Lei 13.491/2017 e a expansão do conceito de crime militar
A reforma de 2017 deslocou para a Justiça Militar, em determinadas circunstâncias, crimes comuns praticados por militar em serviço (p. ex., homicídio, lesão corporal, tráfico de influência), desde que a conexão funcional seja objetiva. A mudança busca dar resposta especializada a fatos ocorridos no contexto militar (base, quartel, missão) e operacionalizar a responsabilização quando há peculiaridades técnico-militares. A crítica mais frequente aponta risco de ampliação excessiva de competência. A jurisprudência tem exigido lastro fático para a conexão (serviço, horário, local, ordem, missão) e afasta o foro militar quando a conduta é pessoal e desvinculada do serviço.
Civis na Justiça Militar
Embora a regra seja julgar militares, civis podem, em hipóteses legais, submeter-se à JMU (ex.: crimes praticados em áreas militares, contra instituições militares, ou participação com militar em crime militar). Em contrapartida, a JME não julga civis; se um civil atua com PM/BM em crime, o processamento costuma se dar na justiça comum com desmembramento ou conexão resolvida caso a caso.
Crimes dolosos contra a vida
Para militares estaduais, a Constituição manda para o Tribunal do Júri quando a vítima é civil, ainda que em serviço. Para militares federais, a regra é mais complexa pelas hipóteses criadas em GLO. A leitura sistemática exige atenção ao tipo de operação, às normas de engajamento, à cadeia de comando e à natureza da missão. Essa zona é uma das mais discutidas na doutrina contemporânea.
Temas frequentes em concursos e prática forense
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Diferença entre infração disciplinar e crime militar, e limites do controle judicial sobre sanções administrativas (legalidade, razoabilidade, devido processo).
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Deserção: prazo, contagem, efeitos sobre a carreira e sobre a ação penal.
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Competência em crimes permanentes que iniciam fora e prosseguem em local militar.
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Perda de posto e patente (oficiais) e exclusão (praças): natureza jurisdicional/administrativa e quem decide.
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Habeas corpus e controle de prisões disciplinares sob ótica constitucional.
Comparativos visuais
Boas práticas para atuação
- Checar competência (JMU/JME/Júri) a partir do fato, local, missão e qualidade do sujeito.
- Auditar a legalidade do IPM, preservando cadeia de custódia e prazos.
- Requerer diligências técnicas (balística, perícia eletrônica, georreferenciamento) típicas de operações.
- Postular medidas cautelares menos gravosas quando possível, com base em proporcionalidade.
- Em GLO, juntar normas de engajamento, ordens de operação e regras de uso da força.
- Planejar recurso (apelação, HC, revisão) desde a sentença, considerando a jurisprudência dos tribunais militares.
Estudos de caso (hipóteses usuais)
Desacato a superior durante instrução
Ocorrido em quartel, durante serviço, com testemunhas militares e relatório disciplinar. A natureza é de crime propriamente militar; competência da JMU (Forças Armadas) ou JME (PM/BM). Eventual transação ou sursis processual depende de cabimento legal específico.
Lesão corporal em abordagem de rotina por PM
Aplica-se a JME por se tratar de militar estadual em serviço; se houver morte, o crime doloso contra a vida de civil vai ao Tribunal do Júri. Se a vítima for militar, mantém-se a competência militar.
Disparo em operação de GLO envolvendo militar do Exército e civil
É preciso verificar se a missão estava formalmente enquadrada como GLO ou outra da lei; nessa hipótese, a competência pode ser da JMU inclusive para homicídio doloso. A defesa e a acusação devem instruir o feito com documentos operacionais (ROE, ordens, mapas).
Indicadores e gestão (sem números absolutos)
Mesmo sem estatísticas uniformes nacionais nesta síntese, alguns indicadores de qualidade são úteis para varas/auditorias:
- Tempo médio do IPM e da instrução até sentença.
- % de processos com perícia técnica concluída no prazo.
- % de acórdãos mantidos em 2º grau.
- Taxa de acordos/recomendações disciplinares que evitaram litígio.
