Homicídio simples explicado: conceito, Júri e pena de 6 a 20 anos
O homicídio simples é a forma básica do crime de matar alguém prevista no art. 121, caput, do Código Penal. O bem jurídico protegido é a vida humana extrauterina – por isso, fatos anteriores ao nascimento são tratados em outro capítulo (aborto). O núcleo do tipo é “matar”, que abrange qualquer conduta idônea a produzir a morte: disparo, esfaqueamento, atropelamento voluntário, envenenamento, afogamento, espancamento, asfixia, omissão relevante quando há dever jurídico de agir, entre inúmeras modalidades. O tipo é aberto: a lei não descreve um modo específico; exige-se que a conduta crie ou potencialize risco juridicamente desaprovado e que, no caso concreto, o resultado morte seja imputável ao agente.
Elementos do tipo e formas de dolo
O elemento subjetivo é o dolo, direto ou eventual. Dolo direto: o agente quer o resultado (ex.: aponta e atira para matar). Dolo eventual: assume o risco de produzir a morte, mantendo a conduta apesar de prever o resultado como possível (ex.: disputa automobilística em via urbana com pedestres e alta probabilidade de morte). A fronteira entre dolo eventual e culpa consciente depende do conjunto probatório: intensidade do risco, contexto, alternativas de evitação e postura do agente antes, durante e depois do fato. Não há necessidade de “ódio” ou “animosidade” – basta a vontade dirigida à morte (ou aceitação consciente do risco).
Quem pode ser sujeito ativo e passivo
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo (crime comum), inclusive quem age por intermédio de outrem (autor mediato) ou em coautoria/participação. O sujeito passivo é qualquer pessoa viva; não há homicídio de recém-nascido ainda no útero (é aborto). A morte relevante é a encefálica, reconhecida pela medicina; a constatação clínica-legal delimita a consumação e evita discussões sobre “suspensão de funções”.
Consumação, tentativa e arrependimento
O crime consuma-se com a morte. É admitida a tentativa quando, por circunstâncias alheias à vontade do agente, o resultado não ocorre (tiro que não atinge órgão vital; vítima socorrida a tempo). Desistência voluntária e arrependimento eficaz (art. 15 do CP) excluem o homicídio consumado quando o próprio agente impede o resultado (leva ao hospital, chama socorro e garante a sobrevivência); nesse caso, responde apenas pelos atos já praticados (lesão corporal). Já o arrependimento posterior (art. 16) não se aplica porque exige crime sem violência ou grave ameaça. Há hipóteses de crime impossível (ineficácia absoluta do meio) e de erro na execução (aberratio ictus): pretendia matar A e mata B; responde por homicídio contra B, com aplicação das regras de transferência do dolo.
Nexo causal e imputação
O vínculo entre conduta e resultado segue a teoria da causalidade com filtros de imputação objetiva: a ação deve criar um risco proibido que se concretiza no resultado. Causas supervenientes relativamente independentes rompem a imputação apenas se por si mesmas produzem o resultado (ex.: atendimento médico absolutamente anômalo e imprevisível que, sozinho, causa a morte). Em regra, erro médico culposo não rompe o nexo – pode gerar concurso de agentes (dolo do autor + culpa do médico) com divisão de responsabilidades.
Omissões relevantes e posição de garantidor
Há homicídio por omissão quando o agente tinha dever jurídico de agir e podia evitar o resultado (crime omissivo impróprio). Exemplos: mãe que abandona recém-nascido ao relento; salva-vidas que deliberadamente não socorre banhista; enfermeiro que, por vingança, omite medicação vital. O dever decorre da lei, de contrato ou da criação prévia do risco. A prova deve atestar possibilidade de ação salvadora (capacidade física, tempo hábil, meios disponíveis) e que a omissão foi determinante para a morte.
Distinções necessárias
Não se confunde homicídio simples com o qualificado (quando presentes motivos ou meios agravados – torpe, fútil, cruel, emboscada etc.), com o privilegiado (redução por relevante valor social/moral ou violenta emoção logo após injusta provocação) e com o culposo (morte por imprudência, negligência ou imperícia). Tais variações impactam diretamente a pena e, em alguns casos, a natureza hedionda do crime. Nesta análise, foca-se o caput – matar alguém sem qualificadoras ou causas privilegiadoras reconhecidas.
Competência constitucional
O julgamento, em regra, é do Tribunal do Júri, por força da Constituição (art. 5º, XXXVIII), que assegura plenitude de defesa, sigilo das votações, soberania dos veredictos e competência para os crimes dolosos contra a vida (tentados ou consumados), e conexos. A fase é bifásica: judicium accusationis (instrução e pronúncia) e judicium causae (sessão plenária). Essas garantias informam toda a prática forense do homicídio simples.
