Direito Penal

Estado de Necessidade sem Mistério: quando a lei autoriza salvar um bem sacrificando outro

Teoria e prática do estado de necessidade no Brasil

O estado de necessidade é uma das hipóteses clássicas do Direito Penal brasileira que permite a prática de fato típico sem caracterização de crime, quando é necessário sacrificar um bem jurídico para proteger outro diante de perigo atual e inevitável. Trata-se de uma excludente de ilicitude — ou seja, embora a conduta seja formalmente típica, ela deixa de ser considerada contrária ao ordenamento jurídico. O artigo 24 do Código Penal define os contornos desse instituto. 0

Fundamento legal e natureza jurídica

O estado de necessidade está previsto no art. 24 do CP:
“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.” 1
O § 1º do artigo 24 veda o instituto ao agente que tenha o dever legal de enfrentar o perigo. 2
Já o § 2º prevê que, mesmo quando o sacrifício do bem ameaçado for razoável, a pena pode ser reduzida de 1 a 2/3 — reconhecendo que, em algumas situações, ainda que não se reconheça excludente plena, se admite atenuação. 3

A Constituição não menciona explicitamente o estado de necessidade, mas os direitos fundamentais à vida, integridade física e segurança embasam sua aplicação. A doutrina e a jurisprudência o sustentam como instrumento que verifica a proporcionalidade entre bens em choque e pondera deveres e necessidades humanas. 4

Requisitos do estado de necessidade

Para que o estado de necessidade seja reconhecido, exige-se a presença de diversos requisitos cumulativos. A doutrina costuma apontar os seguintes critérios essenciais:

Perigo atual e inevitável

O perigo deve estar ocorrendo no momento ou prestes a se concretizar. Situações de risco remoto, hipotético ou futuro não bastam. São exigidas prova concreta de que o bem estava sob ameaça real. 5

Perigo não provocado voluntariamente pelo agente

O agente não pode ter criado deliberadamente a situação de risco. Se participou dolosamente da origem do perigo, o instituto não se aplica. Alguns autores admitem que, em caso de culpa leve, possa haver instituto atenuante, mas não excludente. 6

Inevitabilidade da conduta lesiva / ausência de alternativa razoável

Não pode haver outro meio menos lesivo ou alternativo para evitar o perigo. A conduta ofensiva ao direito de outro deve ser última ratio. O agente deve demonstrar que não havia opção razoável distinta da ação criminosa. 7

Proteção de bem jurídico próprio ou de terceiro

A ação deve visar proteger um direito reconhecido (patrimônio, integridade física, liberdade etc.). Pode ser bem próprio ou de terceiro. 8

Razoabilidade no sacrifício (proporcionalidade)

O bem sacrificado não pode ser de valor muito superior ao bem protegido. Deve haver equilíbrio entre o dano causado e o benefício buscado. É uma ponderação sensível ao contexto. 9

Ausência de dever legal de enfrentar o perigo

Agentes com dever jurídico específico na situação de risco (policiais, bombeiros, médicos em certas circunstâncias) não podem invocar o estado de necessidade para justificar condutas lesivas no exercício de suas funções, salvo a redução de pena prevista no § 2º. 10

Teorias sobre o estado de necessidade e debates doutrinários

Na doutrina penal brasileira, destacam‐se duas teorias quanto à natureza e efeitos do estado de necessidade:

Teoria unitária

Sustém que o estado de necessidade é sempre causa de exclusão da ilicitude (excludente), desde que atendidos os requisitos legais. Assim, quando o bem sacrificado for de valor superior, ainda assim ele configura o instituto, com possibilidade de redução de pena se reconhecido no § 2º. A doutrina majoritária defende essa teoria para o CP brasileiro. 11

Teoria diferenciadora

Adota distinção entre estado de necessidade justificante (sacrifício de bem de valor igual ou menor — exclui ilicitude) e estado de necessidade exculpante (sacrifício de bem de valor maior — mantém ilicitude, mas afasta culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa). Essa teoria é mais aceita em ramos específicos como o Direito Penal Militar. 12

Comparação com legítima defesa

Embora tanto a legítima defesa quanto o estado de necessidade sejam excludentes de ilicitude, há diferenças essenciais:

