Direito Penal

Crime Continuado: Requisitos, Como Calcular a Pena e o que Dizem STF e STJ

Conceito e natureza do crime continuado

O crime continuado (art. 71 do Código Penal) é um mecanismo de unificação de penas quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica vários crimes da mesma espécie em condições semelhantes de tempo, lugar, maneira de execução e outras, revelando uma continuidade do desígnio criminoso. Nessa hipótese, o ordenamento trata os fatos como continuação de um mesmo curso de conduta, aplicando pena de um dos crimes (o mais grave, se houver diferenças) com aumento variável, em lugar de somar todas as penas como ocorreria no concurso material.

Do ponto de vista dogmático, não se está diante de um novo tipo penal, mas de um critério de aplicação de pena ligado à culpabilidade e à política criminal de tratamento mais benéfico quando os vários fatos revelam unitariedade. O instituto também tem feição limitadora do poder punitivo, evitando punições desproporcionais em séries de pequenos delitos homogêneos.

Texto essencial (síntese)
• Art. 71, caput, CP: quando o agente, por mais de uma ação/omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e pelas condições de tempo, lugar, execução e outras semelhantes devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada de 1/6 a 2/3.
• Parágrafo do art. 71: disciplina hipótese específica para crimes dolosos, com vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça, conferindo maior rigor na análise e também prevendo majoração.

Requisitos (critérios objetivos e subjetivos)

Pluralidade de condutas e vários crimes da mesma espécie

É indispensável que haja dois ou mais fatos típicos autônomos (pluralidade de condutas), e que os delitos sejam da mesma espécie. Em regra, considera-se “mesma espécie” os crimes que protegem o mesmo bem jurídico e possuem estrutura típica semelhante (ex.: furtos repetidos; receptações repetidas; estelionatos sequenciais). A doutrina e a jurisprudência admitem certa flexibilização quando os tipos são distintos, mas guardam afinidade muito próxima (p.ex., furto e furto qualificado), devendo-se analisar o caso.

Semelhança das condições de tempo, lugar, modo de execução e outras

O elemento clássico é a reiteração em contexto semelhante: curto intervalo temporal, área geográfica próxima, mesmo modus operandi (mesmo artifício/mesma rotina), idêntica oportunidade ou mesma facilidade. Intervalos longos no tempo, mudanças radicais de localidade e modus operandi distintos tendem a afastar a continuidade.

Unidade de desígnios (critério subjetivo)

Além dos critérios objetivos, consolidou-se a chamada teoria objetivo-subjetiva: é necessário que as semelhanças reflitam uma certa vontade unitária do agente (um plano criminoso que se desdobra em atos), ainda que formada progressivamente. Ausente essa unidade — por exemplo, quando há interrupção significativa e novos motivos autônomos —, tende-se a reconhecer concurso material.

Checklist rápido
Dois ou mais crimes da mesma espécie
Semelhança nas condições de tempo, lugar e execução
✓ Indícios de plano unitário (mesmo propósito, mesma oportunidade)
✗ Intervalos extensos, locais e modus operandi muito diversos → indicam concurso material

Continuidade delitiva comum x específica

Comum (caput do art. 71)

Aplica-se a quaisquer crimes da mesma espécie em condições semelhantes. A pena do crime-base é majorada de 1/6 a 2/3. O percentual é fixado pelo juiz conforme a quantidade de infrações, a gravidade dos fatos, a proximidade temporal/espacial, o modus operandi e a culpabilidade.

Específica (crimes dolosos, vítimas distintas, com violência ou grave ameaça)

Para séries de crimes dolosos violentos contra pessoas diferentes, a lei exige rigor maior na aferição da continuidade e mantém margem de aumento robusta. A finalidade é evitar que múltiplas agressões graves sejam indevidamente “absorvidas” por um patamar baixo de aumento. A análise costuma considerar: número de vítimas, proximidade temporal, gravidade concreta e intensidade do dolo.

