Estupro de Vulnerável: Jurisprudência, Provas e Punições no Entendimento dos Tribunais Superiores
Conceito, alcance e estrutura típica (art. 217-A do Código Penal)
O estupro de vulnerável é crime autônomo que se configura quando há conjunção carnal ou a prática de qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos ou que, por doença/deficiência mental, embriaguez completa, inconsciência ou outra causa, não tenha discernimento para consentir, ou não possa oferecer resistência. Não se exige violência ou grave ameaça: o vício está na incapacidade jurídica de consentir. A pena prevista é de 8 a 15 anos, majorada para 10 a 20 anos se houver lesão grave e para 12 a 30 anos quando resultar morte. Todas as modalidades são hediondas.
O tipo é misto alternativo (conjunção ou outro ato relevante) e comum (qualquer pessoa pode ser agente). Consumação dá-se com a realização do ato; tentativa é possível. A idade é elemento objetivo do tipo e deve estar provada (registro civil, documentos idôneos e prova oral coerente). Em vulnerabilidade por discernimento, a avaliação é pericial e fático-probatória.
- Consentimento “aparente” é juridicamente irrelevante para menor de 14.
- Não se exige violência física ou ameaça.
- Prova da idade e da vulnerabilidade é central.
- Incide o regime dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990).
Jurisprudência predominante (STJ/STF) — teses consolidadas
A orientação dominante é sintetizada pela Súmula 593/STJ: “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o consentimento da vítima, sua experiência sexual anterior ou eventual relacionamento com o agente.” Em consequência:
- Irrelevância do “consentimento”: não há espaço para discutir maturidade precoce ou vontade da vítima — o legislador presume a vulnerabilidade até os 14 anos, e os Tribunais Superiores consideram a presunção absoluta.
- Impossibilidade de desclassificação para o art. 213 por ausência de violência quando a vítima tem menos de 14 (STJ, precedentes reiterados).
- Erro de tipo sobre a idade (art. 20, §1º, CP): admite-se em tese, mas a jurisprudência é excepcionalíssima — o agente deve demonstrar erro invencível (boa-fé, documentos falsos, aparência inequívoca e diligências razoáveis). Em regra, o erro é vencível e não exclui o dolo.
- Continuidade delitiva (art. 71, CP): em abusos reiterados contra a mesma vítima, os tribunais aplicam continuidade com exasperação compatível com a gravidade e o número de ações, sem ofensa ao ne bis in idem.
- Dosimetria: é legítima a pena-base acima do mínimo por vetores como culpabilidade acentuada, circunstâncias (planejamento, registro audiovisual, exposição), consequências (traumas) e vulnerabilidades cumulativas (deficiência + idade), desde que motivação seja concreta.
- Execução penal: por ser hediondo, aplicam-se frações de progressão mais gravosas e restrições a benefícios, sem afastar direitos básicos e garantias processuais.
Debates contemporâneos
1) Presunção absoluta x proximidade etária. Parte da doutrina defende janela de proximidade etária (“Romeo and Juliet rule”), pela qual relações consentidas entre adolescentes próximos em idade não gerariam punição. O Brasil não adotou exceção legal; os Tribunais Superiores mantêm a presunção absoluta até os 14 anos, cabendo ao legislador eventual revisão.
2) Ambientes digitais e sexualidade online. A expansão de sexting, aliciamento e envio de imagens íntimas envolve outros tipos (arts. 218, 241 do ECA; 154-A do CP – invasão de dispositivo; 218-C – registro/divulgação sem consentimento). Quando há ato libidinoso com menor de 14 (online ou presencial), subsiste 217-A; a troca de nudes por si pode caracterizar crimes diversos, a depender do contexto.
3) Interseções com a Lei Maria da Penha. Nos casos de relação afetiva, ainda que informal, os tribunais reconhecem a incidência de medidas protetivas e a agravante do art. 61, II, “f”, CP (segunda fase), desde que não haja bis in idem com causas de aumento fundadas em autoridade ou confiança (art. 226, CP).
4) Prova e cadeia de custódia. O foco atual é qualificar a coleta de vestígios (CPP, arts. 158-A a 158-F), padronizar escuta especializada e depoimento especial (Lei 13.431/2017) e evitar a revitimização. O depoimento da vítima, quando coerente e harmônico com outros elementos (mensagens, perícias, perícia psicológica), é suficiente para condenação, conforme precedentes do STJ/STF.
- Registro imediato de atendimento e preservação de roupas/objetos.
- Fluxos integrados entre saúde, segurança e justiça; uso de salas especiais.
- Sigilo e minimização de atos presenciais com a vítima; priorização de depoimento especial.
- Perícias digitais (metadados, extração forense, hash) para atos online.
Penas e qualificadoras — visualização
Escala comparativa das faixas de pena do art. 217-A:
Temas recorrentes na dosimetria e no concurso de crimes
- Motivação concreta para pena-base acima do mínimo (planejamento, filmagem, uso de drogas para vulnerar, repetição prolongada).
- Concurso material quando coexistem crimes autônomos (ameaças, lesões, corrupção de menores, divulgação de cena de estupro — art. 218-C).
- Causalidade para qualificadoras por resultado: laudos e testemunhos que liguem o ato à lesão grave ou à morte.
- Reparação de danos (art. 387, IV, CPP): fixação de valor mínimo, com fundamento específico.
Panorama empírico
Anuários nacionais de segurança apontam que a maioria das vítimas de violência sexual é menor de idade, com elevada concentração no grupo de crianças e pré-adolescentes. O agressor, em grande parte dos casos, é conhecido da vítima (familiar ou pessoa de confiança). Esses dados reforçam a ênfase jurisprudencial na proteção integral (CF, art. 227; ECA) e a necessidade de protocolos intersetoriais de prevenção e atendimento.
