Direito Penal

Estrito Cumprimento do Dever Legal: até onde a lei protege a ação do agente

Conceito e fundamento jurídico

O estrito cumprimento do dever legal é uma causa de exclusão de ilicitude prevista no art. 23, III, do Código Penal brasileiro. Em termos simples, não há crime quando o agente pratica um fato típico para cumprir, com fidelidade e dentro de limites normativos, um dever imposto por lei. Trata-se de cláusula essencial para viabilizar atividades estatais e profissionais que, para proteger bens jurídicos relevantes, autorizam atos que, em contexto comum, seriam proibidos (como restringir a liberdade, ingressar em domicílio ou empregar força física).

Chave conceitual
O foco está no dever (e não apenas no direito). O agente só se beneficia da excludente se: (i) existe dever legal específico; (ii) atua com finalidade de cumpri-lo; (iii) observa legalidade, necessidade e proporcionalidade; e (iv) não incorre em excesso (art. 23, parágrafo único).

Diferenças para o exercício regular de direito

A doutrina diferencia as duas partes do art. 23, III. Há hipóteses em que a lei confere direito ao agente (ex.: direito de conter um torcedor que invade o campo pelo segurança privado), e hipóteses em que impõe dever (ex.: dever do policial de prender quem está em flagrante). No exercício regular de direito, o agente poderia abster-se sem responsabilização; no estrito cumprimento, a omissão pode ser punível se dele se espera a atuação.

Quem pode invocar a excludente

  • Agentes públicos de segurança: policiais civis e militares, agentes penitenciários, guardas municipais (dentro de suas competências legais).
  • Oficiais de Justiça e auxiliares do Judiciário, ao cumprir mandados de prisão, buscas e penhoras.
  • Autoridades administrativas: fiscais sanitários, ambientais, de trânsito, quando executam atos vinculados por lei.
  • Profissionais da saúde e perícia: médico-legista na necropsia; equipes que procedem à coleta de material biológico quando autorizadas por ordem judicial ou por norma legal específica.
  • Demais agentes legalmente incumbidos: corpo de bombeiros ao arrombar porta para salvamento; agentes de defesa civil em evacuações compulsórias, e outros nos termos da lei.

Requisitos objetivos (o que precisa existir no mundo jurídico)

1) Dever previsto em lei

Não basta uma autorização genérica. Exige-se base normativa clara (lei, lei complementar, tratados incorporados ou, conforme o caso, ordem judicial válida que concretiza o dever). Portarias e manuais têm valor instrumental, mas não criam a excludente sem amparo legal.

2) Competência e vínculo funcional

O agente deve estar de serviço ou, se fora, agindo em razão de dever legal que persiste (como flagrante delito). A atuação fora de circunscrição ou sem atribuição pode descaracterizar a excludente e gerar abuso de autoridade.

3) Necessidade e proporcionalidade

Não se exige a alternativa absolutamente menos gravosa, mas meio adequado e proporcional para atingir o fim legal, com gradação de intensidade. Se havia caminho eficaz menos lesivo claramente disponível, a escolha do mais lesivo pode caracterizar excesso culposo.

4) Indicação do alvo correto e finalidade legítima

O cumprimento deve recair sobre a pessoa ou o bem efetivamente abrangidos pelo dever/ordem. Confusões de endereço, identificação falha ou ações movidas por animus punendi pessoal desviam a finalidade e afastam a excludente.

Elementos subjetivos (o que se passa na mente do agente)

É necessário o animus officii — vontade de cumprir o dever. Motivações particulares (vingança, vantagem indevida) rompem o liame funcional. A boa-fé e a crença razoável de estar sob o dever importam tanto para a exclusão de ilicitude quanto, ao menos, para reduzir culpabilidade em hipóteses de erro.