Conclusão
A Justiça Militar cumpre uma função especializada ao garantir resposta jurisdicional a condutas que afetam hierarquia e disciplina — valores estruturantes das instituições militares — sem abdicar das garantias fundamentais do processo penal. Sua competência decorre de previsão constitucional clara, repartindo-se entre JMU (Forças Armadas, e civis em hipóteses legais) e JME (PMs e BMs), com exceções de júri para crimes dolosos contra a vida de civis no âmbito estadual e nuances relevantes em operações de GLO. O funcionamento combina o olhar técnico dos Conselhos de Justiça com a direção de um juiz togado, assegurando controle jurídico e expertise operacional.
Para atuar com segurança, é indispensável: (i) mapear a competência a partir do fato (quem, onde, por quê, em que missão); (ii) dominar o CPM/CPPM e as reformas (especialmente a Lei 13.491/2017); (iii) conhecer a jurisprudência sobre civis, GLO e conexões; e (iv) aplicar boas práticas probatórias e de gestão de prazo. Assim, a Justiça Militar continua a desempenhar seu papel constitucional com efetividade, controle e transparência, equilibrando a proteção da sociedade, a segurança jurídica e os direitos fundamentais dos jurisdicionados.
FAQ — Justiça Militar no Brasil
Qual é a competência da Justiça Militar da União (JMU)?
Julgar militares das Forças Armadas e, em hipóteses legais, civis por crimes militares (CPM), inclusive crimes da legislação comum atribuídos como militares pelas situações do art. 9º do CPM (Lei 13.491/2017). Base constitucional no art. 124 da CF/88. A 1ª instância é nas Auditorias Militares e a 2ª no STM (Lei 8.457/1992).
O que julga a Justiça Militar dos Estados (JME)?
Julga policiais militares e bombeiros militares por crimes militares (tempo de paz e guerra) e matérias correlatas, conforme art. 125, §3º, da CF/88. A 1ª instância é o Juízo Militar (juiz togado + Conselho de Justiça). A 2ª instância é o TJM (SP, MG, RS) ou câmaras especializadas dos TJs nos demais Estados (leis estaduais de organização judiciária).
Crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar vão para o Júri?
Para militares estaduais, sim: a Constituição (art. 125, §4º) remete ao Tribunal do Júri. Para militares das Forças Armadas, a regra pode ser da JMU quando ocorridos em operações de GLO ou hipóteses legais (art. 9º do CPM após a Lei 13.491/2017); fora dessas situações, aplica-se o júri conforme a justiça comum competente.
Qual a diferença entre crime propriamente militar e impropriamente militar?
Propriamente militar: não existe no CP comum (ex.: deserção, motim, violência contra superior) — sempre de competência militar. Impropriamente militar: tem equivalente no CP, mas torna-se militar pelas circunstâncias (ex.: local sob administração militar, serviço, missão) — art. 9º do CPM, com ampliação pela Lei 13.491/2017.
Como funciona o processo penal militar e quem atua nele?
Inicia-se com IPM (Polícia Judiciária Militar) regido pelo CPPM. O MP (MPM na União; MP estadual nos Estados) oferece denúncia; a causa é julgada por Conselho de Justiça presidido por juiz togado. Cabem recursos às cortes militares (STM ou TJM/TJ) e, em matéria constitucional, ao STF. Garantias do devido processo, contraditório e ampla defesa são integrais.
Base técnica — Fontes legais e normativas
- Constituição Federal de 1988:
- Art. 124 — competência da Justiça Militar da União.
- Art. 125, §§ 3º e 4º — Justiça Militar dos Estados e regra do Tribunal do Júri para crimes dolosos contra a vida de civil por militares estaduais.
- Lei 8.457/1992 — Organização da Justiça Militar da União (STM, Auditorias, Conselhos, Juízes-Auditores).
- Decreto-Lei 1.001/1969 — Código Penal Militar (CPM); Lei 13.491/2017 — ampliou o art. 9º (crimes militares por equiparação) e tratou de hipóteses de GLO.
- Decreto-Lei 1.002/1969 — Código de Processo Penal Militar (CPPM) — IPM, ação penal, ritos e recursos.
- Leis estaduais de organização judiciária — estruturam a JME (TJM em SP, MG, RS; câmaras especializadas nos demais).
- Jurisprudência STF/STJ/STM — controle constitucional, definição de competência (civis x militares; GLO; júri) e garantias processuais.