Conclusão
A jurisprudência brasileira consolida entendimento protetivo no estupro de vulnerável: a presunção absoluta até 14 anos, a suficiência do ato libidinoso (sem exigência de conjunção carnal) e a irrelevância do consentimento “aparente” formam um núcleo duro de tutela da infância. O debate acadêmico sobre proximidade etária e ambientes digitais prossegue, mas, no estado atual, a linha dos Tribunais Superiores é clara. Na prática, o sistema de justiça deve combinar acolhimento, prova técnica com cadeia de custódia e dosimetria responsável, preservando garantias processuais e evitando o bis in idem. Esse caminho maximiza a proteção à dignidade sexual e reduz a revitimização.
Guia rápido — Estupro de vulnerável (art. 217-A, CP)
- Definição: conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos ou pessoa sem discernimento/sem possibilidade de oferecer resistência. Dispensa prova de violência ou ameaça.
- Pena: 8–15 anos (caput); 10–20 anos se resultar lesão grave; 12–30 anos se resultar morte. Crime hediondo.
- Presunção absoluta de vulnerabilidade: consentimento “aparente”, experiência sexual anterior ou namoro não afastam o tipo (Súmula 593/STJ).
- Prova: idade/vulnerabilidade (documentos e perícia), relato coerente, vestígios físicos e digitais, cadeia de custódia (CPP, arts. 158-A a 158-F), depoimento especial (Lei 13.431/2017).
- Dosimetria: pena-base pode ser acima do mínimo com motivação concreta (planejamento, registro audiovisual, repetição, abuso de confiança/autoridade).
- Execução penal: regime e progressão mais gravosos por ser hediondo (Lei 8.072/1990).
- + Súmula 593/STJ: irrelevantes consentimento, vida sexual anterior e relacionamento.
- + Erro de tipo sobre a idade: apenas se invencível e devidamente comprovado (casuística restrita).
- + Continuidade delitiva: abusos reiterados contra a mesma vítima → art. 71 do CP, com exasperação proporcional ao número de eventos.
- + Concurso de crimes: coexistem ameaças, lesões, armazenamento/divulgação de cena (art. 218-C) e corrupção de menores.
- + Prova suficiente: depoimento firme e harmônico com demais elementos pode, sozinho, embasar condenação (STJ/STF).
Riscos processuais mais comuns
- Bis in idem na dosimetria (ex.: usar a mesma circunstância como agravante e como majorante) — exigir fundamentação segmentada por fases.
- Nulidades por quebra de cadeia de custódia de vestígios físicos/digitais — registrar apreensão, armazenamento e perícia.
- Revitimização por múltiplos depoimentos — preferir escuta/depoimento especial e oitiva única.
- Prova digital frágil — preservar metadados, hashes e registros de origem; perícia oficial quando possível.
- Fluxo integrado saúde–segurança–justiça; acolhimento humanizado e sigilo.
- Coleta imediata de vestígios e profilaxias (Lei 12.845/2013).
- Medidas protetivas quando houver vínculo afetivo/familiar (Lei 11.340/2006).
- Fixação de valor mínimo de reparação (art. 387, IV, CPP) com base em elementos concretos.
FAQ
O “consentimento” de menor de 14 anos tem algum valor jurídico?
Não. A lei presume vulnerabilidade de forma absoluta; consentimento aparente, namoro ou experiência anterior não afastam o crime (Súmula 593/STJ).
E se o agente errou honestamente a idade da vítima?
Admite-se erro de tipo apenas se invencível, com prova robusta de diligência razoável (documento falsificado, aparência inequívoca etc.). A jurisprudência reconhece excepcionalmente.
É necessária prova de violência física?
Não. O tipo prescinde de violência/ameaça; basta a prática do ato libidinoso com a pessoa vulnerável. Lesões aumentam a pena como qualificadora.
O depoimento da vítima basta para condenar?
Pode bastar quando firme, coerente e apoiado por outros elementos (testemunhos, perícias, registros digitais). STJ e STF admitem a suficiência do relato consistente.
Como tratar atos ocorridos pela internet (aliciamento, nudes)?
Se há ato libidinoso com menor de 14, incide o art. 217-A. Além disso, podem ocorrer crimes autônomos (arts. 241/ECA; 218-C/CP; 154-A/CP). Preserve provas digitais com cadeia de custódia.
Relação entre adolescentes próximos em idade é punível?
O ordenamento brasileiro não prevê exceção de “proximidade etária”. Até 14 anos, a presunção é absoluta. Debates doutrinários existem, mas dependem de alteração legislativa.
Fontes normativas e precedentes
- Código Penal: arts. 213 a 217-A; art. 61, II, “f”; art. 71; art. 20, §1º.
- Lei 8.072/1990 (Hediondos): enquadra todas as formas do art. 217-A.
- Lei 13.431/2017: depoimento especial e escuta protegida.
- Lei 12.845/2013: atendimento obrigatório às vítimas de violência sexual no SUS.
- CPP, arts. 158-A a 158-F: cadeia de custódia de vestígios.
- Súmula 593/STJ e julgados repetitivos sobre irrelevância do consentimento/experiência anterior.
Considerações finais
A jurisprudência brasileira adota postura protetiva e estável: a vulnerabilidade até 14 anos é absoluta, e o foco do sistema é reduzir danos, qualificar a prova e coibir revitimização. A atuação técnica — com cadeia de custódia, depoimento especial e fundamentação clara na dosimetria — é decisiva para decisões justas e efetivas.
Aviso: este material é informativo e não substitui a análise individualizada de um(a) advogado(a), defensor(a) público(a) ou equipe psicossocial especializada. Cada caso concreto exige avaliação técnica própria e atualizada.