Exemplos práticos típicos

  • Ingresso domiciliar: cumprimento de mandado judicial ou, sem mandado, em flagrante delito/socorro, nos termos do art. 5º, XI, da Constituição (respeitando a jurisprudência sobre justa causa para ingresso).
  • Prisão em flagrante: policial ou qualquer do povo (art. 301 do CPP). Para o policial, trata-se de dever funcional; a força deve seguir protocolos de uso progressivo.
  • Busca e apreensão: oficial de Justiça que recolhe bens, podendo solicitar força policial quando necessário, com cuidado sobre excesso e preservação de dados (LGPD, cadeia de custódia — arts. 158-A e seguintes do CPP quando se tratar de vestígios).
  • Perícia e necropsia: médico-legista realiza atos invasivos sem consentimento familiar, porque a lei impõe o dever em prol da Justiça penal.
  • Interdições sanitárias: agente fecha estabelecimento por risco epidemiológico com base em lei específica e atos normativos complementares.
Checklist rápido antes da ação

  1. Qual é a lei que impõe o dever? Há ordem judicial válida?
  2. Sou competente para executar? Preciso de apoio de outra autoridade?
  3. Quais são os meios necessários? Posso graduar a força?
  4. Como documentar a motivação, a execução e os resultados (boletim, relatório, vídeo-operacional)?
  5. Há risco de excesso? Quais salvaguardas vou adotar?

Excesso punível e responsabilidade

O art. 23, parágrafo único, prevê que o agente responderá pelo excesso doloso ou culposo. Em termos práticos, ainda que a ação tenha nascido legítima, o passo além necessário (intensidade, duração, alvo) recrimina o que excede. A Lei 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade) acrescenta tutela penal específica contra condutas abusivas — como constrangimento ilegal, prisão ou busca sem justa causa, submissão a vexame, uso indevido de algemas (em diálogo com a Súmula Vinculante 11 do STF), entre outras.

Planos de responsabilização

  • Penal: excesso doloso/culposo, abuso de autoridade, lesões corporais, homicídio, constrangimento ilegal etc.
  • Administrativa: PAD, sindicância, sanções disciplinares por violar regulamentos e protocolos.
  • Civil: responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, § 6º, da Constituição) com direito de regresso contra o agente em caso de dolo ou culpa.

Parâmetros operacionais: o uso progressivo da força

Em segurança pública, a excludente caminha junto com protocolos que impõem graduação de meios, comunicação e cuidados posteriores (atendimento ao ferido, preservação da cena, acionamento de perícia). A observância desses protocolos é prova robusta de que o agente manteve-se no “estrito”.

Gráfico — Escala ilustrativa de força (do menor ao maior impacto)

Presença e comunicação
Controle por contato (técnicas de condução)
Meios menos letais (spray, bastão conforme norma)
Arma de fogo — ameaça iminente a vida/lesão grave

A largura das barras representa a gravidade relativa e demanda justificativa. O salto entre níveis sem causa idônea sugere excesso.

Prova, documentação e cadeia de custódia

Em qualquer atuação amparada no art. 23, III, a prova da necessidade e da proporcionalidade é vital. Relatórios detalhados, filmagens de body cam, registro de ordens recebidas, identificação dos participantes e respeito à cadeia de custódia (CPP, arts. 158-A a 158-F) fortalecem a transparência e a proteção do próprio agente.

Boas práticas de documentação

  • Registrar motivação (fatos, base legal, ordem judicial, avaliação de risco).
  • Descrever passo a passo (tentativas de contato, avisos, técnicas menos invasivas).
  • Listar recursos utilizados e justificativa de cada nível de força.
  • Indicar cautelas (assistência médica, preservação de cena, comunicação a superiores).
  • Anexar mídias e relatórios; especificar quem custodiou os vestígios e quando.

Limites constitucionais e diálogo com outros ramos do Direito

Direitos fundamentais

O cumprimento do dever legal não suspende as garantias do art. 5º da Constituição. Inviolabilidade do domicílio, intimidade, privacidade e devido processo continuam a balizar a ação estatal. A legitimidade depende de compatibilizar o dever com essas cláusulas, especialmente quanto a mandados judiciais e justa causa em situações de urgência.