  • Na legítima defesa, há agressão injusta por outro agente; no estado de necessidade, o perigo pode decorrer de fenômenos naturais, ações humanas ou outras causas.
  • Legítima defesa permite reagir desde agressão iminente; estado de necessidade exige perigo atual (alguns autores não admitem a iminência apenas). 13
  • Na legítima defesa, a reação deve ser moderada e proporcional aos meios; no estado de necessidade se avalia a ponderação de bens sacrificados e o caráter inevitável da conduta.
  • Legítima defesa tem previsão expressa nos arts. 23 e 25 CP; estado de necessidade, no art. 24; em hipótese de dúvida, a jurisprudência exige prova mais rigorosa no estado de necessidade. 14

Jurisprudência sobre o estado de necessidade

Os tribunais brasileiros reconhecem o estado de necessidade em casos extremos, desde que todos os requisitos sejam comprovados — o ônus cabe à defesa. 15

Por exemplo, o TJDFT afirma que o instituto não abrangeria perigo apenas iminente em sua interpretação clássica, restringindo‐se a “perigo atual”. 16

Um acórdão do TJPR negou o estado de necessidade no caso de porte ilegal de arma, pois o agente não demonstrou que o perigo era atual, inevitável e que não poderia agir de outro modo. 17

Em outra decisão (TRF ou tribunais federais) houve negativa de alegação em crime de drogas, entendendo que a simples dificuldade financeira não comprova perigo atual que justifique a conduta criminosa sob excludente. 18

Também se vê aplicação crítica de “furto famélico”: tribunais aceitam o estado de necessidade se demonstrado que a subtração visava mitigar fome e que não havia alternativa razoável, especialmente quando tratados com sensibilidade social. 19

Aplicações práticas e casos paradigmáticos

Furto famélico

Indivíduo em situação de desespero (fome extrema) subtrai alimento ou bem de pequeno valor. Se comprovado perigo real e ausência de alternativa, pode ser reconhecido o estado de necessidade. A jurisprudência exige fundadamente prova da urgência e impossibilidade de outro meio. 20

Desvio de trajetória para evitar acidente

Motorista desviando bruscamente para proteger criança ou pedestre pode causar dano a muro ou veículo. Se o desvio era o único meio de evitar tragédia, isso pode configurar estado de necessidade defensivo. A análise judicial considerará velocidade, visibilidade e possibilidade de manobra alternativa.

Uso de energia elétrica em mora ou falta de pagamento

Casos de “furto continuado de energia” com alegação de necessidade quase não são aceitos, especialmente quando há alternativa de renegociação ou regulamentação. Tribunais têm exigido que o perigo de corte da energia seja demonstrado de modo urgente e inevitável. 21

Proteção de vitalidade em desastre natural

Suponha que alguém destrua muro de propriedade para abrir passagem e permitir evacuação urgente em enchente. Nesse cenário, a conduta pode ser revestida de estado de necessidade, pois o risco à vida é mais grave que dano patrimonial.

Sugestões doutrinárias e cuidados defensivos

Defensor que sustenta o estado de necessidade deve:

  • Construir uma cronologia clara do perigo: quando começou, intensidade, evoluções;
  • Levar testemunhas, fotos, vídeos do local, sinalizações de urgência;
  • Trazer dados que excluam alternativas (ex: não tinha transporte, não havia aviso prévio, não podia acionar autoridade);
  • Argumentar proporcionalidade e razoabilidade do sacrifício escolhido;
  • Antecipar controvérsias sobre a origem do perigo — demonstrar que não provocou voluntariamente;
  • No caso de agentes públicos, analisar se havia dever legal de enfrentar o perigo e qual era o risco institucional.

Conclusão

O estado de necessidade é instituto jurídico crucial para humanizar a aplicação da lei penal, reconhecendo que nem sempre quem pratica ato típico merece ser punido quando pressionado por circunstâncias extremas. Contudo, sua aplicação exige cautela, rigor probatório e aderência aos requisitos estritos definidos no art. 24 do CP.
A doutrina dominante no Brasil adota a teoria unitária do estado de necessidade como excludente de ilicitude, mas admite redução de pena quando o bem sacrificado é de valor superior (conforme § 2º). A jurisprudência aceita o instituto em casos dramáticos (furto famélico, desvio em situação de risco à vida, proteção emergencial), desde que comprovados perigo real, ausência de alternativa e sacrifício proporcional.
Por fim, não se trata de licença para infrigir normas arbitrariamente — é concessão equitativa do Direito para situações-limite, onde a sobrevivência do bem protegido se impõe com urgência. O êxito da tese depende da narrativa coerente, provas concretas e sensibilidade do julgador para diferenciar o estado de necessidade legítimo da simples dificuldade ou risco imaginário.

