Guerra Fiscal no STF: Entenda as Decisões, Convalidações e Efeitos dos Incentivos de ICMS
Panorama: o que o STF chama de “guerra fiscal”
A expressão guerra fiscal designa a disputa entre Estados e o Distrito Federal para atrair investimentos e circulação de mercadorias por meio de benefícios de ICMS concedidos unilateralmente (isenções, reduções de base de cálculo, créditos presumidos, diferimentos, regimes especiais), sem a prévia aprovação em convênio do CONFAZ. O art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição exige lei complementar para disciplinar a forma de concessão de isenções e incentivos; a LC 24/1975 – recepcionada pela CF/88 – estabeleceu que tais benefícios dependem de convênios celebrados pelos Estados e DF e ratificados por seus Poderes Executivos. Sem convênio, o incentivo é, em regra, inconstitucional.
Ao longo de mais de duas décadas, o Supremo consolidou um tripé jurisprudencial: (i) benefícios sem convênio são inconstitucionais; (ii) Estados de destino podem glosar o crédito de ICMS proveniente de incentivos inconstitucionais concedidos na origem; (iii) para preservar a segurança jurídica, o Tribunal frequentemente modula efeitos das decisões, evitando demolições retroativas de cadeias econômicas. A partir de 2017, a LC 160/2017 e o Convênio ICMS 190/2017 instituíram um regime de convalidação, remissão e transação de benefícios pretéritos, redesenhando o contencioso sem afastar o núcleo da jurisprudência.
Marco normativo e cláusulas constitucionais relevantes
Constituição Federal
- Art. 155, §2º, XII, “g”: exige lei complementar para regular isenções, incentivos e benefícios do ICMS, e a forma de concessão por meio de convênios.
- Art. 150, §6º: tratamento geral para concessão de isenções, exigindo lei específica – que, no ICMS, é combinada com o requisito convencional (CONFAZ).
- Arts. 1º, 3º e 60, §4º: princípios do federalismo cooperativo e cláusulas pétreas que informam a leitura do STF sobre equilíbrio federativo.
Leis complementares e convênios
- LC 24/1975: regula a concessão de isenções do ICM/ICMS via convênio; recepcionada pela CF/88.
- LC 87/1996 (Lei Kandir): estrutura o ICMS (não autoriza benefícios unilaterais).
- LC 160/2017: institui convalidação de estímulos e benefícios fiscais concedidos até 8/8/2017, condicionada a requisitos formais e de publicidade; favorece remissão de créditos tributários e transparência.
- Convênio ICMS 190/2017: operacionaliza a LC 160/2017 (registro/depósito e divulgação em repositórios). A validade depende do cumprimento de prazos e publicação.
Linhas mestras da jurisprudência do STF
1) Inconstitucionalidade de benefícios unilaterais (ADIs e ADPFs)
Desde os anos 1990, o STF declara inconstitucionais leis estaduais que concedem isenções, reduções de base, créditos presumidos, diferimentos ou “tratamentos tributários diferenciados” sem convênio. As ações diretas (ADIs) normalmente são propostas por Governadores, Procuradores-Gerais ou associações impactadas. Em muitos casos envolvendo benefícios a importação (“guerra dos portos”), o STF considerou que a concessão unilateral desviava o comércio para aduanas de Estados incentivadores, violando também a isonomia e as regras de não-cumulatividade.
2) Glosa de créditos no Estado de destino
O Supremo consolidou a tese de que o Estado de destino pode glosar o crédito de ICMS destacado em notas fiscais quando o benefício na origem foi inconstitucional. A razão é impedir que um incentivo inválido na origem transborde para a cadeia e gere crédito financeiro em favor do adquirente, perpetuando o benefício. Essa orientação evita que a não-cumulatividade se converta em veículo de arbitragem fiscal entre unidades da Federação.