Proteção de dados e privacidade

A LGPD (Lei 13.709/2018) admite tratamento de dados para segurança pública e para cumprimento de obrigação legal. Ainda assim, princípios como minimização e finalidade impõem limites. Coletas indiscriminadas e retenção excessiva de dados podem gerar nulidades e responsabilidade.

Direito administrativo e compliance

Manualizar rotinas, treinar equipes e conferir governança (registros, auditorias, canais de denúncia) reduz eventos de excesso e melhora a accountability. Em operações conjuntas, o acordo prévio sobre papéis e protocolos evita competência difusa e conflitos que comprometem a excludente.

Casos problemáticos recorrentes

Uso de algemas

O STF consolidou que algemas só se justificam diante de resistência, receio de fuga ou perigo à integridade (Súmula Vinculante 11). A decisão exige fundamentação posterior; a ausência pode gerar responsabilidade por abuso.

Ingresso domiciliar sem mandado

Há entendimento de que a simples “atitude suspeita” não basta. Exige-se justa causa concreta (flagrante, pedido de socorro, desastre) e demonstração probatória posterior. O ingresso arbitrário não se escuda na excludente.

Busca pessoal e veicular

Deve seguir parâmetros de fundada suspeita, tempo e modo razoáveis, com respeito à dignidade. Abordagens rotineiras sem critério objetivo têm sido repelidas pelos Tribunais.

Erro sobre os pressupostos da excludente

Se o agente, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe existir situação de fato que tornaria lícita a ação (por exemplo, acredita de boa-fé que o mandado alcançava aquele endereço), a jurisprudência aplica o art. 20, § 1º, do CP, excluindo a culpabilidade. Se o erro era evitável, há redução de pena; se inevitável, isenção.

Roteiro decisório prático

  1. Identificar o dever: qual norma impõe a ação?
  2. Checar competência e, se preciso, requisitar apoio.
  3. Planejar meios menos lesivos eficazes.
  4. Executar com comunicação clara, registro e testemunhas.
  5. Reavaliar continuamente a necessidade durante a ação.
  6. Encerrar reduzindo a intensidade tão logo cesse a resistência/perigo.
  7. Documentar minuciosamente e preservar prova.

Estudos de caso ilustrativos (hipóteses)

Operação com ingresso em domicílio por socorro

Vizinhos relatam gritos de socorro e sangue escorrendo pela porta. Equipe aciona gravação, identifica risco iminente e ingressa, neutraliza agressor e presta socorro. A excludente se consolida pelo dever de proteção da vida, necessidade e proporcionalidade dos meios empregados. A documentação comprova cada etapa.

Busca e apreensão com erro de numeração

Equipe cumpre mandado na rua correta, mas o número não corresponde ao indicado. Sem diligência mínima para confirmar a unidade específica, realiza a busca. A falha de verificação afasta a excludente e abre campo para responsabilização por excesso culposo e danos civis, ainda que a intenção fosse cumprir o mandado.

Contenção de preso agressivo

Detento avança com objeto perfurante; agentes aplicam técnicas de imobilização com bastão e spray, cessando uso imediatamente após a neutralização. A progressividade, a cessação oportuna e o registro médico posterior demonstram estrito cumprimento sem excesso.

Relações com nulidades processuais

Quando o ato praticado sob a alegação de “estrito cumprimento” viola direitos fundamentais sem justa causa, o resultado pode ser prova ilícita (art. 5º, LVI, CF), com efeitos de contaminação (“frutos da árvore envenenada”). Por isso, além de proteger o agente, a observância estrita protege a validade do processo.

