Direito civil

Filhos de Brasileiros Nascidos no Exterior: Seus Direitos na Herança e Como Proceder no Brasil

Conceito e escopo

Filhos de brasileiros nascidos fora do país têm, em regra, igualdade sucessória em relação aos filhos nascidos no Brasil. Isso decorre de três pilares do ordenamento: (i) a proibição de discriminação entre filhos (CF/88, art. 227, §6º); (ii) a igualdade entre brasileiros e estrangeiros no gozo de direitos civis (CF/88, art. 5º, caput); e (iii) as regras de direito internacional privado sobre qual lei rege a sucessão (LINDB, art. 10 e §1º). Em termos práticos: se o de cujus (falecido) era domiciliado no Brasil, aplica-se a lei brasileira à sucessão, ainda que existam herdeiros no exterior; se era domiciliado fora, a lei do domicílio normalmente prevalece, com reserva de proteção à legítima do cônjuge e dos filhos brasileiros, quando a lei brasileira lhes for mais favorável (LINDB, art. 10, §1º).

Mensagem-chave: ser nascido fora do Brasil não diminui a vocação hereditária. O que realmente importa é a relação de parentesco (descendente, ascendente, cônjuge/companheiro) e a lei aplicável definida pelo domicílio do falecido e pela localização dos bens.

Nacionalidade e registro: isso influencia o direito de herdar?

Para herdar no Brasil não é obrigatório ser brasileiro. A Constituição assegura aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos civis (art. 5º, caput), e o Código Civil não condiciona a vocação hereditária à nacionalidade. Entretanto, quando o descendente é filho de brasileiro nascido no exterior, pode adquirir a nacionalidade brasileira nos termos do art. 12, I, “c”, da CF/88 (registro em repartição consular brasileira ou residência no Brasil com posterior opção). A nacionalidade brasileira pode ser especialmente relevante para acionar a regra protetiva da LINDB (art. 10, §1º), que garante a legítima segundo a lei brasileira se esta for mais benéfica ao cônjuge e aos filhos brasileiros.

Base legal essencial (resumo prático):

  • CF/88, art. 227, §6º: igualdade absoluta entre filhos, vedadas designações discriminatórias.
  • CF/88, art. 5º, caput: igualdade de direitos entre brasileiros e estrangeiros.
  • LINDB, art. 10: sucessão regulada pela lei do domicílio do falecido; §1º protege a legítima do cônjuge/filhos brasileiros se a lei brasileira for mais favorável.
  • CC/2002, arts. 1.784, 1.829 e 1.845: abertura da sucessão, ordem de vocação e herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge).
  • CPC/2015, art. 23, II: jurisdição brasileira para inventário de bens situados no Brasil.

Qual lei se aplica quando há bens no exterior?

Em sucessões com patrimônio transnacional, é útil separar dois planos:

Plano da lei aplicável

Se o falecido era domiciliado no Brasil, aplica-se a lei brasileira à sucessão, inclusive para definir a legítima e a ordem de vocação. Se era domiciliado no exterior, a lei estrangeira tende a reger a sucessão, salvo a reserva do §1º do art. 10 (proteção do cônjuge e dos filhos brasileiros quando mais favorável a lei brasileira).

Plano da jurisdição e partilha

Bens situados no Brasil podem (e, em regra, devem) ser partilhados por inventário sob jurisdição brasileira (CPC, art. 23, II). Para bens situados no exterior, é comum exigir inventário/partilha no país onde se localizam, conforme a regra local. Assim, famílias fazem inventários paralelos, coordenando a colheita de documentos para evitar decisões contraditórias.

Dica prática: comece mapeando domicílio do falecido e localização dos bens. Em seguida, confronte a lei estrangeira com a reserva protetiva brasileira (LINDB, art. 10, §1º). Isso evita reduzir legítima de filhos brasileiros nascidos fora.

Ordem de vocação e legítima

A ordem de chamamento dos herdeiros segue o art. 1.829 do CC. Filhos (descendentes) concorrem com o cônjuge, observadas as regras do regime de bens. Para filhos de brasileiros nascidos fora do país, valem as mesmas balizas: não há qualquer hierarquia inferior por local de nascimento. Como herdeiros necessários (art. 1.845 do CC), têm direito à legítima (metade do acervo), que não pode ser afastada por testamento, salvo hipóteses legais de deserdação ou exclusão.