Ilustração comparativa (barras qualitativas)

Caput (delitos patrimoniais simples em série curta)
Caput (série longa com mudança pontual de local)
Específica (várias vítimas com grave ameaça)
Específica (vítimas numerosas, violência intensa)

As larguras indicam, de forma didática, a tendência de majoração mais elevada à medida que cresce a gravidade/quantidade.

Cálculo da pena no crime continuado

Passo 1 — Pena-base do crime mais grave (ou pena de um só, se idênticas)

Aplica-se o procedimento trifásico do art. 59 do CP para um dos crimes (o mais grave). Fixada a pena-base, incidem eventuais agravantes/atenuantes e causas de aumento/diminuição específicas do tipo penal de referência.

Passo 2Majoração do art. 71

Sobre a pena resultante, aplica-se o aumento de 1/6 a 2/3, fundamentando com base em: número de crimes (critério mais usado), homogeneidade do modus operandi, lapso temporal e reprovação adicional da conduta. Parte da jurisprudência utiliza tabelas racionais (p.ex., 1/6 para 2 a 3 infrações; 1/5 para 4 a 5; 1/4 para 6 a 7; 1/3 para 8 a 10; 1/2 para séries muito extensas), sempre com motivação concreta e sem automatismos.

Passo 3 — Regime inicial e substituições

Após a majoração, o regime inicial é definido segundo quantum e circunstâncias judiciais. É possível substituição por restritivas e sursis, se preenchidos os requisitos legais; a mera incidência do art. 71 não impede tais benefícios.

Exemplo numérico (didático)
Crime de referência: pena final (após fases 1 e 2 do art. 59/61/62/65/68) = 3 anos de reclusão.
Série de 5 furtos simples em uma semana, mesmo bairro e método.
Juiz fixa 1/4 de aumento (fundamentando nº de infrações e proximidade).
Pena = 3 anos × 1,25 = 3 anos e 9 meses.

Crime continuado x concurso material x concurso formal

Concurso material (art. 69, CP)

pluralidade de condutas e pluralidade de crimes, sem os liames de semelhança e unidade de desígnios que autorizem a continuidade. As penas somam. Em séries de delitos muito espaçadas no tempo, com modus operandi e contextos heterogêneos, a solução tende a ser concurso material.

Concurso formal (art. 70, CP)

Uma única ação viola dois ou mais bens jurídicos. Aplica-se a pena de um dos crimes (mais grave, se diferentes), aumentada. Não se confunde com a continuidade, que pressupõe pluralidade de ações.

Quadro-resumo

Instituto Condutas Crimes Regra de pena Exemplo típico
Concurso material Várias Vários Soma (art. 69) Furto em 2022 e furto diferente em 2024 com modus operandi distinto
Concurso formal Uma Vários Majoração (art. 70) Um só disparo atinge duas vítimas
Crime continuado Várias Vários da mesma espécie Majoração (art. 71) Estelionatos semanais com mesmo golpe on-line

Temas jurisprudenciais recorrentes

Mesma espécie interpretada com razoabilidade

Os Tribunais Superiores têm evitado formalismos: furto simples e furto qualificado podem ser enquadrados como “mesma espécie” quando as diferenças não alteram o núcleo essencial do tipo praticado em série. Já roubo e furto, via de regra, não são da mesma espécie, pois envolvem bens jurídicos e elementares diversos (violência no roubo).

Lapso temporal e dispersão geográfica

Não há prazo fixo. Contudo, quanto maior o intervalo e a dispersão, mais difícil justificar a unidade de desígnios. Séries curtas (dias ou poucas semanas) no mesmo município tendem a indicar continuidade; séries que atravessam meses ou anos, com mudanças de Estado e modus operandi, costumam ser reputadas concurso material.

Crimes contra a Administração e contra o Sistema Financeiro

É possível continuidade delitiva nesses campos quando presentes os requisitos; contudo, práticas reiteradas em períodos longos (ex.: contratos sucessivos ao longo de anos) ou com modus operandi mutável costumam afastar o art. 71.

