Criptomoedas no Brasil: regras do Banco Central, impostos e como ficar 100% em dia
Panorama regulatório atual das criptomoedas no Brasil
O Brasil já possui um arcabouço específico para prestadores de serviços de ativos virtuais (VASPs) e regras fiscais aplicáveis a pessoas físicas e jurídicas que compram, vendem, custodiam, intermedeiam ou remuneram em cripto. A Lei nº 14.478/2022 (conhecida como Marco Legal dos Criptoativos) estabeleceu princípios, conceitos e diretrizes para o setor, e o Decreto nº 11.563/2023 designou o Banco Central do Brasil (BCB) como autoridade competente para autorizar e supervisionar VASPs. A CVM segue responsável por criptoativos que se qualificam como valores mobiliários (ex.: determinados security tokens). No campo fiscal, a Receita Federal (RFB) exige declarações mensais e anuais (IN RFB 1.888/2019) e tributa ganhos de capital, mineração e rendimentos de staking/airdrop.
• BCB: autorização e supervisão de VASPs (intermediação, custódia, transferências).
• CVM: ofertas e negociação de tokens que sejam valores mobiliários (ex.: STOs).
• RFB: deveres de reporte (IN 1.888/2019) e tributação de pessoas físicas e jurídicas.
• ANPD: proteção de dados (LGPD) em exchanges, carteiras e provedores.
• Coaf: prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo (PLD/FT).
Como o Marco Legal dos Criptoativos afeta empresas e usuários
Autorização e supervisão de prestadores
Empresas que executam atividades típicas de ativos virtuais (p. ex., administração de carteiras, custódia, intermediação, execução de ordens e transferência) devem buscar autorização do BCB, cumprir requisitos prudenciais e implantar controles de PLD/FT, governança, segurança cibernética e continuidade de negócios. A operação sem autorização pode gerar sanções administrativas, civis e penais.
Regras de conduta e consumerismo
O Marco Legal determina boas práticas de transparência (clareza de taxas, riscos, natureza do ativo, ausência de garantia estatal), segregação de recursos (fundos de clientes separados do patrimônio do VASP) e gestão de conflitos. Essas práticas se somam ao Código de Defesa do Consumidor para casos de indisponibilidade de saques, publicidade enganosa, vícios de serviço e incidentes de dados.
Tokens que podem ser valores mobiliários
Nem todo token é valor mobiliário. Entretanto, direitos de participação, parceria ou remuneração que se enquadrem na definição de valor mobiliário (art. 2º da Lei 6.385/1976) atraem a competência da CVM. Em regra prática: utilidade e uso em rede tendem a escapar da CVM; promessa de retorno financeiro atrelada ao esforço de terceiros tende a atrair a autarquia.
• Uso primário funcional (acesso a serviço/produto) e não investimento;
• Ausência de promessa de remuneração/retorno;
• Descentralização de governança e desenvolvimento;
• Oferta sem assimetria de informação relevante ao público;
• Comercialização sem intermediação típica do mercado de capitais.
Observação: a análise sempre é caso a caso.
Tributação de cripto para pessoas físicas
Ganhos de capital (venda/troca)
Para pessoas físicas, a alienação de cripto é tratada como ganho de capital. A legislação brasileira prevê isenção quando o total de vendas no mês não ultrapassar R$ 35.000,00 (regra tradicional aplicada a bens e direitos). Acima disso, aplica-se a tabela progressiva de ganhos de capital (15% até R$ 5 milhões de ganho; 17,5% entre R$ 5–10 milhões; 20% entre R$ 10–30 milhões; 22,5% acima de R$ 30 milhões). O imposto deve ser recolhido via DARF no mês seguinte ao evento.
Custo de aquisição e apuração
O custo é o valor efetivamente pago (incluindo taxas). Na permuta (cripto por cripto), embora não haja “moeda corrente”, há alienação e, se houver ganho, pode haver tributação. Em custódia própria, a guarda não altera a tributação; já em casas de câmbio, é crucial registrar preço médio e taxas por operação.
Mineração, staking, airdrops e rendimentos
Cripto recebida por mineração ou staking/airdrop caracteriza rendimento na data do recebimento (avaliado a valor de mercado), tributável conforme as regras de carnê-leão (rendimentos recebidos do exterior) ou como receita da pessoa jurídica, se a atividade for empresarial. Quando esses cripto forem posteriormente alienados, o custo é o valor reconhecido no recebimento.