Reconhecimento de filiação e prova

Quando o vínculo de filiação foi estabelecido no exterior, certidões estrangeiras precisam ser aceitas no Brasil. Desde a Convenção da Apostila de Haia, basta a apostila no país de origem para uso no Brasil — dispensando a antiga legalização consular. Se o documento não estiver em português, providencia-se tradução juramentada, além de eventual registro no Cartório de Registro Civil (assentos estrangeiros podem ser trasladados no 1º Ofício do domicílio brasileiro).

Checklist de documentos frequentes

  • Certidão de óbito do falecido (original ou cópia autenticada).
  • Documentos pessoais dos herdeiros e cônjuge/companheiro.
  • Certidões de nascimento/casamento (estrangeiras apostiladas e com tradução juramentada, quando necessário).
  • Provas de propriedade de bens no Brasil e no exterior (matrículas, extratos, contratos sociais, etc.).
  • Testamento (público, cerrado ou particular; estrangeiro pode exigir exequatur local e/ou confirmação judicial).

Inventário no Brasil com herdeiros residentes no exterior

O inventário pode tramitar no Brasil mesmo que todos os herdeiros residam fora, desde que haja bem situado no território nacional. É comum o juízo autorizar poderes a advogado local, inclusive por procuração pública estrangeira apostilada e traduzida. Se todos forem capazes e concordes, é possível inventário extrajudicial em cartório (Lei 11.441/2007; art. 610, §1º, CPC), com escritura de partilha — sem prejuízo de procedimentos correlatos no exterior para bens lá situados.

Exemplo prático de arranjo transnacional

Situação Lei aplicável à sucessão Procedimento sobre bens Ponto de atenção
Falecido domiciliado no Brasil; imóveis no Brasil e contas na Europa Lei brasileira (LINDB, art. 10) Inventário no Brasil (bens locais) + medidas no país europeu para liberar ativos Alinhar legítima e eventual “forced heirship” estrangeira
Falecido domiciliado na França; herdeiros (filhos brasileiros) nascidos fora Lei francesa, salvo reserva protetiva do art. 10, §1º (se mais favorável a lei brasileira) Inventário francês para bens de lá; no Brasil, partilha de bens aqui localizados Comparar percentuais de legítima e colher parecer de direito estrangeiro
Testamento estrangeiro contemplando apenas parte dos filhos Submete-se à lei aplicável; não pode reduzir a legítima de herdeiros necessários Homologação/validação e controle de compatibilidade Checar nulidades e “cláusulas de eleição de lei”

Tributação (ITCMD) e tema STF

As transmissões causa mortis são tributadas pelo ITCMD (imposto estadual). Quando há elemento estrangeiro — doador ou falecido domiciliado no exterior, ou inventário processado fora — o STF fixou tese (Tema 825) impedindo os Estados de cobrarem ITCMD sem lei complementar federal. Assim, em cenários transnacionais, as famílias devem avaliar: (i) competência do Estado (local do inventário/bens); (ii) alíquotas e hipóteses de isenção; (iii) se o caso se amolda às hipóteses vedadas pelo STF (o que pode postergar ou reduzir a exigência). Além disso, não há, em regra, tratados de bitributação em heranças firmados pelo Brasil, de modo que pode ser necessário pleitear créditos/uniformização administrativa caso ambas as jurisdições tributem o mesmo fato.

Alerta fiscal: guarde comprovantes de recolhimento, laudos de avaliação e câmbio oficial aplicados em ativos no exterior. Em muitos Estados, o ITCMD incide sobre o valor de mercado convertido em reais na data-base definida pela legislação local.