Mensagem-chave desta parte: homicídio simples é tipo aberto, definido por dolo de matar e por um nexo causal robusto entre conduta e morte; admite tentativa e formas omissivas relevantes; é julgado pelo Júri e se distingue de variações qualificadas, privilegiadas e culposas.
Dosimetria da pena: balizas legais, vetores judiciais e prova relevante
A pena abstrata do homicídio simples é de reclusão, de 6 a 20 anos. O juiz aplica o método trifásico: (1) fixa a pena-base à luz das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP; (2) incide agravantes e atenuantes (arts. 61 e 65); e (3) aplica causas de aumento ou diminuição específicas, quando houver. Como o caput do art. 121 não traz majorantes próprias, a terceira fase costuma ter menor protagonismo que em outras figuras, mas podem surgir causas gerais (tentativa, concurso de pessoas com participação de menor importância, continuidade delitiva quando há múltiplos resultados em contexto único etc.).
Primeira fase: pena-base
Na pena-base, o magistrado avalia culpabilidade (medida de reprovação), antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias, consequências e comportamento da vítima. Expressões genéricas não bastam; a jurisprudência exige fundamentação concreta. Exemplos: elevação pela alta intensidade do dolo (execução à queima-roupa após perseguição), pela brutalidade do contexto (múltiplos disparos em ambiente escolar), pelas consequências sociais (morte de responsável único por família numerosa sem rede de apoio). Por outro lado, reduz-se quando há contexto conflituoso bilateral, provocação relevante da vítima, ausência de histórico violento do autor somada a conduta social positiva. Cada vetor não tem “peso fixo”, mas a proporcionalidade exige que variações maiores sejam justificadas por fatos robustos.
Segunda fase: agravantes e atenuantes
Agravantes comuns: reincidência, motivo fútil ou torpe (quando não qualificam), crime à traição (se não configurou qualificadora), meio que dificultou defesa (idem). Atenuantes rápidas: confissão espontânea (ainda que parcial e usada para embasar a condenação), menoridade relativa à época dos fatos (18 a 21 anos), relevante valor moral/social (quando não foi reconhecido o privilégio do §1º), arrependimento e colaboração pós-fato que não impedem a morte mas ajudam a elucidar (entrega da arma, indicação de paradeiro). A Súmula e a prática dos tribunais vedam que agravantes e qualificadoras se sobreponham pelo mesmo fato (bis in idem).
Regime inicial e progressão
Dada a pena concreta e as diretrizes do art. 33 do CP, não é incomum que o regime inicial seja fechado quando a pena ultrapassa 8 anos ou quando as circunstâncias judiciais são desfavoráveis. Com pena menor que 8 anos e vetores favoráveis, pode-se iniciar em semiaberto; raramente em aberto (exige pena mínima e circunstâncias muito positivas). A progressão depende do lapso objetivo (frações de 16%, 20%, 25%, 30%, 40%, 50%, 60% etc., conforme primariedade, hediondez e reincidência) e do mérito na execução (bom comportamento). Como o homicídio simples não é hediondo – salvo quando praticado por grupo de extermínio – aplicam-se as frações mais brandas, desde que não haja outro óbice.
Privilegiado, qualificado e híbridos
O §1º do art. 121 autoriza redução de 1/6 a 1/3 quando o crime é cometido por relevante valor social (ex.: matar tirano opressor em contexto de resistência) ou relevante valor moral (situações extremas de desespero ético), ou sob domínio de violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima. Trata-se de homicídio privilegiado. É pacífica a possibilidade de concurso entre privilégio e qualificadoras de natureza objetiva (meio ou modo), formando o chamado “homicídio privilegiado-qualificado”, com pena qualificada mas tendência de mitigação na dosimetria. Qualificadoras subjetivas (motivo torpe, fútil) são, em regra, incompatíveis com o privilégio por contradição lógica.
Hediondez e efeitos processuais
O homicídio simples não integra a Lei de Crimes Hediondos, exceto quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que por um só agente. Já o homicídio qualificado e o feminicídio são hediondos, com repercussões na execução (progressão mais rigorosa, vedação de anistia, graça e indulto, salvo hipóteses específicas). Essa distinção importa no cálculo de lapso e em pedidos como livramento condicional.
Mensagem-chave desta parte: a pena concreta nasce de uma dosimetria técnica: base bem fundamentada, correta leitura de agravantes/atenuantes e sensibilidade para contextos de privilégio ou hediondez – tudo impacta regime e execução.
