Fake News na Saúde: entenda as consequências jurídicas e quem pode ser punido
Fake news na saúde: implicações jurídicas e impactos no sistema
As fake news na área da saúde não são apenas um problema de comunicação: são um problema de segurança sanitária, responsabilidade civil, responsabilidade administrativa e, em alguns cenários, responsabilidade penal. Quando uma informação falsa ou distorcida sobre vacina, medicamento, tratamento estético, epidemia, pandemia, doenças raras ou métodos “naturais” de cura é divulgada em massa, ela pode levar pessoas reais a abandonar terapias eficazes, a se automedicar, a recusar atendimentos e até a colocar terceiros em risco. Esse efeito concreto é o ponto de partida para a responsabilização jurídica de quem cria, amplifica ou usa essas informações para obter vantagem.
O ambiente digital tornou o problema mais grave porque elimina a barreira geográfica, reduz o tempo de checagem e mistura fontes confiáveis com perfis anônimos ou comerciais. Um vídeo curto com informação errada sobre contraindicações de uma vacina pode circular em minutos por todo o país, alcançar idosos, imunossuprimidos, gestantes e crianças, e comprometer políticas públicas de saúde. Nessa realidade, o direito passa a olhar não só para o conteúdo, mas também para o contexto de circulação, para a finalidade (se houve intuito de ganho econômico, político ou de captação de clientes) e para o dano efetivo causado.
O ordenamento brasileiro não tem, hoje, uma lei única e exclusiva chamada “Lei das Fake News de Saúde”. Mas o conjunto de normas existentes – Constituição Federal, Código Civil, Lei do Consumidor, Lei de Imprensa na parte não revogada por controle de constitucionalidade, normas sanitárias, normas dos Conselhos Profissionais e até leis penais que tratam de perigo comum, epidemia e crime contra a honra – permite enquadrar juridicamente quem divulga informação falsa e causa dano. Em paralelo, órgãos como ANVISA, Ministério da Saúde, CFM, COFEN e ANS têm produzido notas, cartilhas e resoluções indicando como os profissionais de saúde devem se portar nas redes.
- Informação totalmente falsa sobre doença, medicamento, vacina ou procedimento.
- Informação parcialmente verdadeira, mas apresentada de forma que induz ao erro (ex.: dado antigo como se fosse atual).
- Informação sem fonte científica, mas vendida como “comprovada”.
- Informação pseudocientífica que promete cura milagrosa ou resultado absoluto.
- Informação fabricada para desacreditar políticas públicas de saúde ou profissionais habilitados.
Dimensão sanitária e de interesse público
Ao contrário de outras áreas em que a mentira atinge apenas a reputação de alguém, na saúde as fake news podem ampliar o contágio de doenças e diminuir a cobertura vacinal. Quando uma pessoa é convencida por vídeo ou postagem de que uma vacina “faz mal” e deixa de vacinar seu filho, ela não prejudica apenas o filho: compromete a imunidade coletiva. Esse é o ponto central que justifica o interesse do Estado em investigar e reprimir a desinformação em saúde.
É por isso que o Ministério da Saúde, a ANVISA e secretarias estaduais passaram a monitorar redes sociais e a emitir comunicados classificando certas peças virais como notícias falsas com potencial lesivo. Essa atuação administrativa cria lastro para responsabilização posterior, porque demonstra que a informação era falsa e que a pessoa foi advertida. Em campanhas de combate à poliomielite, ao sarampo, à Covid-19 e ao HPV, esse tipo de alerta foi essencial para manter a adesão mínima.
- Queda de cobertura vacinal em populações vulneráveis.
- Demora na procura por atendimento em casos de AVC, IAM, dengue e outras doenças tempo-dependentes.
- Aumento de automedicação e intoxicação por fármacos e suplementos.
- Sobrecarga de serviços de urgência com pacientes assustados por notícia falsa.
- Desacreditação de médicos, enfermeiros e autoridades sanitárias.