Planejamento sucessório internacional

Para famílias com filhos nascidos fora, é recomendável um planejamento preventivo:

  • Inventário negativo quando aplicável, para regularizar a inexistência de bens em determinada jurisdição e agilizar a vida civil.
  • Testamento com cláusulas claras sobre lei aplicável, proteção da legítima e mecanismos de administração de bens em países distintos.
  • Holding patrimonial (com cautela) para organizar participações societárias e governança familiar.
  • Apóstila e tradução prévias de documentos sensíveis (certidões de filiação, casamento, adoção).
  • Pacto antenupcial e regime de bens coerentes com a estratégia internacional da família.
Fluxo simplificado — sucessão com bens no Brasil e no exterior
Mapear bens & domicílio Definir lei aplicável (LINDB) Inventários coordenados ITCMD & apostila

Adoção, reprodução assistida e multiparentalidade no cenário internacional

Filhos havidos por adoção internacional ou por reprodução assistida (inclusive com gestação por substituição) também não sofrem restrição sucessória, desde que reconhecida a filiação nos termos da lei e/ou por decisão judicial homologada quando necessário. A multiparentalidade, admitida pela jurisprudência brasileira, impacta a sucessão ao ampliar o rol de ascendentes/descendentes, respeitada a legítima. No âmbito transnacional, decisões estrangeiras podem exigir homologação no STJ para produzir efeitos no Brasil (art. 105, I, “i”, CF/88).

Competência judicial e cooperação internacional

O Brasil participa de instrumentos de cooperação jurídica internacional (cartas rogatórias, Convenções da Haia específicas), que agilizam a colheita de provas, citações e o reconhecimento de decisões. Para bens no exterior, ordens brasileiras não têm imperium automático: muitas vezes, é indispensável instaurar procedimento local. Por isso, a estratégia passa por:

  1. Definir o foro brasileiro competente (último domicílio, situação dos bens).
  2. Providenciar representação local em cada país com ativo relevante.
  3. Planejar a circulação de decisões (ex.: sentença de partilha brasileira a ser reconhecida fora).
  4. Administrar prazos e moeda (conversões, variação cambial, atualização de valores).
Boas práticas de governança familiar internacional

  • Livro de compliance documental da família (certidões, apostilas, traduções, decisões).
  • Política de testamentos coordenados (evitar revogação cruzada indesejada).
  • Cláusulas de choice of law e foro, quando compatíveis.
  • Seguro de vida e trust/fundos no exterior: conferir compatibilidade com a legítima brasileira.

Questões sensíveis recorrentes

Testamento estrangeiro contrariando a legítima

Sendo a lei brasileira aplicável (ou incidindo a reserva do §1º do art. 10 da LINDB para filhos/cônjuge brasileiros), cláusulas que reduzam a legítima são inoponíveis nesta parte. Eventual excesso testamentário deve ser reduzido (redução das disposições testamentárias).

Meação e regimes de bens

Antes de falar em herança, apura-se a meação do cônjuge/companheiro conforme o regime de bens. Em casamentos com elemento internacional, convém verificar a lei do regime (que pode ser diversa da lei da sucessão), pactos antenupciais e regras de conexão estrangeiras.

Ações e quotas de sociedades estrangeiras

Participações em empresas fora do Brasil exigem leitura do direito societário local (restrições à transferência, necessidade de probate/conferma, cláusulas cross-border). No Brasil, a partilha refletirá os títulos resultantes do procedimento no exterior.

Conclusão

O filho de brasileiro nascido fora do país goza de plena igualdade sucessória. O que determina o desfecho é a coordenação entre (i) lei aplicável à sucessão (domicílio do falecido), (ii) jurisdição para bens situados em cada país e (iii) compliance documental (apostila, traduções e reconhecimento de decisões). A reserva protetiva da LINDB garante que, quando a lei brasileira for mais benéfica ao cônjuge e aos filhos brasileiros, a legítima definida pela nossa legislação prevaleça. Com planejamento e cooperação internacional, famílias transnacionais conseguem partilhas seguras, céleres e fiscalmente eficientes — sem qualquer discriminação pelo local de nascimento dos herdeiros.

Perguntas Frequentes sobre o Direito de Sucessão de Filhos de Brasileiros Nascidos Fora

Filhos de brasileiros nascidos no exterior têm os mesmos direitos sucessórios que os nascidos no Brasil?

Sim. A Constituição Federal assegura a igualdade entre todos os filhos (art. 227, §6º) e proíbe qualquer discriminação em razão do local de nascimento. Portanto, filhos de brasileiros nascidos fora do país possuem os mesmos direitos sucessórios, inclusive a legítima, desde que reconhecida a filiação.

É necessário possuir nacionalidade brasileira para herdar bens localizados no Brasil?