Declaração anual e reporte mensal
Além do IR anual (bens e direitos e rendimentos), há o dever de reporte mensal à RFB de certas operações com cripto (IN 1.888/2019). Exchanges domiciliadas no Brasil reportam todas as operações de clientes. Pessoas físicas devem reportar operações realizadas fora de exchanges brasileiras (ou por meio de exchanges estrangeiras/peer-to-peer) quando o total mensal movimentado exceder R$ 30.000,00. O não reporte pode gerar multa pecuniária por atraso, incorreção ou omissão.
1) Registre todas as compras, vendas, trocas e custos (taxas).
2) Verifique se suas vendas no mês ultrapassaram R$ 35 mil (isenção).
3) Se houve ganho tributável, gere DARF e pague até o último dia útil do mês seguinte.
4) Se movimentou > R$ 30 mil/mês fora de exchanges brasileiras, entregue o arquivo mensal à RFB.
5) Informe saldos e rendimentos na declaração anual (bens e direitos + rendimentos tributáveis/isentos).
Tributação de cripto para empresas
Atividade operacional (exchanges, mineração, market making)
Empresas que exploram cripto como atividade fim reconhecem receitas, custos e despesas conforme a legislação societária e fiscal (Lucro Real/Presumido/Simple Nacional, quando aplicável). Mineração costuma gerar receita na data do recebimento, e o estoque de cripto é avaliado pelo custo, observando-se políticas contábeis adequadas (CPC/IFRS), além de controles de PLD/FT e requisitos do BCB quando a atividade se enquadrar como VASP.
Cripto no balanço (tesouraria e pagamentos)
Se a empresa mantém cripto em tesouraria ou remunera fornecedores/empregados com ativos virtuais, precisa de políticas de mensuração, segurança (chaves, multiassinatura, custodiantes), controles internos e divulgação (notas explicativas). Em geral, o reconhecimento segue o custo e eventual perda por impairment; ganhos só se realizam na alienação, conforme prática contábil adotada.
Prevenção à lavagem de dinheiro, KYC e Travel Rule
VASPs devem implementar programas de compliance: identificação e verificação de clientes (KYC), monitoramento de transações, análises de risco, reportes ao Coaf, retenção de registros e resposta a ordens das autoridades. A orientação internacional da FATF/GAFI (a chamada Travel Rule) recomenda que remetente e destinatário de transferências de cripto acima de certos limiares tenham informações de origem e beneficiário trocadas entre VASPs. O alinhamento com essas diretrizes é tendência na supervisão do BCB.
Proteção de dados e segurança cibernética (LGPD)
Exchanges, carteiras e emissores de tokens tratam dados pessoais (KYC, biometria, endereços e transações associadas a identidades). São obrigatórios: base legal para o tratamento, minimização de dados, privacy by design, contratos com operadores, gestão de incidentes e comunicações à ANPD e titulares quando houver risco/dano relevante. Criptografia end-to-end, HSM, segregação de ambientes, avaliações de impacto (DPIA) e testes de intrusão compõem o mínimo esperado.
Riscos jurídicos comuns e como mitigá-los
Custódia e insolvência
A segregação patrimonial e os acordos de custódia são essenciais. Sem isso, clientes podem ser equiparados a credores quirografários em caso de insolvência. Mitigue com prova de reservas (proof of reserves), segregação on-chain e auditorias independentes.
Publicidade e promessas de retorno
Campanhas que insinuem garantia de rentabilidade podem caracterizar publicidade enganosa (CDC) e até oferta irregular de valores mobiliários (CVM). Utilize disclaimers claros, explique riscos de volatilidade e evite linguagem de investimento garantido.
Tributação de peer-to-peer e P2P cross-border
Operações P2P e em exchanges estrangeiras não escapam do radar da RFB (IN 1.888/2019). A falta de reporte pode gerar multas e facilitar a glosa de custos e compensações. Adote planilhas/sistemas que consolidem custos, cotações e DARFs, e considere assessoria contábil.