Responsabilidade civil pela divulgação de fake news na saúde
O caminho mais direto para responsabilizar quem divulga fake news de saúde é o Código Civil. Pelos arts. 186 e 927, quem causar dano a outrem, por ação ou omissão culposa ou dolosa, fica obrigado a repará-lo. Se uma pessoa, empresa, influencer ou até profissional de saúde divulga informação falsa e isso leva alguém a gastar com tratamento ineficaz, a abandonar o tratamento verdadeiro ou a sofrer abalo emocional, há espaço para ação de indenização por danos materiais e morais.
A responsabilidade ganha força quando a divulgação tem pretensão de autoridade: por exemplo, quando é feita por alguém que se apresenta como médico, nutricionista, biomédico, farmacêutico ou pesquisador. Nessas hipóteses, o juiz pode considerar que houve abuso de confiança e que o seguidor só acreditou porque tratava-se de um profissional da área.
Também cabe responsabilidade civil quando a fake news atinge terceiros identificáveis, como hospitais, laboratórios, equipes de vacinação ou médicos específicos, acusando-os injustamente de causar doenças, de esconder efeitos colaterais ou de “lucrar com a morte”. Nesses casos, o fundamento vai além do dano à saúde coletiva e entra no campo dos direitos da personalidade (honra, imagem, reputação).
Responsabilidade do profissional de saúde e dos conselhos
Quando quem divulga ou compartilha a fake news é um profissional de saúde (médico, enfermeiro, dentista, nutricionista, farmacêutico), o caso deixa de ser só civil e passa a ser ético-disciplinar. Os Conselhos Profissionais têm feito reiteradas manifestações de que o profissional não pode dar informações falsas, não comprovadas ou que atentem contra a saúde pública em redes sociais. O fundamento é o dever de zelar pelo prestígio da profissão e de não causar dano ao paciente e à coletividade.
Assim, se um médico publica que “vacina X causa infertilidade” sem prova científica, ele pode responder no CRM por infração ética e receber sanções que vão de advertência a suspensão. Da mesma forma, se uma enfermeira compartilha vídeo afirmando que “prefere CLOROQUINA a qualquer vacina” e estimula pacientes a recusar o calendário vacinal, o COFEN ou o conselho regional pode puni-la por propagação de informação que contraria as orientações oficiais.
Importante: a alegação de “liberdade de expressão” não é absoluta. Para profissionais de saúde, prevalece o dever de não causar dano e o dever de basear condutas em evidência científica. Essa é a lógica que os conselhos vêm adotando.
- Quando divulga tratamento sem evidência como se fosse cura.
- Quando desestimula vacinação obrigatória ou recomendada.
- Quando ataca, sem base, protocolos oficiais de vigilância.
- Quando usa informações falsas para atrair pacientes.
- Quando propaga teorias conspiratórias que geram pânico.
Relação com o direito do consumidor e com a publicidade enganosa
Muitas fake news de saúde aparecem travestidas de publicidade de produto, suplemento, curso ou procedimento estético. O anúncio mostra um “antes e depois”, promete resultado rápido, associa o produto a médico famoso ou a laboratório internacional e diz que “a indústria esconde isso de você”. Essa é a estratégia clássica de captura por indignação. Nesse cenário, o Código de Defesa do Consumidor entra com força, porque o fornecedor está fornecendo informação falsa ou insuficiente (arts. 6º, III; 30; 31; 37 do CDC).
Se o consumidor compra o produto ou contrata o serviço com base nessa informação falsa, ele pode pedir repetição de indébito, ressarcimento de danos materiais e danos morais. A publicidade enganosa, quando compromete a saúde do consumidor, costuma ser vista com mais rigor pelos juízes. E, se for identificada como publicidade de medicamento, entra também a esfera de fiscalização da ANVISA.
Implicações penais possíveis
Embora nem toda fake news de saúde configure crime, há situações em que o Ministério Público pode enxergar perigo à saúde pública. Se alguém divulga propositadamente, durante surto de doença, que “o remédio oficial mata” e convence milhares de pessoas a não se tratar, pode-se discutir enquadramento em tipos penais ligados a perigo comum ou a infração de medida sanitária preventiva, a depender do contexto e da norma vigente. Quando há ofensa à honra de profissionais ou de autoridades de saúde (“médicos estão recebendo para matar pacientes”), também pode ocorrer calúnia, difamação ou injúria em ambiente digital.