Crimes informáticos e fraudes on-line

Nos golpes digitais (p.ex., phishing, boletos falsos), a jurisprudência tem aferido a continuidade com foco no mesmo roteiro técnico (mesma infraestrutura de e-mails/sites, mesmas contas de recebimento, mesma janela temporal). Mudanças substanciais de ferramenta ou arquitetura de ataque costumam quebrar a unidade.

Substituição de vítimas e escalada da violência

Quando a série progride para maior gravidade (ex.: estelionato → roubo), normalmente cessa a “mesma espécie”. Nas hipóteses do parágrafo (crimes dolosos com violência/ameaça), a corte exige vínculo muito forte entre os episódios, sob pena de concurso material.

Diretrizes práticas para acusação, defesa e julgamento

Como fundamentar a continuidade

  • Linhas do tempo que mostrem datas próximas e repetição.
  • Mapas ou descrições de locais indicando raio geográfico comum.
  • Descrição do modus operandi (mesmas ferramentas, mesmo veículo, mesmo roteiro).
  • Provas de unidade de plano (mensagens, planilhas, conversas sobre “rodadas”).

Como afastar a continuidade

  • Demonstrar interrupções relevantes (tempo/lugar) e motivações autônomas.
  • Mostrar alterações de método relevantes (ex.: de furto noturno a furto mediante fraude complexa).
  • Provar novas oportunidades independentes e não planejadas.

Impactos executórios e benefícios penais

A pena majorada por continuidade substitui a soma de várias penas. Isso repercute no regime inicial, na progressão e no cômputo para indulto e detração. Em execução, os delitos continuados são, para muitos efeitos, tratados como crime único (com ressalvas previstas em lei), o que pode facilitar benefícios. Entretanto, a continuidade não impede reconhecimento de reincidência por outros fatos e também não blinda o réu de medidas cautelares compatíveis com a gravidade.

Estudos de caso (hipóteses didáticas)

Série de furtos em estacionamento

Em três dias consecutivos, o agente subtrai baterias de carros no mesmo estacionamento, durante a madrugada, usando chave de fenda. Condições idênticas, tempo curtíssimo e mesma técnicacrime continuado com majoração moderada.

Golpes de boletos em plataforma on-line

Durante duas semanas, o agente envia boletos adulterados a diversos clientes de uma loja virtual, usando o mesmo domínio e a mesma conta de recebimento. Mesma espécie (estelionatos), modus operandi e janela temporal limitada → tendência à continuidade.

Roubos em bairros distintos, espaçados por meses

Três roubos com armas diferentes, em cidades distintas e separados por quatro meses. Alterações de meio, local e tempo relevantes → concurso material, salvo prova muito forte de um plano único.

Boas práticas de redação da sentença

  • Indicar expressamente os requisitos do art. 71 e as provas que os comprovam.
  • Escolher com clareza o crime-base e explicitar o percentual de aumento, com motivação vinculada a número de infrações, proximidade e gravidade.
  • Justificar a não aplicação da continuidade quando as condições não se fazem presentes, evitando decisões lacônicas.

Erros comuns e como evitá-los

  • Confundir continuidade com habitualidade criminosa sem nexo: séries ao longo de anos e com métodos distintos não autorizam, por si, o art. 71.
  • Aplicar percentual automático apenas pela quantidade, sem motivação qualitativa (tempo/lugar/método).
  • Tratar crimes heterogêneos como “mesma espécie” (ex.: furto e roubo), quando os bens jurídicos e elementares divergem.