Representação visual – faixas de IR sobre ganho de capital
O gráfico abaixo ilustra as alíquotas por faixas de ganho para pessoas físicas:
Boas práticas contratuais e probatórias
Termos de uso e política de risco
Inclua cláusulas sobre volatilidade, forks, airdrops, congelamento por ordem judicial, taxas on-chain, slippage e responsabilidades do usuário (ex.: guarda de chaves, phishing). A transparência contratual reduz litígios e facilita a defesa perante Procons e Judiciário.
Trilhas de auditoria e cadeia de custódia
Mantenha registros imutáveis de ordens, txids, carimbos de tempo, carteiras de origem/destino e justificativas de compliance. Em disputas, a prova técnica (hashes, logs assinados, laudos periciais) costuma ser decisiva para comprovar autoria e integridade.
Tendências regulatórias e pontos de atenção
É razoável esperar do BCB: regras finais de autorização, critérios de capital e governança; alinhamento à Travel Rule; e diretrizes de gestão de riscos operacionais. Da CVM, segue a evolução de entendimentos sobre tokenização (imobiliária, recebíveis, cotas) e coordenação com o BCB para ambientes de testes e sandboxes. No fiscal, a RFB pode expandir cruzamentos de dados com exchanges estrangeiras e reforçar o monitoramento automatizado de DARFs não pagos.
• Não recolher DARF após vendas acima de R$ 35 mil/mês;
• Ignorar tributação em permuta cripto-cripto com ganho;
• Omitir reporte mensal (> R$ 30 mil fora de exchanges nacionais);
• Classificar staking/airdrop como isento (são rendimentos);
• Não documentar custo (perdendo deduções de taxas).
Conclusão
O ecossistema brasileiro de criptoativos está em madura transição do vácuo regulatório para um regime com autoridade definida (BCB), coordenação com a CVM e exigências fiscais claras. Usuários e empresas que estruturam controles, governança e compliance tendem a operar com segurança jurídica e competitividade, especialmente ao profissionalizar a apuração fiscal e a gestão de riscos (custódia, PLD/FT e LGPD). Para projetos novos, a recomendação é integrar desde o início: análise regulatória, desenho de tokenomics compatível com o regime brasileiro, políticas de segurança e um programa fiscal com DARFs, reportes e documentação sólida.
Guia rápido prático (passo a passo para estar em dia no Brasil)
Para pessoas físicas que investem ou operam
1) Organize registros: mantenha planilhas ou software com cada ordem (data/hora, par, quantidade, preço, taxas, txid). Guarde documentos de origem dos recursos. Faça backup seguro.
2) Apure mensalmente: some o total de vendas (qualquer cripto por real ou por outra cripto) no mês. Se o total vendido for ≤ R$ 35.000, seus ganhos desse mês são isentos; se ultrapassar, calcule o ganho de capital por operação, aplique a alíquota da faixa e gere o DARF até o último dia útil do mês seguinte.
3) Reporte mensal (IN 1.888/2019): se usou exchange estrangeira ou fez P2P e o total movimentado no mês (compra + venda + trocas) foi > R$ 30.000, transmita o arquivo eletrônico à Receita até o fim do mês seguinte. Em exchanges brasileiras, o reporte é feito pela própria empresa.
4) Declare no IR anual: em “Bens e Direitos”, informe saldos em 31/12 (por ativo e custodiante); em “Rendimentos”, reporte staking/airdrop/mineração; em “Ganhos de Capital”, consolide DARFs pagos e eventuais prejuízos compensáveis conforme regras aplicáveis.
Para empresas (ou PF com atividade habitual)
1) Defina o enquadramento: se presta serviços típicos de ativos virtuais, avalie necessidade de autorização do BCB. Alinhe com CVM caso tokenize ativos enquadráveis como valores mobiliários.
2) Implemente compliance: políticas de PLD/FT (KYC, monitoramento, sanções), governança (segregação de funções, trilha de auditoria), segurança (HSM, MPC/multi-sig), continuidade (BCP/DRP) e resposta a incidentes (LGPD/ANPD).
3) Contabilidade e tributos: estabeleça políticas de mensuração, reconhecimento e divulgação (CPC/IFRS). No fiscal, reconheça receitas (mineração, taxas, spreads), deduza custos/taxas e cuide de obrigações acessórias (SPED, e-Financeira quando aplicável, RFB/IN 1.888/2019).
4) Contratos e transparência: termos de uso claros sobre riscos, taxas, congelamento por ordem judicial, reembolsos e disputas; política de divulgação de prova de reservas e segregação patrimonial.
Checklist de risco jurídico
• Confirme se seu token é de utilidade ou valor mobiliário; ajuste a oferta conforme.
• Nunca prometa rentabilidade; eduque o usuário sobre volatilidade.
• Trate dados pessoais com base legal adequada e mínimo necessário (LGPD).
• Documente tudo (custo, txids, laudos) — sua melhor defesa em auditorias e litígios.
• Revise periodicamente suas políticas à luz de novas normas do BCB/CVM/RFB.
FAQ (acordeão)
Preciso pagar imposto se só troquei uma cripto por outra?
Sim. A permuta cripto-cripto pode gerar ganho de capital. Se, no mês, o total de vendas/permutas passou de R$ 35 mil, apure e recolha o imposto.
O que acontece se eu não enviar o reporte mensal da IN 1.888/2019?
Há multas por atraso/omissão e risco de fiscalização. Exchanges brasileiras reportam suas operações; fora delas, o dever é do contribuinte quando > R$ 30 mil/mês.
Staking e airdrops são isentos?
Não. São rendimentos na data do recebimento, tributáveis (carnê-leão para PF; regime da PJ quando atividade empresarial). Na venda futura, o custo é o valor reconhecido no recebimento.
Como sei se meu token entra na CVM?
Se oferecer expectativa de retorno decorrente do esforço de terceiros e captar poupança pública, pode ser valor mobiliário. Procure análise jurídica específica.
Existe IOF na compra de cripto?
Não há IOF específico sobre a aquisição de cripto; a tributação relevante é o IR sobre ganho e os deveres de reporte.
Qual o papel do Banco Central?
O BCB autoriza e supervisiona VASPs (exchanges, custodians etc.), exigindo controles prudenciais, PLD/FT, segurança e governança.
Sou empresa: posso pagar fornecedores em cripto?
Sim, mas formalize contratos, defina a cotação/horário, trate contabilmente e observe riscos de volatilidade, PLD/FT e LGPD.
Perdi as chaves da minha carteira. Posso deduzir o prejuízo?
Em regra, sem prova documental robusta (txids, laudo, boletim de ocorrência, evidências técnicas), a dedução é improvável. A prevenção é a melhor estratégia.
Como declarar cripto guardada em carteira própria?
Informe em “Bens e Direitos” (IR anual) por tipo de ativo, com descrição da carteira e valor de aquisição. Não há tributação por mera posse.
Qual é o maior risco jurídico para uma exchange no Brasil?
Operar sem autorização e falhas de segregação de recursos/custódia, somadas à baixa transparência. Adoção de prova de reservas e governança sólida mitiga riscos.
Notas técnicas e fontes legais (encerramento)
Diplomas e atos relevantes
• Lei nº 14.478/2022 – Marco Legal dos Criptoativos (princípios, diretrizes e definição de ativo virtual).
• Decreto nº 11.563/2023 – Designa o BCB como autoridade competente para autorizar e supervisionar VASPs.
• Lei nº 6.385/1976 – Define valores mobiliários e competências da CVM (aplicável a certos tokens).
• IN RFB nº 1.888/2019 – Dever de prestação de informações de operações com criptoativos (exchanges e usuários).
• Lei nº 9.613/1998 – PLD/FT (aplicável a VASPs, com reporte ao Coaf).
• Lei nº 13.709/2018 (LGPD) – Regras de proteção de dados pessoais e notificações de incidentes.
• CDC (Lei nº 8.078/1990) – Relações de consumo (transparência, publicidade, vícios).
• Regras de IR – Isenção até R$ 35 mil/mês em vendas; alíquotas progressivas de 15% a 22,5% sobre ganho de capital para PF.
Encerramento
Este guia reúne os pontos que mais geram dúvidas na prática – autorização de VASPs, fronteira CVM/BCB, PLD/FT, LGPD e, sobretudo, tributação. Use-o como trilho para estruturar operações, contratos, controles e sua rotina fiscal. Em decisões críticas (ofertas públicas, tokenização de ativos reais, reorganizações societárias, planejamento tributário), busque validação formal com assessoria jurídica/contábil e, quando cabível, interação prévia com reguladores.