Indicadores internos para órgãos públicos

Quadro de métricas sugeridas

Indicador Descrição Meta de referência
Proporção de ocorrências com body cam Ações registradas por vídeo ≥ 90%
Relatórios com base legal expressa Indicação de artigo/ordem judicial 100%
Eventos com queixa de excesso confirmada Taxa de procedência em PAD/MP ≤ 1% ao ano

Boas práticas para empresas privadas com deveres legais

Empresas de segurança privada, hospitais, instituições de ensino e transportes também enfrentam deveres legais (ex.: impedir acesso a áreas críticas, resguardar prontuários por lei, cumprir ordem judicial de retenção). Nesses contextos, valem as mesmas balizas:

  • Mapear os deveres específicos previstos em lei/regulação setorial.
  • Padronizar procedimentos escritos e treinamento periódico.
  • Registrar incidentes com dados mínimos e justificativas.
  • Integrar requisitos de LGPD e direitos do consumidor.

Como redigir relatórios robustos

Relatórios pobres fragilizam a excludente. Um bom modelo inclui: contexto (quem solicitou, quando, onde), base legal (artigos e ordens), objetivo, cenário inicial, medidas graduadas tentadas, ponto de escalada com justificativa, tempo total, resultado, acompanhamentos (socorro, perícia, comunicação ao MP/defesa). Quanto mais específico, menor o espaço para alegações de abuso.

Conclusão

O estrito cumprimento do dever legal não é um salvo-conduto amplo. É uma licença condicionada pela lei, calibrada por necessidade e proporcionalidade, e controlada por documentação e transparência. Para quem atua na linha de frente, dominar os elementos objetivos (dever, competência, meios) e subjetivos (finalidade pública) é tão importante quanto conhecer os limites que se transformam em excesso punível. Para a sociedade e o processo penal, cumprir esses requisitos é o que converte a força estatal em proteção de direitos, e não em violação deles. Protocolos claros, formação contínua, tecnologia de registro e cultura de prestação de contas formam o quadrilátero que sustenta a excludente — e que, bem aplicado, preserva o agente, a vítima, o investigado e a própria legitimidade do Estado.

Guia rápido: Estrito cumprimento do dever legal

O estrito cumprimento do dever legal é uma das principais excludentes de ilicitude previstas no art. 23, III, do Código Penal. Isso significa que o agente não comete crime quando realiza uma conduta típica (por exemplo, restringir a liberdade de alguém ou invadir uma casa) se essa ação for necessária para cumprir uma obrigação imposta pela lei.

O objetivo dessa norma é proteger quem atua em nome da lei, como policiais, fiscais, agentes penitenciários, oficiais de justiça e outros servidores públicos, desde que respeitem os limites legais e a proporcionalidade. Assim, a lei reconhece que, em certas circunstâncias, o Estado precisa permitir condutas que, em situações normais, seriam puníveis.

1. Quando o estrito cumprimento se aplica

  • Prisão em flagrante: o policial ou qualquer cidadão pode deter alguém que esteja cometendo um crime (art. 301 do CPP).
  • Execução de mandados: oficiais de justiça, policiais e agentes do Judiciário cumprem ordens judiciais mesmo que isso envolva restrição de direitos.
  • Fiscalizações e autuações: fiscais ambientais, de trânsito, ou sanitários atuam por dever legal para garantir a observância da lei.
  • Atos médicos-legais: o perito realiza necropsia ou coleta de material sem consentimento da família, pois está cumprindo um dever judicial.

2. Requisitos para ser legítimo

Nem toda ação sob o pretexto de “cumprir a lei” é protegida. O agente só estará amparado se:

  • Houver um dever legal concreto (lei, ordem judicial, regulamento válido).
  • O agente for competente para realizar o ato.
  • Os meios utilizados forem necessários e proporcionais.
  • Não houver excesso doloso ou culposo (art. 23, parágrafo único, CP).

