Crime Impossível no Código Penal: Quando o Ato Não Vira Crime Mesmo Parecendo Ser
Conceito jurídico de crime impossível
O chamado crime impossível ocorre quando a consumação do delito é
absolutamente inviável desde o início, seja porque o meio utilizado é
totalmente ineficaz, seja porque o objeto material é absolutamente impróprio.
No Direito Penal brasileiro, a regra está no art. 17 do Código Penal:
“não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou absoluta impropriedade do objeto,
é impossível consumar o crime”. Em termos práticos, a norma afasta a punição por tentativa
quando a realidade já tornava o resultado irrealizável, ainda que o agente nada soubesse.
• Base legal: art. 17 do CP (crime impossível).
• Critério: impossibilidade absoluta de consumação.
• Exemplos clássicos: tentar furtar carteira vazia; disparar com arma sem percussor; aplicar veneno inócuo.
• Efeitos: fato atípico (não se pune a tentativa); pode haver responsabilização por outros ilícitos (p.ex., contravenções, dano, porte irregular, etc.), se presentes.
Diferença entre crime impossível e tentativa punível
A tentativa (art. 14, II, CP) é punível quando o agente dá início aos atos executórios,
mas a consumação não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade. Já no crime impossível,
a consumação era, desde sempre, inviável por razões intrínsecas ao meio ou ao objeto.
Impossibilidade absoluta x meios/objetos apenas relativamente ineficazes
A fronteira decisiva é a absolutidade: se o meio ou o objeto apenas
dificultam a produção do resultado (ineficácia relativa), a tentativa continua
punível. Se a inviabilidade é total, não há crime. Exemplos comparativos:
- Ineficiência absoluta do meio: arma de fogo sem cano e sem percussor; veneno que é, na verdade, açúcar.
- Impropriedade absoluta do objeto: “furto” de res furtiva inexistente; “estupro” de cadáver (não há sujeito passivo do tipo); “subtração” de coisa própria (salvo hipóteses específicas de crime patrimonial próprio).
- Ineficiência relativa (punível): vigilância por câmeras que dificulta o furto mas não o torna impossível; cofre difícil de abrir, mas não inexpugnável; polícia acompanhando à distância, sem impedir a execução livre (flagrante esperado).
Pergunte-se: Mesmo que o agente prosseguisse, em nenhuma hipótese o resultado poderia ocorrer?
• Se sim → crime impossível (art. 17).
• Se não (o resultado era possível, ainda que improvável) → tentativa punível.
Jurisprudência essencial (STF/STJ)
Flagrante preparado e Súmula 145 do STF
O flagrante preparado ocorre quando a autoridade induz e prepara o cenário
para tornar impossível a consumação do delito, aguardando a prática dos atos
executórios para prender o agente. Pela Súmula 145 do STF, “não há crime quando a
preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Nesses casos,
reconhece-se o crime impossível por ineficácia absoluta do meio (o agente opera em ambiente
controlado que inviabiliza o resultado).
Furto em lojas com vigilância eletrônica e Súmula 567 do STJ
O STJ firmou entendimento segundo o qual a mera existência de circuito eletrônico de
vigilância não transforma o furto em crime impossível. De acordo com a Súmula 567 do STJ,
o sistema de vigilância por monitoramento eletrônico, por si só, não torna impossível a
consumação do crime de furto. Trata-se de ineficácia relativa do meio de defesa,
mantendo-se a punibilidade da tentativa em caso de não consumação.
Moeda grosseiramente falsificada, cheques irrecuperáveis e outros casos
Em hipóteses de falsificação grosseira de moeda, notas ou documentos que qualquer pessoa
média identificaria como falsos, os tribunais frequentemente reconhecem impossibilidade
absoluta para o delito específico (p.ex., moeda falsa), o que pode conduzir à atipicidade
daquele crime. Contudo, pode subsistir outro tipo penal (como estelionato) se alguém foi efetivamente
enganado. Do mesmo modo, quando um cartão está bloqueado ou o cheque é irrecuperável
por razões alheias ao agente e o resultado era totalmente inviável, discute-se a incidência
do art. 17.
1) STF 145: flagrante preparado → crime impossível.
2) STJ 567: câmeras/segurança → não é crime impossível por si só.
3) Grosseira falsificação ou objeto inexistente → tendência a reconhecer impossibilidade absoluta (analisar caso concreto).
Hipóteses típicas (meio ineficaz)
Arma absolutamente inidônea
Disparos com arma de brinquedo ou arma sem mecanismo funcional não podem produzir o
resultado morte ou lesão por projétil. Se a finalidade era matar com tiros, a arma
inidônea revela ineficácia absoluta do meio. Atenção: pode subsistir constrangimento
ilegal ou roubo impróprio em contexto de grave ameaça com simulacro, mas não tentativa
de homicídio por arma incapaz de disparar.
