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Enfiteuse: descubra como funciona o regime jurídico e as formas de extinção desse antigo direito real

Enfiteuse (aforamento): noções gerais e panorama atual

A enfiteuse — também chamada de aforamento — é um instituto histórico pelo qual o proprietário original do solo (o senhorio direto) concede a outrem (o enfiteuta ou foreiro) o direito de usar e fruir do imóvel de forma quase plena, mediante obrigações periódicas. Na prática, há uma divisão do domínio: o domínio direto permanece com o senhorio; o domínio útil é exercido pelo enfiteuta, que pode vender, hipotecar, alugar e construir, respeitadas as restrições do aforamento.

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses foi proibida (art. 2.038), mas as já existentes permaneceram resguardadas até sua extinção, regendo-se pelas normas anteriores e pela legislação especial (ex.: regime dos terrenos de marinha e seus acrescidos, disciplinado pelo Decreto-Lei nº 9.760/1946 e atos correlatos). Por isso, o tema segue atual em cidades litorâneas, áreas de antiga colonização e patrimônios públicos aforados.

Mensagem-chave: hoje não se criam novas enfiteuses no direito privado comum, mas milhares de contratos antigos e aforamentos públicos (especialmente de terrenos de marinha) permanecem vigentes e exigem gestão adequada até a sua extinção ou remição.

Estrutura jurídica: direitos e deveres

Direitos do enfiteuta (domínio útil)

  • Usar e fruir do imóvel, podendo edificar, cultivar, arrendar e ceder o domínio útil, nos termos do título;
  • Dispor e onerar o domínio útil (venda, hipoteca), com observância das cláusulas do aforamento e dos encargos devidos;
  • Receber indenização por benfeitorias necessárias, nos casos expressos em lei/título, quando houver extinção sem culpa do enfiteuta.

Obrigações típicas do enfiteuta

  • Pagar o foro anual (retribuição periódica pelo uso do domínio útil);
  • Pagar o laudêmio na alienação onerosa do domínio útil (percentual calculado sobre a base legal aplicável: em regra, 5% do valor do domínio pleno em terrenos de marinha, nos termos da legislação federal; em aforamentos privados antigos, podem existir percentuais diversos previstos no título antigo ou legislação local);
  • Manter o imóvel em bom estado e cumprir regras urbanísticas, ambientais e de segurança;
  • Não alterar a destinação sem anuência, quando houver cláusula proibitiva no título;
  • Responder por tributos e encargos que recaiam sobre o domínio útil (ex.: IPTU, taxas condominiais).

Faculdades do senhorio direto

  • Cobrar foro e laudêmio de acordo com a lei e o título;
  • Exigir a observância das cláusulas do aforamento (uso, conservação, destinação);
  • Exercer direitos de preferência e fiscalização quando previstos;
  • Reaver o domínio pleno em hipóteses de extinção (ex.: remição, confusão, inadimplemento qualificado).
Quadro informativo – Encargos usuais

  • Foro: quantia anual atualizada por norma contratual/legal.
  • Laudêmio: devido quando há alienação onerosa do domínio útil (a base de cálculo e a alíquota variam: nos terrenos de marinha, aplica-se a legislação federal específica; em aforamentos privados antigos, vale o que constar do título/lei pretérita).
  • Taxas administrativas: em aforamentos públicos (ex.: processos de transferência, certidões, vistorias).

Regime jurídico contemporâneo

Proibição de novas enfiteuses no direito privado

O art. 2.038 do Código Civil/2002 veda a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses. As existentes continuam eficazes até a extinção, aplicando-se as regras do Código Civil de 1916 e a legislação especial pertinente, além dos princípios gerais (função social, boa-fé objetiva, vedação ao enriquecimento sem causa).

Enfiteuse pública: terrenos de marinha

Nos imóveis da União sob regime de aforamento (terrenos de marinha e seus acrescidos), vigora o Decreto-Lei nº 9.760/1946 e atos complementares. Nessa hipótese, o particular é titular do domínio útil; a União, do domínio direto. Ao alienar o domínio útil, incide laudêmio federal (percentual e base definidos em lei/ato normativo), além de procedimentos próprios de autorização/averbação.

Compatibilização com normas urbanísticas e ambientais

O exercício do domínio útil submete-se às regras de zoneamento, parcelamento do solo, licenciamento e proteção ambiental. O descumprimento pode, inclusive, ser causa de sanções administrativas, civis e criminais, sem prejuízo das consequências contratuais perante o senhorio.