3. Diferença para o exercício regular de direito

Enquanto o exercício regular de direito confere permissão (exemplo: segurança privada que impede um torcedor de invadir o campo), o estrito cumprimento do dever legal impõe obrigação (exemplo: policial que deve agir em flagrante delito). Aqui, a omissão pode ser punida se o agente tinha o dever de agir.

4. Limites e responsabilidade

O agente que ultrapassa os limites do dever, utilizando força desnecessária ou agindo fora da sua competência, perde a proteção da excludente. Nesse caso, pode responder criminalmente por abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019), civilmente (indenização) e administrativamente (processo disciplinar).

Dica prática:
Sempre que agir sob o dever legal, registre os motivos da ação, as circunstâncias do fato e os meios utilizados. Essa documentação é fundamental para demonstrar a boa-fé e evitar alegações de abuso.

5. Exemplos comuns nos tribunais

  • Policial que efetua prisão legal: não responde por lesão leve decorrente da imobilização, desde que o uso da força tenha sido moderado.
  • Fiscais que interditam estabelecimentos: se agirem dentro da lei, não há crime de abuso de autoridade.
  • Médico-legista em necropsia judicial: sua conduta é legítima, pois decorre de dever funcional.

6. Relação com os direitos fundamentais

Mesmo sob o manto do dever legal, o agente deve respeitar os direitos fundamentais da Constituição — como a dignidade humana, a proporcionalidade e o devido processo legal. A violação desses princípios pode anular a excludente e gerar responsabilidade pessoal e estatal.

Portanto, o cumprimento do dever legal é uma ferramenta de proteção e equilíbrio entre o poder estatal e os direitos do cidadão. Aplicá-lo corretamente é essencial para manter a credibilidade da autoridade pública e o respeito ao Estado de Direito.

Mensagem final do guia:
A excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal só protege quem age dentro da lei e por motivação legítima. Ela exige preparo técnico, equilíbrio emocional e respeito às normas constitucionais. O bom agente é aquele que cumpre seu dever com legalidade e humanidade.

FAQ — Estrito Cumprimento do Dever Legal

1) O que é estrito cumprimento do dever legal?
É a excludente de ilicitude (art. 23, III, CP) que afasta o caráter criminoso da conduta quando o agente pratica um ato típico para cumprir obrigação imposta por lei ou ordem judicial válida.
2) Quem pode invocar essa excludente?
Em regra, agentes públicos com competência legal (policiais, agentes penitenciários, oficiais de justiça, fiscais, peritos). Em hipóteses específicas, particulares podem agir sob dever legal (ex.: cidadão que realiza prisão em flagrante, art. 301 do CPP).
3) Quais são os requisitos básicos para a sua aplicação?
(i) Existência de dever legal concreto ou ordem legítima; (ii) competência do agente; (iii) necessidade do ato; (iv) proporcionalidade dos meios; (v) ausência de excesso (art. 23, parágrafo único, CP).
4) Qual a diferença para o exercício regular de direito?
No exercício regular há permissão jurídica (poder atuar); no estrito cumprimento há obrigação de agir. A omissão no dever legal pode gerar responsabilidade.
5) O que é considerado excesso e quais as consequências?
Excesso é empregar meios desnecessários ou desproporcionais, ou agir fora da competência. Nesses casos, a excludente cai e o agente pode responder por crime (ex.: lesão, abuso de autoridade), civilmente e administrativamente.

Dica: registrar motivos, contexto e resistência enfrentada ajuda a demonstrar que não houve excesso.