Guia rápido: como funciona o estado de necessidade na prática

O estado de necessidade é uma das principais excludentes de ilicitude do Direito Penal. Ele ocorre quando alguém pratica uma conduta tipificada como crime para salvar um bem jurídico — próprio ou de terceiro — de um perigo atual e inevitável. O fundamento está no art. 24 do Código Penal, que reconhece que, em certas circunstâncias, o ordenamento jurídico não pode exigir do indivíduo um comportamento diferente, quando a única alternativa seria o sacrifício de um valor ainda mais relevante, como a vida ou a integridade física.

Na prática, o estado de necessidade é aplicado quando o agente, diante de um conflito de bens, precisa escolher qual deles preservar. Essa escolha é avaliada pelo juiz com base em critérios de proporcionalidade e razoabilidade. O bem sacrificado deve ser de valor igual ou inferior ao bem protegido, e a ação deve ser inevitável — ou seja, não pode haver outro meio menos lesivo de resolver a situação.

Quando se reconhece o estado de necessidade

Para que a conduta seja considerada legítima, é necessário que:

  • O perigo seja atual e real, e não apenas potencial ou futuro;
  • O agente não tenha provocado o perigo voluntariamente;
  • Não exista outra forma razoável de evitar o resultado danoso;
  • O bem sacrificado seja de valor menor ou equivalente ao bem protegido;
  • O agente não tenha o dever legal de enfrentar o perigo (como no caso de bombeiros, policiais ou médicos em serviço).

Por exemplo, imagine que um motorista, para evitar atropelar uma criança, desvia bruscamente o carro e colide com um muro. Nessa situação, ele danificou patrimônio alheio, mas agiu para evitar um mal muito maior — a morte de uma pessoa. O dano material, portanto, torna-se juridicamente tolerável.

Casos práticos reconhecidos pelos tribunais

A jurisprudência brasileira apresenta decisões emblemáticas em que o estado de necessidade foi aplicado com base na prova concreta do perigo:

  • Furto famélico: quando uma pessoa em extrema fome subtrai alimento de pequeno valor para sobreviver. Tribunais consideram a conduta atípica se comprovada a impossibilidade de obter o alimento de outro modo.
  • Acidentes de trânsito inevitáveis: quando o condutor age para preservar vidas e causa dano material a terceiros, reconhecendo-se a necessidade de evitar um mal maior.
  • Desastres naturais: situações em que a destruição de propriedade privada visa salvar pessoas de enchentes, incêndios ou deslizamentos.

Contudo, nem toda alegação de “necessidade” é aceita. O Judiciário exige prova robusta de que o perigo era real e inevitável. Alegações genéricas, como “dificuldades financeiras” ou “desespero emocional”, não bastam para afastar a ilicitude. A excludente deve ser invocada com responsabilidade e embasamento técnico.

Dicas práticas para defesa jurídica

Advogados e defensores públicos que pretendem sustentar a tese de estado de necessidade devem reunir o máximo de elementos de prova, tais como:

  • Testemunhas que confirmem o contexto de urgência;
  • Fotos, vídeos ou relatórios que comprovem o perigo real;
  • Documentos médicos, boletins de ocorrência ou perícias que demonstrem a inexistência de alternativa;
  • Laudos que mostrem a proporcionalidade entre o bem protegido e o bem sacrificado.

Além disso, é essencial apresentar uma linha do tempo clara dos fatos, mostrando que a ação foi instantânea, sem premeditação ou possibilidade de evitar o risco por outro meio. O magistrado analisará não apenas o resultado, mas o intuito do agente e o contexto de urgência da conduta.

Resumo prático para identificar o estado de necessidade

Elemento Descrição
Base legal Artigo 24 do Código Penal
Natureza jurídica Excludente de ilicitude
Perigo exigido Atual, inevitável e não provocado voluntariamente
Proporcionalidade Bem sacrificado não pode ser muito superior ao bem protegido
Prova necessária Documental, testemunhal e circunstancial

Em síntese, o estado de necessidade é uma válvula humanizadora do Direito Penal. Ele reconhece que, em certas situações-limite, a própria sociedade não pode exigir do indivíduo o impossível. Mas para que sua aplicação seja legítima, é indispensável o cumprimento rigoroso dos requisitos legais e a demonstração inequívoca de que o perigo era concreto, inevitável e real.

FAQ — Estado de Necessidade

Tire dúvidas rápidas sobre requisitos, limites e jurisprudência aplicada.

