Imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros: até onde vai a proteção internacional?
A imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros é um dos temas mais delicados e debatidos no Direito Internacional Público. Em essência, ela trata da regra segundo a qual um Estado soberano não pode ser submetido à jurisdição de outro Estado sem o seu consentimento. Essa prerrogativa decorre do princípio da igualdade soberana, consagrado no artigo 2º da Carta da ONU, que reconhece que todos os Estados são juridicamente iguais no cenário internacional.
No entanto, a aplicação prática desse instituto é marcada por controvérsias e pela necessidade de se encontrar um equilíbrio entre o respeito à soberania e a proteção de direitos fundamentais. Por isso, ao longo das últimas décadas, houve uma evolução significativa na forma como os tribunais interpretam e aplicam essa regra.
O fundamento da imunidade de jurisdição
A ideia central da imunidade de jurisdição nasce do antigo princípio latino par in parem non habet imperium, que significa: “iguais não têm autoridade uns sobre os outros”. Isso quer dizer que, no cenário internacional, nenhum Estado pode impor suas leis ou tribunais sobre outro Estado, preservando assim a independência e a autonomia de cada país.
Esse raciocínio é essencial para evitar que litígios internos de um Estado interfiram indevidamente nas relações diplomáticas e nos interesses internacionais. Ao mesmo tempo, cria uma zona de proteção para os atos praticados pelos governos estrangeiros.
Imunidade absoluta x imunidade relativa
A discussão mais relevante nesse campo envolve a distinção entre imunidade absoluta e imunidade relativa (ou restrita). Durante muito tempo, prevaleceu a ideia de que a imunidade era absoluta, ou seja, que nenhum Estado poderia ser processado em tribunais de outro Estado, independentemente da natureza do ato praticado.
Contudo, com o avanço das relações comerciais entre os Estados e o crescimento da participação direta de países em atividades de mercado, surgiu a necessidade de limitar essa proteção. Dessa forma, consolidou-se em várias jurisdições a chamada imunidade relativa, que distingue:
- Atos de império (jure imperii): relacionados à soberania e à autoridade estatal, permanecem protegidos pela imunidade.
- Atos de gestão (jure gestionis): de natureza comercial ou privada, podem ser submetidos à jurisdição de outro Estado.
Essa diferenciação garante que os Estados não utilizem a imunidade como um “escudo” para escapar de responsabilidades em situações que envolvem relações privadas ou comerciais.
Tratados internacionais sobre imunidade
A busca por uniformidade levou à elaboração de tratados internacionais. O mais importante deles é a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e de sua Propriedade, de 2004. O tratado sistematiza a distinção entre atos de império e de gestão, além de estabelecer regras claras sobre:
- Execução de decisões judiciais contra Estados estrangeiros.
- Impenhorabilidade de bens destinados a funções diplomáticas.
- Casos em que a renúncia à imunidade pode ser presumida ou expressa.
Embora nem todos os países tenham ratificado a Convenção, ela reflete uma tendência global de relativizar a imunidade absoluta e adotar critérios mais equilibrados.
Imunidade de jurisdição no Brasil
No Brasil, a jurisprudência também caminhou no sentido da imunidade relativa. O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu em diversas ocasiões que os Estados estrangeiros não podem ser processados em tribunais brasileiros quando se trata de atos de império. No entanto, em situações de relações trabalhistas ou comerciais, é possível a apreciação pelo Poder Judiciário.
Um exemplo marcante são as ações trabalhistas movidas por empregados de embaixadas estrangeiras no Brasil. O STF reconheceu que, ao contratar empregados locais para serviços administrativos, o Estado estrangeiro atua em caráter privado e, portanto, não pode invocar imunidade para escapar da jurisdição brasileira.
Limites à imunidade e direitos humanos
Outro aspecto relevante é a compatibilização da imunidade de jurisdição com a proteção dos direitos humanos. Diversas cortes internacionais e nacionais têm enfrentado a seguinte questão: até que ponto a imunidade pode ser utilizada para impedir que vítimas de violações graves — como tortura, genocídio ou crimes contra a humanidade — busquem reparação?
Em alguns casos, como no julgamento da Corte Internacional de Justiça (CIJ) envolvendo Alemanha e Itália (2012), prevaleceu a visão de que a imunidade estatal ainda se aplica, mesmo em situações de crimes internacionais. Contudo, críticas doutrinárias apontam que essa postura fragiliza a efetividade da justiça internacional.
Aos poucos, surge um movimento de flexibilização, reconhecendo que a dignidade da pessoa humana deve ser considerada um valor superior à proteção da soberania em certos contextos.
Imunidade e execução de bens
Ainda que seja possível processar um Estado estrangeiro em determinadas hipóteses, a execução de bens é outro desafio. A regra geral é que os bens destinados a funções diplomáticas (como embaixadas, consulados e veículos oficiais) são absolutamente impenhoráveis. No entanto, ativos de natureza comercial podem, em tese, ser objeto de execução judicial.
Esse ponto é especialmente sensível porque envolve a necessidade de equilibrar a efetividade das decisões judiciais com o respeito à soberania e às relações internacionais.
A relevância da imunidade no cenário global
A imunidade de jurisdição continua sendo uma peça central do direito internacional contemporâneo. Ela garante que os Estados possam interagir em condições de igualdade jurídica e evita ingerências indevidas em assuntos internos. Ao mesmo tempo, precisa ser interpretada de forma dinâmica, considerando a globalização, o aumento do comércio internacional e a proteção dos direitos fundamentais.
Mais do que uma regra de proteção, a imunidade é hoje um instrumento de equilíbrio entre soberania estatal e responsabilidade internacional.
Conclusão
A imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros permanece como um instituto essencial para a convivência pacífica entre as nações. Seu fundamento está no respeito à soberania e à igualdade, mas sua aplicação deve ser constantemente revisitada para evitar injustiças e garantir a proteção dos direitos humanos.
No cenário atual, prevalece a ideia de imunidade relativa, que reconhece a intangibilidade dos atos de império, mas admite a responsabilização dos Estados quando atuam em caráter privado ou comercial. Assim, a evolução do tema revela que a imunidade não é absoluta, mas sim um mecanismo de cooperação internacional que precisa dialogar com valores como justiça, dignidade e direitos fundamentais.