Não. A legislação brasileira não exige nacionalidade para herdar. Estrangeiros podem ser herdeiros no Brasil conforme o art. 5º da Constituição Federal. Contudo, filhos de brasileiros nascidos no exterior podem optar pela nacionalidade brasileira (art. 12, I, “c”, CF/88), o que pode facilitar procedimentos legais e fiscais.

Qual lei se aplica à sucessão se o falecido residia fora do Brasil?

De acordo com o art. 10 da LINDB, a sucessão é regida pela lei do domicílio do falecido. Entretanto, o §1º do mesmo artigo assegura que, se a lei brasileira for mais favorável ao cônjuge ou aos filhos brasileiros, esta prevalece para proteger a legítima.

É possível abrir inventário no Brasil mesmo que os herdeiros residam fora do país?

Sim. Quando há bens localizados no Brasil, o art. 23, II, do CPC/2015 estabelece a competência da Justiça brasileira. Herdeiros no exterior podem ser representados por procuração pública estrangeira apostilada e traduzida por tradutor juramentado.

Como deve ser feita a validação de documentos estrangeiros para uso no inventário brasileiro?

Os documentos emitidos no exterior devem estar apostilados conforme a Convenção da Apostila de Haia e traduzidos por tradutor público juramentado. Após isso, podem ser registrados em cartório no Brasil, quando necessário, para validade jurídica plena.

Filhos de brasileiros nascidos fora têm direito à legítima?

Sim. São herdeiros necessários conforme o art. 1.845 do Código Civil e possuem direito à metade do patrimônio (legítima), assim como os filhos nascidos no Brasil. O testamento não pode privá-los desse direito, salvo em casos de deserdação previstos em lei.

Como ocorre a partilha de bens quando há patrimônio no exterior?

Os bens situados no Brasil são partilhados segundo a lei brasileira e sob jurisdição nacional, enquanto os bens no exterior seguem a lei do país onde estão localizados. Frequentemente são abertos inventários paralelos, com coordenação jurídica internacional.

Existe cobrança de ITCMD em sucessões internacionais?

Sim, porém o STF (Tema 825) decidiu que os Estados não podem cobrar ITCMD sobre heranças ou doações com origem no exterior sem lei complementar federal. Assim, é necessário verificar a legislação estadual e a situação específica de cada caso antes da cobrança.

É possível reconhecer testamento feito no exterior no Brasil?

Sim, desde que o testamento estrangeiro não contrarie as normas de ordem pública brasileira e seja homologado pelo STJ (art. 105, I, “i”, CF/88). Caso reduza a legítima de herdeiros necessários, o excesso será reduzido conforme o Código Civil.

Filhos adotados ou gerados por reprodução assistida no exterior possuem direito à herança?

Sim. Uma vez reconhecida judicialmente ou legalmente a filiação, o direito à herança é integral. Adoções internacionais e filhos gerados por técnicas de reprodução assistida não sofrem qualquer restrição sucessória, conforme entendimento consolidado do STJ e do art. 1.596 do Código Civil.


Base Técnica e Fontes Legais

  • Constituição Federal: arts. 5º (igualdade), 12, I, “c” (nacionalidade), 227, §6º (igualdade entre filhos), 105, I, “i” (homologação de sentença estrangeira).
  • Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB): art. 10 e §1º — define lei aplicável à sucessão e proteção da legítima de filhos e cônjuge brasileiros.
  • Código Civil (Lei nº 10.406/2002): arts. 1.784 a 1.829 (abertura e ordem da sucessão), 1.845 (herdeiros necessários), 1.857 (testamento), 1.961 (redução de disposições testamentárias).
  • Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015): art. 23, II (competência para inventário de bens no Brasil), art. 610, §1º (inventário extrajudicial).
  • STF, Tema 825: vedação à cobrança de ITCMD sobre heranças/dotações do exterior sem lei complementar.
  • Convenção da Apostila de Haia (Decreto nº 8.660/2016): reconhecimento de documentos estrangeiros.
  • Jurisprudência correlata: STJ, REsp 1.334.978/RS (sucessão internacional e legítima de herdeiros brasileiros).
Resumo técnico: A sucessão de filhos de brasileiros nascidos fora segue a lei do domicílio do falecido, mas a legítima dos herdeiros brasileiros é sempre protegida pela lei nacional quando mais benéfica, conforme o §1º do art. 10 da LINDB.

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