Veneno inócuo e poções “mágicas”
Substâncias sem potencial lesivo químico (açúcar, água) não podem produzir o resultado
típico pretendido (matar, lesionar). O caso amolda-se ao art. 17: meio absolutamente
ineficaz. Se houver dano diverso (p.ex., dolo de perigo inexistente), analisa-se outro tipo.
Dispositivos eletrônicos desconectados
Na seara cibernética, executáveis ou exploit kits sem payload, ou tentativas de intrusão
direcionadas a um servidor off-line (objeto inacessível) podem configurar crime impossível,
quando a consumação é tecnicamente inviável em qualquer cenário. Porém, testes de
absolutidade exigem perícia: firewalls, IDS/IPS e honeypots normalmente não tornam
absolutamente impossível a invasão (ineficácia relativa).
Hipóteses típicas (objeto absolutamente impróprio)
Furto de coisa inexistente ou consumida
Se o agente tenta subtrair um bem que não existe (p.ex., gaveta vazia) ou já foi
consumido, o objeto material é impróprio para o resultado “subtrair coisa alheia móvel”.
A jurisprudência costuma reconhecer crime impossível.
Estupro de cadáver e “sujeito passivo” inexistente
Tipos penais que protegem a liberdade sexual exigem vítima viva que possa ser constrangida.
Se o objeto é cadáver, inexiste sujeito passivo do tipo, sendo a conduta atípica para o crime
pretendido (pode haver outridade, como vilipêndio a cadáver).
Produto sem conteúdo apto ao dano jurídico
Se o objetivo é “vender medicamento com princípio ativo X” e a substância não contém o
ingrediente que caracteriza o tipo regulatório, a inadequação absoluta do objeto pode excluir
a tentativa daquele crime específico (sem prejuízo de outros ilícitos sanitários).
Risco de confusão: flagrante esperado x flagrante preparado
No flagrante esperado, a polícia apenas observa e aguarda o momento consumativo,
sem criar obstáculos absolutos à realização do resultado. A consumação é possível, logo
não há crime impossível. Já o flagrante preparado constrói artificialmente um ambiente
em que o resultado é inviável (ex.: todas as cédulas são previamente marcadas e o bem
jamais sairia do domínio, agentes controlam o cenário), atraindo a Súmula 145 do STF.
• A polícia só observou? → provável tentativa punível.
• O cenário foi arquitetado para impedir o resultado? → tendência a crime impossível.
• Existia rota livre e real para a consumação? → indica ausência de impossibilidade absoluta.
Provas e ônus argumentativo
O reconhecimento do art. 17 exige demonstração técnica da impossibilidade absoluta.
Perícias mecânicas, químicas ou digitais são frequentemente necessárias (p.ex., laudo
atestando que a arma não dispara, que o “veneno” é inócuo, que o servidor estava fora do
ar). O ônus defensivo é persuadir o juízo de que, em nenhum cenário, a execução
poderia alcançar o resultado típico.
Notas probatórias em crimes cibernéticos
- Logs demonstrando que o alvo estava offline no exato período dos atos executórios.
- Registro de que o payload era vazio ou o binário, corrompido.
- Documentação de honeypot que simula vulnerabilidades mas impede rotas de dano (discussão costuma ser de ineficácia relativa, não absoluta).
Roteiro de análise para o caso concreto
- Descrever com precisão os atos executórios (o que foi feito, quando, com quais meios).
- Identificar o resultado típico pretendido e os elementos do tipo penal.
- Avaliar o meio: é absolutamente incapaz de produzir o resultado? Exigir laudo quando técnico.
- Avaliar o objeto: é absolutamente impróprio? Inexistente? Incapaz de receber a ação típica?
- Verificar interferência estatal: houve preparação que inviabilizou o resultado? (Súmula 145 STF).
- Checar precedentes (p.ex., Súmula 567 STJ no furto vigiado).
- Concluir: impossibilidade absoluta → atipicidade (art. 17); impossibilidade relativa → tentativa punível (art. 14, II).
Gráfico rápido: onde os tribunais têm reconhecido crime impossível
Representação qualitativa (ilustrativa) das áreas com maior aceitação do art. 17.
Críticas doutrinárias e limites do instituto
Há quem sustente que o art. 17 deve ser aplicado com cautela, para evitar transformar
defesas ordinárias da vítima (segurança privada, etiquetas antifurto, marcação de cédulas)
em salvo-conduto para criminosos. A absolutidade funciona como válvula de segurança:
apenas quando o resultado é radicalmente inviável se afasta a punição. Do outro lado,
punir tentativas em que a realidade jamais permitiria o resultado fere a ofensividade
e o princípio da lesividade, convertendo o Direito Penal em disciplina de intenções.
Estudos de caso aplicados
Case 1 — Furto em supermercado “blindado” por tecnologia
Cenário: agente é vigiado desde a entrada; seguranças decidem abordá-lo somente após cruzar
a linha dos caixas. Análise: consumação continuava possível (sair com bens ilesos).
Conclusão: não é crime impossível; em não havendo saída da esfera de vigilância, pode-se
tratar de tentativa punível; se sair com o bem, consumado.
Case 2 — Invasão de sistema fora do ar
Cenário: ofensiva automatizada contra servidor que estava desligado por manutenção ao
longo de toda a execução. Prova: logs do provedor + laudo pericial. Conclusão:
tese plausível de crime impossível por impropriedade do objeto (alvo inalcançável).
Case 3 — Homicídio com arma de brinquedo
Cenário: agente aponta simulacro acreditando ser real e “dispara”. Conclusão:
não há tentativa de homicídio (meio absolutamente ineficaz), embora possam subsistir outros
crimes (ameaça, roubo com simulacro etc., conforme o contexto).
Boas práticas de defesa e acusação
Para a defesa
- Requerer perícia técnica para demonstrar a ineficácia absoluta (balística, química, TI).
- Explorar precedentes favoráveis (STF 145, casos de objeto impróprio, falsificação grosseira).
- Construir narrativa fática que mostre ausência total de risco ao bem jurídico.
Para a acusação
- Mostrar que havia rota concreta para a consumação; câmeras e seguranças não tornam o
resultado impossível (Súmula 567 STJ). - Produzir prova de que os meios eram efetivos, ainda que de difícil êxito (ineficácia relativa).
- Diferenciar flagrante esperado de preparado, afastando a Súmula 145 do STF quando cabível.
Conclusão
O crime impossível é técnica de limitação do poder punitivo alinhada aos princípios
de ofensividade e lesividade. Ele impede que a punição recaia sobre condutas cujo resultado
era ontologicamente inviável, preservando o caráter concreto do injusto penal. A chave
interpretativa é a absolutidade: se o meio ou o objeto apenas reduzem chances, a resposta
é a tentativa; se eliminam por completo a possibilidade de dano, aplica-se o art. 17.
A jurisprudência do STF (Súmula 145) e do STJ (Súmula 567) fornece balizas firmes para o
dia a dia forense. Em cenários tecnológicos e cibernéticos, a análise deve ser técnica e
probatória, com laudos que demonstrem, sem dúvida razoável, a impossibilidade absoluta.
Assim, mantém-se o Direito Penal como instrumento de proteção de bens jurídicos reais,
não de intenções isoladas do mundo fático.
Guia rápido: entendendo a distinção entre desistência voluntária e arrependimento eficaz
Antes de aprofundar na análise jurídica detalhada, é fundamental compreender, de forma prática e acessível, como o Direito Penal diferencia a desistência voluntária do arrependimento eficaz. Ambas as figuras estão previstas no artigo 15 do Código Penal brasileiro, que trata da exclusão da punibilidade pela tentativa, reconhecendo que há situações em que o próprio agente decide evitar o resultado criminoso. Apesar de parecerem semelhantes, esses institutos possuem naturezas e consequências jurídicas diferentes, sendo essenciais para a correta dosimetria da pena e para a aplicação do princípio da intervenção mínima.
1. Conceito e diferença essencial
A desistência voluntária ocorre quando o agente, após iniciar a execução do crime, resolve espontaneamente interromper sua conduta antes da consumação. Já o arrependimento eficaz acontece quando o agente conclui os atos executórios, mas ainda assim adota medidas efetivas para impedir que o resultado se concretize.
Em ambos os casos, o sujeito não responde pelo crime inicialmente pretendido, mas poderá ser punido por atos já praticados que constituam outros delitos autônomos (como lesão corporal, dano, etc.).
2. Critério prático de diferenciação
- Desistência voluntária: ocorre antes de o resultado ser possível — o agente para por decisão própria (ex.: o assaltante desiste e vai embora antes de subtrair o bem).
- Arrependimento eficaz: ocorre depois de completar a execução — o agente tenta e impede o resultado (ex.: envenena alguém e logo em seguida leva a vítima ao hospital, salvando-a).
• Ambos afastam a punição pela tentativa (art. 15, CP).
• Desistência → interrompe o ato.
• Arrependimento → neutraliza o efeito do ato.
• Exigem voluntariedade e efetividade na conduta de impedir o resultado.
3. Voluntariedade e liberdade de escolha
A doutrina enfatiza que a voluntariedade é elemento indispensável. Não se considera “desistência voluntária” quando o agente para por fatores externos, como medo, intervenção de terceiros ou impossibilidade material. O mesmo vale para o arrependimento eficaz — ele precisa ser fruto de uma decisão autônoma e consciente do agente, e não de mera coerção ou arrependimento moral tardio.
4. Efeitos jurídicos imediatos
Em termos práticos, tanto na desistência quanto no arrependimento eficaz, o resultado é a não punição pela tentativa. Contudo, o agente pode ser responsabilizado por delitos residuais que se consumaram durante a execução. Por exemplo, se durante uma tentativa de homicídio o agressor causou lesões graves, mas depois desistiu de matar, responderá por lesão corporal.
5. Exemplo comparativo rápido
Um agente aponta arma para a vítima, mas decide abaixá-la e ir embora, sem efetuar disparo. Ele iniciou a execução (ameaça), mas voluntariamente desistiu. Não há tentativa de homicídio.
Exemplo 2 – Arrependimento eficaz:
Um indivíduo coloca veneno na bebida de alguém, mas logo se arrepende e impede a ingestão, evitando o resultado. Há arrependimento eficaz, e ele não responde pelo crime consumado ou tentado, apenas pelos atos anteriores (p.ex., perigo de dano).
6. Jurisprudência e aplicação prática
O STJ e o STF têm aplicado o artigo 15 em casos onde se verifica claramente a interrupção voluntária e a efetividade na prevenção do resultado. Em contrapartida, quando o resultado é impedido por fatores externos (intervenção policial, resistência da vítima, falha técnica), entende-se pela tentativa punível. A prova da voluntariedade é, portanto, um dos maiores desafios processuais.
7. Dica prática para advogados e estudantes
Ao analisar casos concretos, observe três elementos fundamentais:
- Momento da interrupção: antes ou depois de completar a execução?
- Motivo da desistência: vontade própria ou impedimento externo?
- Efetividade: a ação impediu realmente o resultado?
A desistência voluntária e o arrependimento eficaz são instrumentos de limitação da punibilidade e expressão do princípio da culpabilidade. Ambos reforçam a ideia de que o Direito Penal deve punir resultados e condutas efetivamente lesivas, e não meras intenções superadas. O artigo 15 do CP é, assim, uma manifestação de política criminal inteligente, que estimula o retorno voluntário ao caminho lícito antes que o dano se concretize.
FAQ (Acordeão)
1) O que diz o art. 15 do Código Penal sobre desistência voluntária e arrependimento eficaz?
2) Qual a diferença prática entre os dois institutos?
3) O agente precisa agir espontaneamente?
4) Existe necessidade de arrependimento moral?
5) No arrependimento eficaz, basta tentar impedir o resultado?
6) Há reflexos na dosimetria da pena?
7) Como diferenciar de crime impossível ou de tentativa inidônea?
8) A intervenção de terceiros pode coexistir com a desistência voluntária?
9) Quais provas são relevantes para reconhecer o art. 15 do CP?
10) Há jurisprudência dos tribunais superiores?
Base Técnica e Fontes Legais
1. Fundamentação Legal
O tema encontra amparo no art. 15 do Código Penal Brasileiro, que disciplina a desistência voluntária e o arrependimento eficaz. Além disso, a doutrina e a jurisprudência analisam sua aplicação conforme a teoria do iter criminis (caminho do crime), determinando o ponto em que a execução foi interrompida ou o resultado evitado.
2. Jurisprudência Relevante
- STJ, HC 679.488/SP – Reconhecida a desistência voluntária quando o agente interrompe espontaneamente o crime e presta socorro à vítima.
- STF, HC 128.219/RS – Destacou a diferença entre desistência e tentativa, ressaltando a necessidade de voluntariedade para o afastamento da punibilidade pela tentativa.
3. Doutrina de Referência
- Cezar Roberto Bitencourt — A desistência voluntária é um “freio moral” dentro do iter criminis, demonstrando o domínio da vontade do agente sobre o fato.
- Rogério Greco — O arrependimento eficaz requer resultado concreto na evitação da consumação, diferindo do simples arrependimento posterior.
- Guilherme de Souza Nucci — A voluntariedade é essencial; não há aplicação do art. 15 se o agente apenas reage a um fator externo.
4. Aplicação Prática e Critérios
A análise dos tribunais indica que o reconhecimento do art. 15 depende de provas concretas sobre o momento da desistência e a eficácia real da conduta para evitar o resultado. Perícias, testemunhos e registros audiovisuais têm papel relevante nesse exame.
5. Encerramento e Considerações Finais
A desistência voluntária e o arrependimento eficaz são instrumentos de política criminal que buscam estimular a autolimitação da conduta e a preservação do bem jurídico. Sua aplicação deve ser criteriosa, considerando-se a livre vontade e o resultado evitado como elementos centrais da exclusão da tentativa punível.