3) Modulação de efeitos
Em grande número de ADIs, o STF modulou os efeitos ex nunc (a partir da publicação da ata de julgamento) para evitar colapsos em cadeias produtivas instaladas sob regimes de incentivo e para resguardar legítimas expectativas de contribuintes. Quando havia boa-fé objetiva e programas duradouros, a Corte frequentemente resguardou efeitos pretéritos ou permitiu períodos de transição até que o CONFAZ deliberasse sobre eventual convalidação.
4) Convalidação e transparência pós-2017
Após a LC 160/2017 e o Convênio 190/2017, a discussão migrou: de “benefício existe ou não?” para “benefício foi devidamente convalidado?”. O STF tem reconhecido a constitucionalidade da lógica de convalidação, desde que respeitados os pressupostos formais (publicação, registro, detalhamento, prazos) e a igualdade concorrencial. Convalidação não legitima, contudo, benefícios novos ou desvios não cobertos pelo convênio.
- Sem convênio (ou convalidação válida), o benefício é inconstitucional.
- Estado de destino pode glosar créditos derivados de benefício inválido da origem.
- O STF costuma modular efeitos para o futuro, preservando situações consolidadas de boa-fé.
- A LC 160/2017 e o Convênio 190/2017 não “liberaram geral”: criaram porta formal de saída para passivos pretéritos, com transparência.
Guerra dos portos e benefícios à importação
Benefícios direcionados à entrada de mercadorias
Vários Estados concederam créditos presumidos e reduções de base para importação por seus portos e aeroportos, estimulando a internalização por determinadas aduanas. O STF, em diversas ADIs, declarou a inconstitucionalidade desses programas por ausência de convênio e por distorcer a concorrência entre Estados, além de afetar a neutralidade da tributação sobre a importação. Em linha com a SV 69, a Corte assentou que o ICMS de importação também exige obediência à LC 24/1975, sendo inválidos créditos presumidos à margem do CONFAZ.
Modulação e transição
Em tais julgamentos, o STF frequentemente modulou efeitos para resguardar operações passadas e permitir adaptação de cadeias logísticas, sobretudo onde a política de incentivo vigorava há anos e atraíra investimentos em infraestrutura portuária.
Crédito, débito, glosa e repartição: impactos práticos para contribuintes
Não-cumulatividade sob escrutínio
O desenho do ICMS pressupõe que o crédito na etapa seguinte decorra do imposto devido na etapa anterior. Se o Estado de origem concede crédito presumido unilateral ou reduz a base de cálculo sem convênio, o crédito apropriado pelo adquirente no destino não corresponde a imposto validamente devido. Assim, o STF autorizou a glosa desses créditos pelo destino e, em paralelo, tem vedado a criação de “crédito financeiro” autônomo que ignore a conformidade do destaque na etapa anterior.
Quem suporta o risco?
Na prática, o risco recai sobre ambos os lados: origem (que concede um incentivo inválido e pode perder receitas e reputação) e contribuinte (que sofre glosas no destino e multas). Por isso, o STF tem prestigiado soluções de remissão, transação e modulação – especialmente após a LC 160/2017 – condicionadas à transparência e à publicidade dos programas.
- Verifique se o benefício consta de convênio válido (ou está convalidado no Convênio 190/2017, com publicação idônea e prazo vigente).
- Mapeie glosas potenciais no destino e avalie cláusulas contratuais de recomposição com fornecedores.
- Monitore modulações do STF e programas de remissão/anistia estaduais decorrentes da LC 160/2017.
- Evite desenhar cadeias com ganhos de crédito que dependam de benefícios unilaterais.
Convalidação (LC 160/2017) e o que o STF vem decidindo
Arquitetura da convalidação
A LC 160/2017 determinou que benefícios de ICMS concedidos sem convênio até 8/8/2017 poderiam ser convalidados se o ente registrasse e publicasse os atos em repositórios próprios e observasse as condições do Convênio 190/2017. Também viabilizou remissão e anistia de créditos tributários decorrentes desses incentivos e redefiniu prazos de vigência por tipologia setorial (indústria, agro, portuário, etc.).