1) O que é estado de necessidade no direito penal?
É a causa excludente de ilicitude do art. 24 do CP: pratica-se um fato típico para salvar direito próprio ou alheio de perigo atual, não provocado voluntariamente pelo agente, quando não era razoável exigir outro comportamento.
2) Quais são os requisitos básicos para o reconhecimento?
(a) perigo atual a direito; (b) não causado voluntariamente; (c) inexigibilidade de conduta diversa; (d) proporcionalidade entre o mal causado e o evitado; (e) inexistência de dever legal de enfrentar o perigo.
3) Qual a diferença entre estado de necessidade e legítima defesa?
Na legítima defesa, o perigo decorre de agressão humana injusta; no estado de necessidade, o perigo pode advir de qualquer fonte (natural, acidental ou humana) e a reação visa preservar um bem, mesmo sacrificando outro.
4) O que significa conflito de deveres e como os tribunais aplicam a proporcionalidade?
Quando dois bens jurídicos colidem, protege-se o de maior valor com o menor sacrifício possível. Julgados costumam exigir prova da inevitabilidade e da menor lesividade da conduta escolhida.
5) Há estado de necessidade se o agente provocou o perigo?
Se o perigo foi voluntariamente provocado, afasta-se a excludente (art. 24, § único). Pode haver, no máximo, redução de pena se presentes elementos de culpa concorrente ou erro de proibição inevitável.
6) O estado de necessidade pode ser altruísta?
Sim. É admitido para proteger direito alheio (p. ex., quebrar o vidro de carro para salvar criança ou animal em risco real), desde que observada a proporcionalidade e a inevitabilidade do dano.
7) Como se prova em juízo a inevitabilidade do dano?
Combinam-se provas documentais (laudos, fotos, boletins), testemunhos e, cada vez mais, mídias digitais (CFTV, geolocalização, registros de chamadas). O ônus é da defesa, mas o juiz deve apreciar à luz do princípio in dubio pro reo.
8) O que é excesso no estado de necessidade?
Ocorre quando a reação extrapola o necessário (intensidade, meios ou duração). O excesso doloso ou culposo reintroduz a ilicitude na medida do excesso (art. 23, parágrafo único, CP).
9) Servidor público com dever legal pode invocar a excludente?
Em regra, não quando o risco é inerente ao cargo (ex.: bombeiro). Porém, se houver risco absolutamente desproporcional e falta de meios, a jurisprudência admite avaliar inexigibilidade de conduta diversa.
10) Há reflexos no direito civil e administrativo?
Sim. Afastada a ilicitude penal, pode subsistir dever de indenizar pelo sacrifício do bem (art. 929 CC) quando a vítima do dano não tinha obrigação de suportá-lo. Na esfera administrativa, examinam-se proporcionalidade e legitimidade do ato.

Fundamentação Jurídica (Dossiê Técnico)

Normas centrais do Direito Penal

  • Art. 23, I, do Código Penal (CP) — Excludentes de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito).
  • Art. 24 do CP — Define o estado de necessidade: prática do fato para salvar direito próprio ou alheio de perigo atual e inevitável, não provocado voluntariamente pelo agente, sendo que o mal causado não pode ser claramente superior ao evitado.
  • Art. 24, § 1º do CPNão se aplica a quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.
  • Art. 25 do CP — Paralelo com a legítima defesa, útil para diferenciar as duas excludentes.

Normas de Direito Civil e Responsabilidade

  • Art. 188, II, do Código Civil (CC) — Não constituem atos ilícitos os praticados em estado de necessidade (causa de justificação civil).
  • Art. 929 do CC — Quem causou dano em estado de necessidade deve indenizar o prejuízo se era razoável exigir-se o sacrifício do seu interesse; permite a responsabilidade do beneficiado quando o sacrifício era no interesse deste.
  • Art. 930 do CC — Direito de regresso contra o culpado pelo perigo, quando identificável.

Normas processuais e probatórias

  • Art. 156 do CPP — Distribuição dinâmica do ônus probatório: cabe à acusação provar a tipicidade/ilicitude; ao réu, minimamente demonstrar os elementos fáticos da excludente, uma vez alegada.
  • Art. 386, VI, do CPP — Absolvição quando o fato é justificado (ex: estado de necessidade).

Parâmetros Dogmáticos e Provas Relevantes

  • Perigo atual (não futuro/hipotético) e inevitável por via menos lesiva.
  • Não provocação voluntária do perigo pelo agente.
  • Proporcionalidade: mal causado não pode ser claramente superior ao mal evitado (ponderação de bens: vida > integridade > liberdade > patrimônio).
  • Ausência de dever legal de enfrentar o perigo (bombeiros, policiais, médicos em serviço, em regra não podem invocar).
  • Provas: vídeos/fotos, laudos periciais (incêndio, enchente, pane), prontuários médicos, testemunhas do contexto de urgência, registros de chamada/atendimento, linha do tempo demonstrando a falta de alternativa.