6) Posso entrar em domicílio sem mandado alegando dever legal?
Apenas nas hipóteses constitucionais: flagrante delito, desastre, para prestar socorro, ou durante o dia com ordem judicial (CF, art. 5º, XI). Fora disso, a entrada é ilícita.
7) O uso da força em prisões está sempre coberto?
Não. Só é legítimo o uso moderado da força, adequado à resistência ou perigo. Armas letais são último recurso e exigem proporcionalidade estrita.
8) Ordens ilegais podem ser cumpridas sem responsabilidade?
Não. Ordem manifestamente ilegal não deve ser cumprida. Cumprimento de ordem inválida não ampara a excludente e pode gerar punição para quem ordena e executa.
9) Há relação com a lei de abuso de autoridade?
Sim. Atos fora dos limites do dever legal podem caracterizar crimes da Lei nº 13.869/2019 (ex.: constrangimento ilegal, exposição vexatória, invasão de domicílio sem hipótese legal).
10) Como documentar corretamente para reduzir riscos?
Elaborar relato circunstanciado imediatamente após o ato, indicar fundamento legal, descrever nível de resistência, meios empregados, testemunhas e anexar provas (imagens, autos de apreensão). Essa cadeia documental é decisiva em sindicâncias e processos.

Fundamentação Jurídica e Base Técnica

1. Previsão legal

  • Art. 23, III, do Código Penal: “Não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”.
  • Art. 24, parágrafo único, do Código Penal: regula o excesso doloso ou culposo, aplicável também a essa excludente.
  • Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade): estabelece limites e sanções para o agente que ultrapassa o dever legal, mesmo sob alegação de legalidade.
  • Art. 37, §6º, da Constituição Federal: impõe responsabilidade objetiva do Estado por atos de seus agentes, ainda que lícitos, quando houver dano a terceiros.

2. Elementos doutrinários

A doutrina penal classifica o estrito cumprimento do dever legal como causa de justificação (ou seja, afasta a ilicitude da conduta). São quatro os elementos centrais:

  1. Dever imposto por norma jurídica — não se trata de mera permissão, mas de obrigação funcional ou legal.
  2. Competência do agente — somente quem é legalmente autorizado pode invocar a excludente.
  3. Proporcionalidade e moderação — o meio empregado deve ser necessário para o cumprimento do dever.
  4. Ausência de excesso — quando o agente ultrapassa os limites da lei, responde pelos danos e eventuais crimes.

3. Jurisprudência aplicada

  • STF, HC 82.788: reconheceu o estrito cumprimento do dever legal a policial que agiu dentro da legalidade em prisão resistida.
  • STJ, HC 364.257: reafirmou que o agente público só é protegido pela excludente se o ato for necessário e proporcional à situação.
  • STJ, AgRg no REsp 1.341.324/PR: a excludente não cobre abusos ou condutas praticadas com animus de vingança ou intenção diversa da lei.

4. Relações interdisciplinares

No Direito Administrativo, o agente deve responder dentro do regime de legalidade estrita; no Direito Civil, a reparação pode ocorrer mesmo sem dolo (responsabilidade objetiva do Estado); e no Direito Constitucional, aplica-se o princípio da proporcionalidade e o respeito à dignidade da pessoa humana.

5. Parâmetros práticos de aplicação

Checklist rápido:

  • ✔ Existe norma, ordem ou mandado legal que impõe o ato?
  • ✔ O agente é competente para cumpri-la?
  • ✔ O ato foi necessário e proporcional?
  • ✔ Houve registro documental do ocorrido?
  • ✔ O agente agiu com moderação, sem abuso de poder?

Fontes legais e doutrinárias

  • BRASIL. Código Penal, Decreto-Lei nº 2.848/1940.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
  • BRASIL. Lei nº 13.869/2019 — Lei de Abuso de Autoridade.
  • NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 20ª ed., 2024.
  • CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, vol. 1, 2023.
  • BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 2022.

Encerramento

O estrito cumprimento do dever legal representa a confiança do Estado na atuação responsável de seus agentes. É um instrumento de legalidade e proteção, mas exige observância rigorosa dos princípios constitucionais e limites legais. Quando respeitados esses parâmetros, garante-se que a autoridade atue com firmeza, sem violar direitos fundamentais. Já o excesso, doloso ou culposo, rompe a linha da legalidade e transforma o ato legítimo em ato ilícito.

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