Defesas penais, excludentes de ilicitude e culpa exclusiva da vítima
Em crimes contra a vida, a linha entre ilicitude e exculpação é frequentemente disputada no Júri. A defesa pode sustentar excludentes de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito) ou excludentes de culpabilidade (inimputabilidade por doença mental, embriaguez acidental completa, erro de proibição inevitável). Também pode discutir causalidade e imputação (rompimento do nexo por causa superveniente, risco permitido, fato exclusivo da vítima).
Legítima defesa
Exige agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro; meios necessários e uso moderado. A análise é ex ante, do ponto de vista do agente sob tensão. Excesso doloso ou culposo (por medo, surpresa ou emoção) torna o fato punível na medida do excesso. A prova in bonam partem costuma valorizar histórico de violência da vítima, medidas protetivas descumpridas e perícia de dinâmica do confronto (ângulos de tiro, distância, lesões).
Estado de necessidade e estrito cumprimento
No estado de necessidade, o agente sacrifica bem de outrem para salvar direito próprio de perigo atual, não provocado culposamente e inevitável por outro meio; exige proporção entre bens. No estrito cumprimento/exercício regular, agentes públicos e particulares atuam dentro dos limites normativos (ex.: policial em confronto justificado, médico em procedimento consentido). O que excede a norma afasta a excludente.
Erro e inimputabilidade
Erro de tipo essencial invencível afasta o dolo; erro evitável pode reduzir a pena. Erro de proibição inevitável exclui culpabilidade; o evitável atenua. Inimputáveis por doença mental respondem com medida de segurança se comprovada periculosidade. A perícia psiquiátrica e a história clínica são centrais; não bastam rótulos superficiais.
Fato exclusivo da vítima e concausas
Há hipóteses em que a vítima interrompe a cadeia causal (suicídio absolutamente livre posterior à lesão não mortal) ou assume risco extremo plenamente informado. Em regra, porém, imprudências da vítima não eximem o autor quando a conduta dolosa desencadeia o processo letal. A discussão é casuística e depende de laudos, dinâmica do evento e previsibilidade das concausas.
Provas técnicas decisivas
- Perícia de local e balística: trajetórias, distâncias, resíduos de disparo, posição de vítimas e agentes.
- Laudo de necropsia: causa eficiente da morte, tempo de sobrevivência, compatibilidade com versões.
- Exames complementares: toxicológico, genética (DNA), impressão digital, extração de dados digitais.
- Provas digitais: câmeras, celulares, rota de GPS – crescentemente decisivas em dinâmicas de perseguição.
Estratégia no Júri
A defesa busca tese jurídica plausível e narrativa coerente com os autos, evitando contradições entre interrogatório e sustentação oral. O Ministério Público enfatiza elementos de dolo, contexto de periculosidade e consequências para a comunidade. Instrução mal conduzida, com laudos precários, costuma ser a principal causa de nulidade e de decisões instáveis.
Mensagem-chave desta parte: as excludentes e teses defensivas exigem prova técnica consistente e narrativa alinhada; o Júri aprecia fatos, mas a moldura jurídica deve ser bem construída para não transformar dúvidas razoáveis em condenações automáticas.
Aspectos processuais essenciais: do flagrante à sessão plenária
O itinerário processual do homicídio simples começa, muitas vezes, com prisão em flagrante, conversível ou não em preventiva conforme os requisitos do art. 312 do CPP (garantia da ordem pública, conveniência da instrução, assegurar aplicação da lei penal). Medidas cautelares diversas (monitoramento, proibição de contato, recolhimento noturno) podem substituir a segregação. A investigação, conduzida pela polícia judiciária, deve priorizar cadeia de custódia rigorosa para a prova pericial – a violação pode contaminar o processo.
Fase do judicium accusationis
Oferecida a denúncia, o processo segue o rito do Júri: resposta à acusação, audiência de instrução (oitiva de testemunhas, interrogatório), alegações finais e decisão de pronúncia (se houver indícios suficientes de autoria e materialidade), impronúncia, absolvição sumária (excludente manifesta, negativa de autoria inequívoca, atipicidade) ou desclassificação (por exemplo, para lesão corporal seguida de morte ou homicídio culposo). A pronúncia remete o julgamento ao plenário; cabe recurso em sentido estrito.
Plenário do Júri
Na sessão plenária, sorteiam-se jurados, definem-se testemunhas, fazem-se debates orais e quesitam-se as teses (materialidade, autoria, absolvição, qualificadoras, desclassificação). A soberania dos veredictos limita o controle recursal: o Tribunal pode anular decisões manifestamente contrárias às provas dos autos para novo julgamento, mas não substitui o veredito por outro. A defesa deve preparar quesitação clara e estratégias de tempo – inclusive trabalhar teses subsidiárias (absolvição → homicídio privilegiado → desclassificação → reconhecimento da tentativa).