Gráfico conceitual – Linha do tempo
CC/1916: previsão ampla da enfiteuse → Décadas seguintes: aforamentos públicos e privados → CC/2002: proibição de novas (art. 2.038), preservando as antigas → Extinção por remição, confusão, caducidade ou conversão.

Extinção e conversão do regime

Remição (resgate) do aforamento

É a forma voluntária de extinguir a enfiteuse, mediante pagamento ao senhorio de um preço de remição (critério legal/contratual). Em aforamentos públicos, há procedimento administrativo específico para apuração do valor, emissão de guias e posterior averbação da remição, com consolidação do domínio pleno no particular.

Confusão

Ocorre quando o mesmo sujeito adquire domínio direto e domínio útil. Nessa hipótese, a enfiteuse se extingue automaticamente, por ausência de utilidade na dualidade de domínios, com averbação registral correspondente.

Inadimplemento qualificado e caducidade

O não pagamento reiterado de foro e/ou laudêmio, o uso em desacordo com a destinação ou a violação grave de cláusulas essenciais podem justificar medidas visando à resolução/extinção, conforme título e lei, observados o devido processo e a proporcionalidade.

Conversão para propriedade plena

Em muitos municípios e na União, políticas de regularização e desestatização imobiliária estimulam a conversão do domínio útil em propriedade plena, mediante remição ou aquisição do domínio direto, simplificando a cadeia dominial e reduzindo custos transacionais.

Checklist – Remição bem-sucedida

  1. Levantamento da matrícula e do título de aforamento (ou certidão da SPU, se terreno de marinha);
  2. Verificação de encargos pendentes (foro, laudêmio, taxas);
  3. Protocolização do pedido administrativo (quando público) ou negociação privada fundamentada;
  4. Pagamento das quantias calculadas segundo a norma vigente;
  5. Averbação registral da remição e consolidação do domínio.

Implicações negociais, tributárias e registrárias

Transações com domínio útil

Na compra e venda do domínio útil, é indispensável prever a responsabilidade pelo laudêmio, apresentar a certidão negativa de débitos de foro e observar os procedimentos de anuência quando exigidos (ex.: SPU nos imóveis da União). O valor do laudêmio e a base de cálculo não são uniformes: em aforamento público federal, seguem a lei e regulamentos federais; em regimes privados antigos, seguem o título e a legislação pretérita preservada pelo art. 2.038.

Tributação e custos correntes

Via de regra, o IPTU e as despesas ordinárias recaem sobre o domínio útil. Em alienações, além do laudêmio, podem incidir ITBI (se a municipalidade o exigir sobre a transferência do domínio útil) e IR sobre eventual ganho de capital. É recomendável simular a operação com o fisco local e consultar a legislação municipal aplicável.

Registro de imóveis

O aforamento deve estar perfeitamente lançado nas matrículas do domínio direto e do domínio útil, com vínculos cruzados. Alterações (cessão, sub-rogação, remição) exigem título hábil e averbação para produzir efeitos erga omnes. Em operações de crédito, as instituições financeiras avaliam com rigor a cadeia dominial e os ônus do aforamento.

Boas práticas para gestores, adquirentes e advogados

  • Realizar due diligence completa: matrícula, histórico do título, situação de foro/laudêmio, zoneamento, licenças;
  • Mapear restrições de uso e obrigações ambientais/urbanísticas incidentes sobre o imóvel;
  • Em alienações, negociar cláusulas claras sobre quem suporta laudêmio, prazos e documentação obrigatória;
  • Analisar a viabilidade de remição ou conversão para reduzir custos futuros e simplificar a propriedade;
  • Manter compliance documental (certidões, autorizações, comprovantes) para evitar autuações e nulidades.
Quadro comparativo – Enfiteuse x Superfície (resumo)

  • Enfiteuse: divide domínio (direto x útil); encargos de foro e laudêmio; novas vedadas no CC/2002; subsistem antigas e aforamentos públicos.
  • Superfície: direito real atual, temporário; não divide domínio, mas autoriza construir/plantar em terreno alheio; sem laudêmio; amplamente usado em política urbana.

Conclusão

A enfiteuse permanece relevante onde subsiste por força de contratos antigos e no regime especial dos terrenos de marinha. Embora o Código Civil de 2002 tenha proibido novas constituições, a gestão eficiente das enfiteuses vigentes demanda atenção a encargos (foro, laudêmio), procedimentos de transferência, licenças urbanísticas e ambientais, e às vias de extinção (especialmente a remição). Para investidores e proprietários, avaliar a possibilidade de conversão em propriedade plena ou de remição costuma reduzir incertezas, facilitar o crédito e simplificar a governança do ativo imobiliário.

Guia rápido

  • O que é: enfiteuse (aforamento) divide o domínio: senhorio direto (solo) e enfiteuta/foreiro (domínio útil).
  • Situação atual: novas enfiteuses foram vedadas pelo Código Civil de 2002 (art. 2.038), mas as antigas e os aforamentos públicos continuam válidos até extinção.
  • Encargos típicos: pagamento de foro anual e de laudêmio nas transmissões onerosas do domínio útil.
  • Extinção: remição (resgate), confusão de domínios, caducidade/inadimplemento qualificado, conversão para domínio pleno, desapropriação.
  • Casos públicos frequentes: terrenos de marinha e acrescidos (regidos por DL 9.760/1946 e Lei 9.636/1998) com atuação da SPU.
  • Cuidados práticos: due diligence registral, cálculo de encargos, anuências/autorizações, e averbação no Registro de Imóveis.

FAQ

1) Ainda posso criar uma enfiteuse hoje?

Não. O art. 2.038 do CC/2002 proibiu a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses. Permanecem apenas as já existentes e os aforamentos regidos por legislação especial (v.g., imóveis da União).

2) O que pago ao vender o domínio útil?

Regra geral incide laudêmio na alienação onerosa do domínio útil, além de tributos locais (ex.: ITBI quando aplicável) e custas. Em terrenos de marinha, o cálculo segue normas federais específicas e procedimentos perante a SPU.

3) Qual a diferença entre enfiteuse e direito de superfície?

Na enfiteuse há divisão do domínio (direto x útil) e encargos como foro e laudêmio; na superfície não há laudêmio e o direito é temporário, permitindo construir/plantar em terreno alheio, com regras do Estatuto da Cidade e do CC/2002.

4) Como funciona a remição (resgate)?

É a extinção voluntária mediante pagamento do preço legal/contratual ao senhorio. Em aforamentos públicos, há processo administrativo: cálculo, guia, quitação e averbação da remição, consolidando o domínio pleno no particular.

5) O que acontece se eu não pagar o foro?

O inadimplemento reiterado pode levar à cobrança com encargos, restrições a atos de transferência e, em hipóteses graves previstas no título/lei, à resolução/extinção do aforamento, após devido processo.

6) Preciso de autorização para vender o domínio útil?

Em aforamentos públicos normalmente há procedimento prévio (declarações, anuência/averbação e recolhimento de laudêmio). Em aforamentos privados antigos, seguem-se as cláusulas do título e a legislação pretérita preservada.


Base normativa comentada (fundamentos legais)

  • Código Civil de 2002, art. 2.038: veda novas enfiteuses, preservando as existentes e remetendo à legislação anterior e especial.
  • Código Civil de 1916 (regime pretérito): disciplinou enfiteuse/aforamento e seus efeitos; aplica-se subsidiariamente às enfiteuses antigas ainda vigentes.
  • Decreto-Lei 9.760/1946: rege terrenos de marinha e acrescidos; define domínio direto da União, domínio útil do particular, foro e laudêmio, e procedimentos administrativos.
  • Lei 9.636/1998: dispõe sobre gestão de imóveis da União e procedimentos de regularização, remição e transferência do domínio útil.
  • Normas de registro de imóveis (Lei 6.015/1973 e provimentos locais): exigem titulação hábil e averbações nas matrículas para eficácia erga omnes.
  • Direito urbanístico e ambiental (Estatuto da Cidade e legislação municipal/ambiental): condicionam uso, parcelamento e edificações no imóvel aforado.

Considerações finais

A enfiteuse sobrevive em bolsões específicos (contratos antigos e aforamentos públicos), exigindo gestão ativa de encargos, documentação e conformidade urbanística/ambiental. Remição ou conversão para domínio pleno tende a simplificar a cadeia dominial, reduzir custos e ampliar a segurança jurídica em financiamentos e transações.

Estas informações são de caráter educativo e não substituem a orientação personalizada de um advogado, registrador ou consultor especializado. Cada caso pode ter regras específicas no título e na legislação aplicável.

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