Outro ponto: usar fake news de saúde para obter vantagem econômica – por exemplo, vender “remédio secreto”, “kit contra vírus”, “suplemento que substitui vacina” – pode caracterizar estelionato ou, no mínimo, crime contra as relações de consumo. A depender do público atingido (idosos, crianças, indígenas, comunidades tradicionais), há agravantes.
Responsabilidade das plataformas e dos influenciadores
As plataformas de redes sociais, em regra, não respondem automaticamente por todo conteúdo dos usuários. Mas, se forem notificadas de que certo vídeo ou postagem contém desinformação grave em saúde e não fizerem nada, podem ser chamadas ao processo para responder de forma subsidiária ou para cumprir ordens de remoção. O Judiciário brasileiro tem aceitado pedidos de remoção de conteúdo de saúde principalmente quando o vídeo compromete políticas públicas ou usa imagem de terceiros sem autorização.
Já os influenciadores que emprestam sua imagem a conteúdo falso de saúde podem ser responsabilizados como corresponsáveis pela divulgação. Isso vale inclusive para quem “só compartilhou” no story, mas tem milhões de seguidores e sabe do potencial de alcance da mensagem.
Uso de gráficos, dados e estatísticas: quando ajudam e quando prejudicam
Fake news de saúde costumam vir acompanhadas de gráficos sem fonte, números manipulados e frases como “dados oficiais mostram que…”. O uso de elementos visuais aumenta a crença do público. Do ponto de vista jurídico, isso é relevante porque mostra dolo na construção da peça. Quem monta gráfico falso para dar aparência de verdade está agindo com intenção de enganar, o que reforça a responsabilidade.
Para combater isso, o profissional e o veículo sérios devem usar gráficos com fonte identificada (Ministério da Saúde, OMS, OPAS, Fiocruz, secretarias estaduais, revistas científicas) e descrever a data, o universo da pesquisa e as limitações do estudo. A transparência é uma forma de blindagem jurídica.
- Usar fontes oficiais e atualizadas.
- Informar período do dado (mês/ano).
- Explicar se os números são nacionais, estaduais ou locais.
- Não extrapolar conclusão do estudo.
- Deixar claro que o dado não substitui consulta médica.
Medidas preventivas e plano de resposta
Para reduzir o impacto jurídico das fake news na saúde, é possível montar protocolos preventivos em hospitais, clínicas, secretarias e até em consultórios individuais.
Entre as medidas práticas mais usadas estão:
- Monitoramento de redes com palavras-chave ligadas à instituição ou ao tema sensível.
- Resposta oficial rápida (nota, vídeo, card) corrigindo a informação falsa.
- Canal de verificação para que pacientes e familiares perguntem se a notícia é verdadeira.
- Treinamento da equipe para não compartilhar conteúdo sem fonte.
- Acionamento jurídico quando o conteúdo cria risco sanitário ou atinge a imagem.
Um ponto importante é registrar provas da circulação da fake news (prints, links, data e hora) para demonstrar, em eventual processo, o alcance e o potencial de dano. Isso facilita pedidos de remoção urgente e de indenização.
Conclusão
Fake news na saúde não são meros boatos. São condutas potencialmente lesivas que colocam em risco a saúde coletiva, o patrimônio dos consumidores e a credibilidade dos profissionais e das instituições. O direito brasileiro, mesmo sem uma lei única, já oferece instrumentos suficientes para punir quem pratica, quem lucra e quem insiste em divulgar desinformação médica. Na dúvida, deve prevalecer o princípio da precaução em saúde e o dever de informação verdadeira, atual e baseada em evidência. Quem comunica sobre saúde precisa atuar como agente de proteção, não como vetor de risco.
Guia rápido
• O que é fake news em saúde? Informação falsa ou distorcida sobre doenças, vacinas, medicamentos ou tratamentos, divulgada como se fosse verdadeira.
• Quem pode ser responsabilizado? Quem cria, compartilha ou lucra com o conteúdo falso, inclusive profissionais de saúde e influenciadores.
• Quais leis se aplicam? Código Civil, Código Penal, CDC, LGPD e normas de conselhos profissionais de saúde.