Leitura do STF
Ao apreciar impugnações à LC 160/2017 e ao Convênio 190/2017, o STF tem reconhecido sua compatibilidade constitucional como solução política federativa, desde que os Estados cumpram estritamente os requisitos de publicidade, transparência e limitação temporal. A Corte tem repelido novas concessões unilaterais pós-2017 e, quando provocado, reitera a SV 69.
ISS e “guerra fiscal de serviços”: paralelo útil
Competência municipal e LC 116/2003
A disputa também ocorreu no ISS, com Municípios alterando alíquotas mínimas e a regra de local da incidência para atrair contribuintes (instituições financeiras, planos de saúde, cartões). Embora a expressão “guerra fiscal” se refira classicamente ao ICMS, o STF – com base em lei complementar nacional – tem coibido alíquotas inferiores ao mínimo nacional e “migrações artificiais” do local de recolhimento. O paralelo reforça a leitura de que o Supremo protege a uniformidade e a cooperação quando a Constituição reserva à lei complementar a harmonização federativa.
Gráfico didático – evolução qualitativa do contencioso (ilustrativo)
O gráfico abaixo é ilustrativo e sintetiza a tendência observada na jurisprudência: fase de repressão (ADIs e SV 69), fase de modulação intensa e fase de convalidação (LC 160/2017). Não representa dados oficiais.
Impactos para políticas públicas e desenho federativo
Neutralidade e cooperação
Ao reprimir a guerra fiscal, o STF reitera que a concorrência federativa deve se dar por infraestrutura, ambiente de negócios, capital humano e governança, e não por renúncias unilaterais que corroem a base dos demais entes. A Corte tem estimulado soluções cooperativas (convênios) e transitórias (modulação, convalidação), de modo a evitar quebras de arrecadação abruptas e favorecer a previsibilidade.
Reformas e perspectivas
Debates recentes sobre reforma tributária do consumo (substituição do ICMS por IVA dual com alíquota uniforme e destino) buscam reduzir a margem para guerras fiscais. Ainda que tais mudanças reposicionem o contencioso, a lógica constitucional reafirmada pelo STF – lei complementar + coordenação federativa – tende a permanecer como padrão de controle contra novas ondas de competição fiscal predatória.
Quadros informativos essenciais
- Isenção, redução de base, crédito presumido, diferimento, anistia condicionada à fruição futura quando funcionarem como incentivo, regime especial que reduza carga sem convênio.
- Benefícios setoriais e regionais concedidos só por lei estadual, sem cobertura do CONFAZ.
- Programas de importação (“guerra dos portos”) criados unilateralmente.
- Existe ato estadual registrado e publicado nos repositórios exigidos?
- O benefício se enquadra na tipologia e prazo definidos no Convênio 190?
- Há remissão/anistia de passivos formalizada conforme o convênio?
- Não há ampliação ou benefício novo pós-2017 mascarado como convalidação?
- Comprovar boa-fé objetiva (due diligence documental e contratual).
- Demonstrar, se aplicável, convalidação do benefício na origem.
- Pedir aplicação de modulação em linha com precedentes quando a glosa alcançar períodos longos e consolidada confiança legítima.
- Requerer compensações ou regime de transição para evitar descontinuidade operacional.
Conclusão
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre guerra fiscal consolidou um conjunto claro de balizas: (i) benefícios de ICMS dependem de convênio do CONFAZ (ou de convalidação formal, nos termos da LC 160/2017 e do Convênio 190/2017); (ii) Estados de destino podem glosar créditos oriundos de incentivos inconstitucionais; (iii) a Corte maneja a modulação para compatibilizar o princípio federativo com a segurança jurídica, sem premiar a competição predatória. Para gestores públicos, a lição é privilegiar políticas coordenadas e de transparência; para contribuintes, a diretriz é blindar a cadeia com provas de validação normativa, cláusulas contratuais de recomposição e vigilância constante de convênios e de sua vigência. Em síntese: a “guerra” perde terreno quando o jogo é cooperativo, regido por lei complementar, convênios e controle constitucional efetivo.