Execução e incidentes
Publicada a sentença, inicia-se a execução provisória em caso de condenação a pena igual ou superior a 15 anos (entendimento que sofreu idas e vindas jurisprudenciais) ou definitiva após o trânsito. Na execução, pedidos de progressão, trabalho externo e saídas temporárias seguem a LEP; faltas graves são apuradas por procedimento administrativo disciplinar. Reparação civil pode ser executada em autos próprios, e medidas protetivas à família da vítima podem coexistir com a execução penal.
Competência e conexão
Regra de competência territorial: lugar do resultado (morte). Quando o resultado e a ação se dão em comarcas distintas, valem as regras do CPP. Crimes conexos (porte de arma, ocultação de cadáver) podem ser atraídos ao Júri. Em caso de múltiplas vítimas, discute-se unidade de processo com quesitação por vítima, evitando contradições.
Mensagem-chave desta parte: o rito do Júri tem peculiaridades que afetam a estratégia desde a investigação; dominar a cadeia de custódia, a pronúncia e a quesitação é tão decisivo quanto discutir o mérito material do homicídio simples.
Quadro prático: conceito, pena e comparações úteis para a atuação
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Definição operacional
- Tipo penal: matar alguém (art. 121, caput, CP).
- Elemento subjetivo: dolo de matar (direto ou eventual).
- Consumação: morte (encefálica). Tentativa: admitida quando o resultado não ocorre por circunstância alheia.
- Meios executórios: quaisquer (arma de fogo, arma branca, veneno, fogo, omissão relevante etc.).
- Competência: Tribunal do Júri (crimes dolosos contra a vida e conexos).
Pena e efeitos
- Pena abstrata: reclusão, de 6 a 20 anos.
- Natureza: não hediondo (salvo grupo de extermínio).
- Regime inicial: conforme pena concreta e art. 33 do CP (fechado/semiaberto/aberto).
- Progressão: frações ordinárias aplicáveis aos crimes comuns, a depender de primariedade e reincidência.
- Prescrição: considerando o máximo de 20 anos, o prazo-base é de 16 anos (art. 109, II, CP), sujeito a interrupções e marcos processuais.
Comparações úteis
- Homicídio qualificado: quando presente motivo torpe/fútil, meio cruel, recurso que dificultou defesa, para assegurar outro crime etc. Pena: 12 a 30 anos; crime hediondo. Feminicídio integra essa moldura, com majorantes específicas.
- Homicídio privilegiado: redução de 1/6 a 1/3 por relevante valor social/moral ou violenta emoção logo após injusta provocação; pode combinar com qualificadoras objetivas.
- Homicídio culposo: sem intenção de matar, por negligência, imprudência ou imperícia; pena de detenção (1 a 3 anos), com majorantes específicas e possibilidade de perdão judicial quando as consequências atingem gravemente o próprio agente.
- Lesão corporal seguida de morte: dolo de lesionar, resultado morte culposo (art. 129, §3º); competência do juiz singular.
Checklist para peças e sustentações
- Materialidade: laudo de necropsia + exames de local/arma; cadeia de custódia.
- Autoria: provas testemunhais, digitais e periciais coerentes (trajetórias, resíduos, câmeras).
- Dolo: reconstrução de contexto (ameaças prévias, perseguição, tiros dirigidos) ou assunção do risco.
- Nexo causal: afastar teses de causa autônoma superveniente com respaldo técnico.
- Excludentes: avaliar legítima defesa/estado de necessidade/erro; excesso eventual.
- Dosimetria: art. 59, agravantes/atenuantes; registrar fatores concretos, evitando bis in idem.
- Quesitação: construir degraus lógicos (absolvição → privilégio → desclassificação → tentativa).
Boas práticas de comunicação com vítimas e comunidade
Casos de homicídio impactam famílias e bairros. Comunicação responsável evita revitimização e reforça confiança nas instituições: informar prazos realistas do Júri, explicar a diferença entre pronúncia e condenação, evitar rótulos de “hediondo” quando não aplicável, orientar sobre assistência à família e canais de reparação civil. O processo penal lida com dor coletiva; técnica e empatia andam juntas.
Mensagem final: o conceito de homicídio simples é objetivo – matar alguém – mas sua aplicação exige rigor probatório, dosimetria proporcional e respeito às garantias do Júri. Conhecer bem as balizas legais (pena de 6 a 20 anos, tentativa admitida, distinções com variantes) permite decisões mais previsíveis e justas.