• Fake news pode gerar processo? Sim, por dano moral, dano coletivo, infração ética e até crime contra a saúde pública.
• Como evitar? Verifique a fonte, consulte órgãos oficiais (ANVISA, Ministério da Saúde, OMS) e divulgue apenas informações baseadas em evidência científica.
FAQ
1. Divulgar notícia falsa sobre vacina é crime?
Sim. Quando a divulgação de fake news sobre vacinas gera pânico ou faz pessoas recusarem imunização, pode configurar infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do Código Penal) e dano coletivo. Além disso, profissionais de saúde podem responder eticamente por disseminar informações contrárias às diretrizes oficiais.
2. O que acontece com médicos que divulgam tratamentos sem evidência?
Esses profissionais podem ser punidos pelo Conselho Regional de Medicina por violação do Código de Ética Médica, além de responder civilmente caso alguém sofra dano ao seguir a recomendação. O CFM considera antiético divulgar métodos sem comprovação científica.
3. As plataformas são obrigadas a remover conteúdo falso de saúde?
Quando notificadas, sim. As redes sociais podem ser obrigadas judicialmente a remover postagens que coloquem em risco a saúde pública. A omissão pode gerar responsabilidade subsidiária e multas.
4. O consumidor pode pedir indenização por fake news em produto de saúde?
Sim. Se a pessoa foi induzida a comprar um produto, suplemento ou tratamento por informação falsa, pode acionar o fornecedor com base no Código de Defesa do Consumidor (arts. 6º, 30 e 37) e pedir indenização por danos materiais e morais.
5. Fake news pode atingir a imagem de hospitais e médicos?
Sim. Quando a notícia falsa menciona ou insinua que uma instituição ou médico cometeu erro, fraude ou omissão, sem provas, ocorre violação à honra e à reputação. Nesses casos, cabe ação judicial para reparação e retirada do conteúdo.
Referencial jurídico essencial
Constituição Federal: protege a honra, a imagem e a saúde pública (art. 5º, X e art. 196).
Código Civil: prevê responsabilidade por ato ilícito (arts. 186 e 927) e reparação de danos morais e materiais.
Código Penal: tipifica infrações sanitárias (art. 268) e crimes contra a honra (arts. 138 a 140).
Código de Defesa do Consumidor: proíbe publicidade enganosa e garante direito à informação clara e verdadeira (arts. 6º, 30, 31 e 37).
LGPD – Lei 13.709/2018: protege dados sensíveis de saúde e impõe responsabilidade a quem divulga informações médicas sem base legal.
Normas de Conselhos Profissionais: CFM, COFEN, CFN e CRF punem membros que propagam desinformação ou promovem produtos sem evidência científica.
Base normativa e técnica
A responsabilização por fake news na saúde decorre da combinação entre o direito à informação verídica e o dever de não causar dano. A Constituição (art. 196) estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, o que implica que a desinformação que compromete políticas públicas é lesiva ao interesse coletivo. O Código Civil impõe o dever de reparar danos, e o CDC exige transparência nas relações de consumo.
Profissionais de saúde estão sujeitos aos Códigos de Ética de suas categorias e às resoluções dos Conselhos Federais, que proíbem expressamente a divulgação de informações falsas ou não comprovadas. Além disso, o marco digital e decisões do STF reforçam a possibilidade de responsabilizar criadores e difusores de conteúdo falso quando houver dolo ou negligência.
O Ministério Público pode atuar para proteger o interesse coletivo, requerendo a retirada do conteúdo, retratação pública e eventual indenização. Esse arcabouço garante que tanto indivíduos quanto instituições sejam responsabilizados quando a fake news afeta a saúde pública.
Considerações finais
As fake news na saúde não são apenas equívocos informativos: são ameaças reais à vida, à confiança nas instituições e ao funcionamento do SUS. A legislação brasileira permite punir quem cria, divulga ou lucra com informações falsas sobre saúde, garantindo proteção à coletividade e respeito à ciência.
Essas informações não substituem a consulta a um advogado ou órgão regulador. Em caso de dúvida sobre divulgação de conteúdo médico, busque orientação jurídica e profissional especializada antes de publicar.