Conclusão

O crime continuado é instituto de temperança punitiva: reconhece que séries de crimes homogêneos praticados em contextos semelhantes revelam uma unidade de propósito que justifica a unificação de pena com aumento, e não a soma aritmética. Para aplicá-lo corretamente, é indispensável a análise conjunta dos requisitos objetivos (mesma espécie; semelhança de tempo, lugar e modus operandi) e do elemento subjetivo (unidade de desígnios). A dosimetria deve ser fundamentada, graduando o aumento entre 1/6 e 2/3 conforme o número e a gravidade dos episódios, com especial rigor quando se tratar de crimes dolosos violentos contra vítimas distintas. Feita com método, a continuidade delitiva promove proporcionalidade, segurança jurídica e evita respostas penais desmedidas — sem descuidar da reprovação adequada quando a série revela maior lesividade social.


Base técnica (síntese normativa indicada)

  • Código Penal, art. 71 — crime continuado (caput e parágrafo), com aumento de 1/6 a 2/3 e regra especial para delitos dolosos com violência ou grave ameaça e vítimas distintas.
  • Art. 59 e 68 do CP — critérios e método trifásico de dosimetria para o crime-base.
  • Art. 69 e 70 do CP — distinção com concurso material e concurso formal.
  • Jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores — adoção da teoria objetivo-subjetiva; necessidade de unidade de desígnios e semelhança concreta de circunstâncias; parâmetros racionais para graduação do aumento.

É a hipótese do art. 71 do Código Penal em que o agente, por várias ações ou omissões, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie em condições semelhantes de tempo, lugar e modo de execução. Aplica-se a pena de um só dos crimes (o mais grave, se diferentes), com aumento de 1/6 a 2/3, segundo a quantidade e a homogeneidade dos fatos.

CP art. 71 caput
Majoração 1/6 a 2/3

Requisitos objetivos: pluralidade de condutas e de crimes da mesma espécie; semelhança concreta de tempo, lugar e modus operandi. Requisito subjetivo: unidade de desígnios (teoria objetivo-subjetiva adotada pelos tribunais), revelando um plano criminoso que se desdobra no tempo.

Teoria objetivo-subjetiva
STJ/STF

Quando houver grande lapso temporal, mudança relevante de locais ou métodos, ou inexistir unidade de propósito. Nesses casos prevalece o concurso material (art. 69, CP). Também não se aplica entre crimes de espécies diferentes (ex.: furto e roubo), salvo hipóteses muito excepcionais admitidas na jurisprudência para tipos muito afins dentro do mesmo bem jurídico.

CP art. 69
Mesma espécie

Na continuidadevárias ações com crimes da mesma espécie em contexto semelhante → pena de um crime com aumento (art. 71). No concurso formal (art. 70) uma única ação produz vários crimes → pena de um com aumento. No concurso material (art. 69) há várias ações e vários crimes sem liamesoma das penas.

CP arts. 69–71

O juiz fundamenta o percentual entre 1/6 e 2/3 considerando número de infrações, proximidade temporal/espacial, uniformidade do modus operandi e culpabilidade. Os tribunais recomendam critérios racionais (p.ex., aumentos progressivos conforme a série) com motivação concreta, vedado automatismo. Para crimes dolosos com violência ou grave ameaça e vítimas distintas, o parágrafo do art. 71 autoriza rigor maior na análise.

CP art. 71 caput e parágrafo
STJ/STF

Base técnica com fontes legais

  • Código Penal: art. 71 (crime continuado; aumento de 1/6 a 2/3; regra específica para crimes dolosos com violência/ameaça), art. 70 (concurso formal) e art. 69 (concurso material). Art. 59 e art. 68 — método trifásico de dosimetria.
  • Jurisprudência STF/STJ: adoção da teoria objetivo-subjetiva; necessidade de unidade de desígnios e semelhança concreta; vedação a aumentos automáticos e exigência de fundamentação na quantidade e nas circunstâncias dos fatos.
  • Doutrina penal: interpretação de “mesma espécie” pelo critério do bem jurídico e da estrutura típica; distinção técnica com habitualidade criminosa e continuidade específica.

Observação: consulte a redação vigente do CP e julgados atualizados dos Tribunais Superiores para aplicação prática.


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