Jurisprudência Indicativa (STJ/STF e Tribunais)

Critérios de proporcionalidade

  • STJ — Reconhece a excludente quando comprovado perigo atual, inexistência de via menos lesiva e equilíbrio entre o bem sacrificado e o preservado (ex.: salvamento de vida/saúde vs. lesão patrimonial de pequena monta).
  • STF — Enfatiza que o estado de necessidade é controle de lesividade e não salvo-conduto para dolo oportunista; exige-se contexto emergencial real.

Furto famélico e situações de miserabilidade extrema

  • Precedentes têm admitido atipicidade material ou aplicação do art. 24 do CP quando demonstrados fome extrema, valor ínfimo do bem e ausência de alternativa imediata.
  • Sem prova da urgência, a jurisprudência nega a excludente e, às vezes, aplica princípio da insignificância se presentes seus requisitos próprios.

Dever legal e profissionais de risco

  • Casos envolvendo agentes públicos sujeitos a dever legal de proteção tendem a afastar a excludente, analisando-se outras justificantes (legítima defesa, estrito cumprimento do dever, estado de necessidade exculpante no âmbito da culpabilidade).

Responsabilidade civil após o reconhecimento penal

  • Mesmo com absolvição penal por estado de necessidade (ilicitude excluída), pode subsistir indenização proporcional (arts. 188, II; 929; 930 do CC), sobretudo quando o beneficiário direto do salvamento é identificável.

Quadro de Aplicação Rápida (Checklist)

  1. Perigo atual? (agora, concreto, iminente)
  2. Inevitável por outro meio? (não havia alternativa segura e menos danosa)
  3. Quem criou o risco? (agente não provocou voluntariamente)
  4. Proporcionalidade (mal causado não claramente superior ao evitado)
  5. Dever legal de enfrentar o perigo? (se sim, em regra afasta a excludente)
  6. Provas reunidas? (documentos, testemunhas, mídia, laudos)

Leituras e Fontes Legais

  • Decreto-Lei 2.848/1940 (Código Penal) — arts. 23, 24 e 25.
  • Lei 10.406/2002 (Código Civil) — arts. 186, 188, II; 927; 929; 930.
  • Decreto-Lei 3.689/1941 (Código de Processo Penal) — arts. 156 e 386, VI.
  • Constituição Federal — princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da proporcionalidade (controle de restrições a direitos fundamentais).
  • Doutrina penal — Comentários ao CP (estado de necessidade justificante vs. exculpante; teoria da ponderação de bens jurídicos).

Modelos de Fundamentação (Estrutura Sugerida)

  1. Fatos e cronologia: descrever o perigo e por que era atual/inevitável.
  2. Subsunção: art. 24 do CP (requisitos) e proporcionalidade.
  3. Provas: listar documentos, mídias, testemunhas e laudos.
  4. Jurisprudência pertinente ao cenário (vida/saúde > patrimônio; furto famélico quando estritos requisitos).
  5. Pedidos: absolvição (CPP, art. 386, VI) e, no cível, solução conforme arts. 188, II; 929; 930 do CC (quando houver discussão indenizatória).

Boas Práticas Forenses

  • Protocole cedo o máximo de evidências objetivas (vídeo, atendimento médico, perícia).
  • Explique didaticamente a impossibilidade de alternativa e a ponderação de bens.
  • Evite confundir estado de necessidade com legítima defesa; delimite o instituto correto.
  • Em profissionais com dever de enfrentar o perigo, avalie outras justificantes ou culpabilidade (exculpante).

Considerações Finais (Encerramento)

O estado de necessidade é uma válvula de justiça do sistema penal que legitima o sacrifício de um bem para salvar outro de igual ou maior valor, desde que presentes perigo atual, inevitabilidade, não provocação e proporcionalidade. A prática forense demonstra que a tese exige prova robusta dos elementos fáticos e delimitação precisa do bem jurídico preservado. No âmbito civil, ainda que o fato seja lícito penalmente, a solução pode demandar recomposição proporcional do dano (arts. 188, II; 929; 930 do CC), especialmente quando identificável o beneficiário do salvamento. Uma atuação técnica que una cronologia clara, evidências objetivas e ponderação de bens eleva substancialmente as chances de êxito.

Mais sobre este tema

Mais sobre este tema

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *