Dispensa e Inexigibilidade de Licitação: entenda as hipóteses legais e cuidados na contratação direta
Panorama geral
Na Lei nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), a regra é licitar. Entretanto, o próprio ordenamento prevê hipóteses em que a Administração pode contratar sem licitação, seja porque há dispensa (a competição permanece possível, mas a lei autoriza a contratação direta por razões objetivas), seja porque há inexigibilidade (a competição é inviável desde a origem). A correta qualificação do caso concreto — e a documentação robusta — é decisiva para a legalidade da contratação, para a responsabilização dos agentes e para a segurança do contrato.
- Lei nº 14.133/2021: arts. 74 (inexigibilidade) e 75 (dispensa), além de regras de planejamento, pesquisa de preços, transparência e gestão de riscos.
- Constituição Federal, art. 37, caput (princípios) e XXI (licitação como regra e exceções previstas em lei).
- Normas complementares (decretos, instruções normativas e regulamentos locais) sobre pregão eletrônico, Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), critérios de sustentabilidade e tratamento às MPEs.
Conceitos: quando há dispensa e quando há inexigibilidade
Dispensa de licitação
Na dispensa, a competição é viável, mas a lei autoriza que a Administração contrate diretamente devido a circunstâncias objetivas (por exemplo, pequeno valor, emergência ou alienação específica). Não se trata de “escolha livre”: o gestor deve motivar o enquadramento legal, demonstrar vantajosidade e preservar transparência e isonomia (com pesquisa de preços idônea e justificativa técnica).
Inexigibilidade de licitação
Na inexigibilidade, a competição é inviável. Isso ocorre quando só há um fornecedor apto (fornecedor exclusivo), quando a natureza do serviço exige singularidade e notória especialização do contratado (serviços técnicos intelectuais determinados), quando a seleção depende da consagração do artista, ou quando a lei reconhece modelos de contratação sem disputa (como certos credenciamentos). Aqui, não faz sentido “comparar propostas” porque a própria essência do objeto impede competição.
Aspecto | Dispensa | Inexigibilidade |
---|---|---|
Competição | Possível, mas lei autoriza não realizar | Inviável por natureza do objeto/mercado |
Exemplos | Pequeno valor; emergência; licitação deserta/fracassada; remanescente; bens/serviços específicos | Fornecedor exclusivo; serviços técnicos singulares com notória especialização; artista consagrado; credenciamento |
Prova necessária | Motivação legal + pesquisa de preços + vantajosidade + compatibilidade com planejamento | Comprovação da inviabilidade de competição (ex.: exclusividade, singularidade, consagração) |
Dispensa por hipóteses legais: principais cenários
O art. 75 da Lei nº 14.133/2021 elenca diversas hipóteses em que a Administração pode dispensar a licitação. Abaixo, os grupos mais recorrentes na práxis:
1) Baixo valor (pequena materialidade)
A lei permite a contratação direta quando o valor é reduzido, desde que observados os limites legais, a não fragmentação do objeto e a vantajosidade. Em linhas gerais, a lei definiu patamares distintos para (i) obras e serviços de engenharia e (ii) demais compras e serviços. É indispensável conferir os valores vigentes e normas locais que detalham o cálculo por exercício, unidade gestora e item, evitando fracionar para “caber” no limite.
- Consolidar demanda e evitar fracionamento; usar planejamento anual e catálogos padronizados.
- Realizar pesquisa de preços com múltiplas fontes (históricos, painéis, cotações) e fundamentar a vantajosidade.
- Publicar no PNCP e registrar a motivação, inclusive o estudo técnico preliminar (quando aplicável).
- Aplicar tratamento às MPEs conforme LC nº 123/2006, quando compatível com o objeto e a forma de contratação.
2) Emergência ou calamidade pública
Quando há situação emergencial (risco a pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares) ou calamidade pública, a lei autoriza contratação direta para atender imediatamente à situação emergencial, com escopo estritamente necessário e prazo contratual limitado ao tempo de resposta (a Lei nº 14.133/2021 prevê balizas temporais e de objeto). É vedado utilizar a emergência para contratar soluções permanentes ou ampliadas sem planejamento subsequente.
3) Licitação deserta ou fracassada
Se, devidamente publicizada, a licitação não atraiu interessados (deserta) ou todas as propostas foram inabilitadas (fracassada), e desde que não haja alteração substancial do objeto e condições, a Administração pode contratar diretamente, mantendo as condições iniciais e justificando a vantajosidade. É essencial documentar a tentativa prévia e as razões da contratação direta.
4) Contratação de remanescente
Se o contratado original rescindir ou descumprir o ajuste, é possível convocar os demais licitantes, na ordem de classificação, para assumir o remanescente nas mesmas condições. Se não houver interessados, admite-se contratar diretamente, mantendo o equilíbrio econômico-financeiro original.
5) Alienações e hipóteses específicas
A lei também prevê dispensa em situações como alienação de bens específicos (por exemplo, doações entre órgãos, permuta vantajosa, alienação de bens móveis inservíveis por leilão — aqui a modalidade própria é o leilão —, e atos próprios do regime de bens públicos), além de contratações com entes da Administração, com organizações de direito público ou em regimes especiais (consórcios, estatais), observadas as condições legais.
Inexigibilidade: hipóteses e requisitos
O art. 74 da Lei nº 14.133/2021 trata da inexigibilidade, ou seja, da inviabilidade de competição. Os eixos clássicos são:
1) Fornecedor exclusivo
Quando determinado bem ou serviço só pode ser fornecido por um único fornecedor (por direito de exclusividade, patente, domínio técnico ou por razões de compatibilidade/integração imprescindível), a disputa é inviável. É necessário comprovar a exclusividade por documentos idôneos (declaração de entidade oficial, atestados de fabricantes, análise de mercado) e demonstrar que não há substituto equivalente.
2) Serviços técnicos especializados de natureza singular, com notória especialização
Para determinados serviços intelectuais (ex.: consultorias estratégicas, projetos complexos, pareceres, defesas em processos de alta complexidade), a competição pode ser inviável quando a natureza é singular e se exige contratado com notória especialização. A Administração deve demonstrar, com estudos técnicos, por que a solução não é padronizável e por que o escolhido possui qualificação técnica reconhecida (obras, publicações, prêmios, experiência comprovada), evitando transformar a inexigibilidade em “preferência pessoal”.
3) Profissional do setor artístico consagrado
Contratações de artista consagrado pela crítica ou opinião pública podem ser inexigíveis, respeitadas as condições de mercado e a motivação. A comprovação da consagração (trajetória, prêmios, reconhecimento) e a justificativa da escolha são indispensáveis.
4) Credenciamento e modelos afins
A lei admite, em determinados serviços, o credenciamento: a Administração chama amplamente possíveis fornecedores que aceitem condições e preços previamente fixados, e contrata todos os que se habilitarem. Não há disputa competitiva tradicional; por isso, enquadra-se como inexigibilidade por inviabilidade de competição, desde que o chamamento seja público, os critérios objetivos e o preço de referência sejam justificáveis.
- Estudo técnico preliminar demonstrando por que a competição é inviável.
- Pesquisa de preços e justificativa de vantajosidade (mesmo sem disputa).
- Documentos de exclusividade (quando for o caso) ou comprovação de singularidade e notória especialização.
- Justificativa de escolha do fornecedor/profissional e do preço.
- Publicação no PNCP dos atos da contratação direta.
Planejamento, governança e transparência nas contratações diretas
Dispensa e inexigibilidade não significam “atalho” ou “flexibilização absoluta”. A Lei nº 14.133/2021 reforça o planejamento (estudos técnicos, estimativas, matriz de riscos quando cabível), a governança (segregação de funções, integridade, gestão de riscos), a publicidade (PNCP) e o controle (justificativas auditáveis). O processo deve conter, minimamente: (i) motivação técnica e legal; (ii) definição do objeto por desempenho e condições de entrega; (iii) pesquisa de preços e custo total de propriedade; (iv) minuta contratual com cláusulas essenciais (prazos, reajuste, garantias, sanções); (v) designação de gestor e fiscais; (vi) plano de fiscalização e indicadores de desempenho; e (vii) medidas de prevenção de fraude e conflito de interesses.
Riscos, controles e erros comuns
- Fracionamento indevido para “caber” no limite de dispensa por valor. Controle: consolidar demandas, usar planos anuais e registrar a motivação da separação quando técnica e justificável.
- Emergência artificial para justificar contratação direta. Controle: demonstrar causalidade entre o evento e o objeto, justificar a urgência e limitar o escopo e o prazo da contratação emergencial ao estritamente necessário.
- Inexigibilidade sem prova de exclusividade/singularidade/notória especialização. Controle: instruir processo com documentos idôneos, consulta a bases públicas, parecer técnico e análise jurídica.
- Preço sem referência ou acima de mercado. Controle: pesquisa de preços com múltiplas fontes, avaliação de custo total e negociação motivada.
- Transparência insuficiente. Controle: publicar no PNCP, manter trilha de auditoria e aplicar dados abertos.
Indicadores de governança em contratações diretas
É recomendável monitorar métricas para avaliar desempenho e integridade:
- Taxa de contratações diretas por valor (dispensas) em relação ao total de contratações comparáveis.
- Economia média obtida na negociação de preços em contratações diretas.
- Tempo de resposta em emergências versus execução efetiva.
- Índice de transparência (percentual de processos com publicação completa no PNCP).
- Incidência de glosas ou recomendações dos órgãos de controle por falhas documentais.
Gráfico ilustrativo — distribuição típica de motivos de contratação direta
Dados meramente ilustrativos para fins didáticos: o gráfico de barras abaixo mostra como, em uma amostra hipotética, distribuem-se os motivos de contratações diretas.
Exemplos práticos e como instruir o processo
Cenário A — Dispensa por valor para material de consumo
Objeto: fornecimento de materiais de expediente de uso rotineiro. Análise: bem padronizável, demanda previsível. Risco: fracionamento indevido. Providências: consolidar consumo trimestral, justificar quantitativos, realizar pesquisa de preços (três ou mais fontes idôneas), incluir cláusulas de entrega parcelada e publicar no PNCP. Documentos: ETP simplificado, termo de referência, mapa de preços, nota técnica de vantajosidade, minutas e despacho de autorização.
Cenário B — Emergência em unidade de saúde
Objeto: reparo emergencial em rede de gases medicinais. Análise: risco imediato à integridade de pacientes; contratação direta limitada ao restabelecimento do serviço. Providências: laudo técnico, escopo mínimo, prazo contratual restrito, preços de referência, plano de recuperação para contratação subsequente via licitação. Documentos: termo de emergência, laudo, orçamento, justificativa, despacho e publicação.
Cenário C — Inexigibilidade por fornecedor exclusivo
Objeto: aquisição de módulo proprietário que integra sistema já implantado. Análise: necessidade de compatibilidade e manutenção de garantia; único fornecedor. Providências: coleta de documentos de exclusividade, análise técnica demonstrando inexistência de substituto equivalente, comparação de preços com contratos similares, justificativa de vantajosidade. Documentos: ETP, parecer técnico, documentação do fabricante/representante, mapa de preços e minuta contratual.
Cenário D — Inexigibilidade por serviço técnico singular
Objeto: consultoria estratégica para modelagem de matriz de riscos em projeto de grande vulto. Análise: escopo intelectual singular; necessidade de equipe com notória especialização. Providências: ETP demonstrando singularidade, análise de portfólio, publicações e experiência do proponente, justificativa do preço e resultados esperados, contrato com entregáveis e indicadores. Documentos: termo de referência técnico, parecer, justificativa e publicação no PNCP.
Transparência e PNCP
Em todas as hipóteses de contratação direta, a Lei nº 14.133/2021 exige publicidade dos atos no PNCP (aviso, justificativas, contrato e resultados). Além de requisito de validade, isso facilita controle social, auditoria e comparabilidade, reduzindo riscos de sobrepreço e de responsabilização. Recomenda-se também disponibilizar dados abertos sobre quantidades, preços unitários, cronogramas e medições.
Integração com compliance e LGPD
Contratações diretas demandam atenção à integridade (prevenção à fraude, conflito de interesses, lobby indevido) e à proteção de dados pessoais (quando o objeto envolve dados sob a Lei Geral de Proteção de Dados — LGPD). Cláusulas contratuais de ética, confidencialidade, segurança da informação e sanções proporcionais devem ser previstas e fiscalizadas.
Conclusão
Dispensa e inexigibilidade são instrumentos excepcionais para garantir celeridade, continuidade do serviço público e eficiência quando a licitação, por lei, é dispensável ou inviável. O uso correto exige planejamento, motivação técnica, pesquisa de preços, gestão de riscos, transparência no PNCP e fiscalização do contrato. Quando bem aplicadas, essas hipóteses reduzem litígios, evitam desperdícios e protegem o interesse público; quando mal instruídas, geram anulações, sanções e responsabilização dos agentes. A chave, portanto, é tratar a contratação direta com o mesmo rigor (ou maior) do que uma licitação, documentando cada decisão e preservando os princípios do art. 37 da Constituição.
- Regra geral: licitar (CF, art. 37, XXI). Contratação direta só nas hipóteses legais.
- Dispensa (art. 75, Lei 14.133/2021): competição é possível, mas a lei autoriza não licitar.
- Dispensa por valor: observar limites legais distintos para engenharia e para compras/serviços; vedado fracionar.
- Dispensa por emergência/calamidade: objeto estritamente necessário e prazo limitado à resposta emergencial.
- Deserta/fracassada: após licitação sem interessados ou sem propostas válidas, pode contratar mantendo condições e justificando vantajosidade.
- Remanescente contratual: convocar classificados; se não houver interesse, contratação direta nas mesmas condições.
- Hipóteses específicas: atos entre entes públicos, alienações em condições legais, outras situações taxativas do art. 75.
- Inexigibilidade (art. 74): competição inviável por natureza do objeto/mercado.
- Fornecedor exclusivo: comprovar exclusividade idônea e ausência de substituto equivalente.
- Serviços técnicos singulares + notória especialização: justificar singularidade e qualificação reconhecida.
- Artista consagrado: comprovação de consagração e preço compatível com mercado.
- Credenciamento: chamamento público; contrata todos os habilitados por preço/condições predefinidos.
- Documentos mínimos: ETP/justificativa técnica, pesquisa de preços, motivação legal, minuta contratual, designação de gestor/fiscal.
- Transparência: publicar todos os atos no PNCP (aviso, justificativas, contrato e resultados).
- Riscos comuns: fracionamento indevido, “emergência fabricada”, ausência de prova de exclusividade/singularidade, sobrepreço.
- Controles: matriz de riscos, segregação de funções, parecer jurídico, trilha de auditoria e dados abertos.
- MPEs: aplicar LC 123/2006 quando compatível (tratamento favorecido sem ferir isonomia/competitividade).
- LGPD e integridade: prever cláusulas de proteção de dados, anticorrupção e confidencialidade quando aplicável.
- Métrica de governança: taxa de contratações diretas, economia negociada, tempo de resposta em emergências, índice de transparência PNCP.
- Essência: contratação direta exige o mesmo rigor da licitação: planejamento, motivação, vantajosidade e controle.
Qual é a diferença prática entre dispensa e inexigibilidade?
Dispensa é quando a competição seria possível, mas a lei autoriza contratar diretamente (ex.: pequeno valor, emergência, licitação deserta). Inexigibilidade é quando a competição é inviável por natureza (ex.: fornecedor exclusivo, serviços técnicos singulares com notória especialização, artista consagrado, credenciamento).
Dispensa por valor pode ser usada a qualquer momento?
Não. É preciso respeitar os limites legais do art. 75 da Lei nº 14.133/2021 (com patamares distintos para engenharia e para compras/serviços), evitar fracionamento indevido, comprovar vantajosidade com pesquisa de preços idônea e publicar os atos no PNCP.
Como comprovar fornecedor exclusivo na inexigibilidade?
Por documentos idôneos (declarações de entidades oficiais, fabricante, distribuidor exclusivo, análise técnica de compatibilidade/integração), além de estudo demonstrando inexistência de substituto equivalente e pesquisa de preços para validar o valor.
Serviços técnicos singulares: quando cabem sem licitação?
Quando o objeto é intelectual e não padronizável (consultoria estratégica, projetos complexos, pareceres especializados), exigindo contratado de notória especialização (experiência, publicações, reconhecimento). A singularidade deve estar motivada no processo (art. 74).
O que caracteriza a emergência para dispensa?
Risco atual de dano ou de interrupção de serviço essencial. A contratação deve ser estritamente necessária para conter o evento e por prazo limitado, com escopo mínimo e planejamento da solução definitiva via licitação subsequente.
Depois de licitação deserta ou fracassada, posso contratar direto?
Sim, desde que mantidas as condições originais do edital, devidamente justificada a vantajosidade e comprovada a regular publicidade do certame (art. 75). Registre as tentativas e publique no PNCP.
Credenciamento é inexigibilidade?
Sim, por inviabilidade de competição: a Administração publica chamamento público com preço/condições e contrata todos os habilitados. Exige critérios objetivos, publicidade e justificativa do preço.
Que documentos mínimos instruem a contratação direta?
Estudo técnico preliminar/nota técnica, motivação legal (art. 74 ou 75), pesquisa de preços e vantajosidade, termo de referência/escopo, minuta contratual com cláusulas essenciais, designação de gestor/fiscais, parecer jurídico (conforme regra interna) e publicação no PNCP.
O tratamento favorecido às MPEs se aplica na contratação direta?
Pode se aplicar conforme a LC nº 123/2006, desde que compatível com o objeto e sem violar isonomia e economicidade. As condições devem ser expressamente motivadas e proporcionais.
Quais riscos mais comuns e como mitigá-los?
Fracionamento indevido, “emergência fabricada”, inexigibilidade sem prova de exclusividade/singularidade, sobrepreço e falta de transparência. Mitigações: planejamento anual, matriz de riscos, pesquisa de preços robusta, segregação de funções, parecer jurídico e divulgação integral no PNCP.
- Constituição Federal, art. 37, caput e XXI.
- Lei nº 14.133/2021, arts. 6º (definições), 18–23 (planejamento), 72–76 (contratação direta), em especial art. 74 (inexigibilidade) e art. 75 (dispensa).
- LC nº 123/2006 (tratamento favorecido às MPEs).
- PNCP — regras de publicidade e transparência (arts. 174 e segs. da Lei 14.133/2021 e regulamentações locais).
- Normas e manuais dos órgãos de controle e regulamentos internos do ente federado competente.