Guia rápido
- Essência: “Guerra fiscal” é a concessão unilateral de benefícios de ICMS (isenção, redução de base, crédito presumido, diferimento, regimes especiais) sem prévio convênio do CONFAZ. O STF considera tais atos, em regra, inconstitucionais.
- Âncora jurídica: Constituição, art. 155, §2º, XII, “g” (lei complementar para disciplinar concessão via convênios) + LC 24/1975 (regra do convênio) + Súmula Vinculante 69.
- Reflexos práticos: Estado de destino pode glosar créditos gerados por benefício inválido na origem; STF costuma modular efeitos para frente, protegendo a segurança jurídica.
- Pós-2017: LC 160/2017 e Convênio ICMS 190/2017 criaram convalidação, remissão e transparência dos incentivos pretéritos, sem autorizar benefícios novos unilaterais.
FAQ
1) O STF sempre invalida benefícios de ICMS sem convênio?
Sim, como regra. A Súmula Vinculante 69 cristaliza que incentivos de ICMS sem prévia celebração e aprovação de convênio são inconstitucionais. A Corte reconhece, entretanto, que, em nome da segurança jurídica, é possível modular efeitos para preservar situações pretéritas de boa-fé até a data do julgamento.
2) O Estado de destino pode glosar o crédito destacado na nota fiscal?
Sim. O STF assentou que o crédito de ICMS no destino deve corresponder a imposto validamente devido na origem. Se o benefício foi concedido à margem do CONFAZ, o destino pode glosar o crédito, sob pena de perpetuar a vantagem indevida e distorcer a não-cumulatividade.
3) A LC 160/2017 legalizou todos os incentivos passados?
Não automaticamente. A lei abriu via de convalidação, condicionada ao registro, depósito e publicação dos atos e ao enquadramento nos prazos/tipologias do Convênio 190/2017. Sem cumprir tais requisitos, o benefício continua vulnerável a controle e a glosa.
4) Há “guerra fiscal” no ISS e o que o STF tem decidido?
Há disputas semelhantes no ISS. Com base na LC 116/2003 e leis nacionais sobre alíquota mínima e local da incidência, o STF tem barrado práticas predatórias (alíquota abaixo do mínimo; migração artificial do local de recolhimento), reforçando a lógica de coordenação por lei complementar.
Dossiê normativo-jurisprudencial (bases com fontes legais)
- Constituição Federal: art. 155, §2º, XII, “g” (lei complementar para concessão via convênios); art. 150, §6º (lei específica para isenções); princípios do federalismo cooperativo (arts. 1º, 3º, 60, §4º).
- LC 24/1975 (recepcionada): exige convênio do CONFAZ para isenções, reduções, créditos presumidos e outros benefícios de ICMS.
- LC 87/1996 (Lei Kandir): estrutura a não-cumulatividade do ICMS; não autoriza benefícios unilaterais.
- Súmula Vinculante 69 do STF: “É inconstitucional a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS sem prévia celebração e aprovação de convênio pelo CONFAZ”.
- LC 160/2017 + Convênio ICMS 190/2017: regime de convalidação, remissão/anistia e publicidade para benefícios concedidos até 8/8/2017, com prazos setoriais de vigência.
- Linhas firmes do STF (ADIs/ADPFs e REs): (i) invalidação de leis estaduais de incentivo sem convênio, incluindo a “guerra dos portos”; (ii) possibilidade de glosa no destino; (iii) modulação de efeitos ex nunc para evitar colapsos; (iv) convalidação condicionada pós-2017.
Considerações finais
A jurisprudência do STF sobre guerra fiscal consolidou um roteiro claro: benefícios de ICMS são matéria de coordenação federativa por convênios e lei complementar; a concessão unilateral compromete a isonomia, a concorrência e a arrecadação. A resposta judicial combina repressão (SV 69), glosa de créditos e modulação para preservar a segurança jurídica. O período pós-2017 adicionou a convalidação condicionada, premiando transparência e cooperação. Para gestores públicos, a prioridade é a governança por convênios; para empresas, é crucial auditar benefícios, pactuar cláusulas de recomposição e acompanhar a vigência dos atos no CONFAZ.