Direito Penal

Corrupção Passiva: Como o Crime se Caracteriza e Quais São as Penas Aplicadas

Corrupção passiva: caracterização essencial e enquadramento legal

A corrupção passiva é crime funcional previsto no art. 317 do Código Penal. O núcleo reside nos verbos solicitar, receber ou aceitar promessa de vantagem indevida para si ou para outrem, direta ou indiretamente, “ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela”. A pena-base do caput é reclusão, de 2 a 12 anos, e multa. O tipo protege a probidade administrativa, a imparcialidade do agente e a confiança social no exercício da função pública. Trata-se de crime formal: consuma-se com a solicitação ou aceitação da promessa, independentemente de o agente efetivamente receber a vantagem ou praticar ato funcional.

Mensagem-chave: o crime se perfaz quando o agente solicita ou aceita a promessa — o recebimento do dinheiro ou a prática do ato de ofício são exaurimento. O nexo “em razão da função” é indispensável, mesmo que o comportamento ocorra fora do expediente ou antes da posse.

Elementos objetivos do tipo

  • Sujeito ativo: funcionário público em sentido penal (art. 327 do CP: quem, mesmo transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública; equiparações a quem exerce atividade em entidade paraestatal ou contratado pela Administração para serviço típico).
  • Verbos nucleares: solicitar (pedido de vantagem), receber (entrada efetiva da utilidade) ou aceitar promessa (anuência à vantagem futura).
  • Objeto material: vantagem indevida, de qualquer natureza (patrimonial, simbólica, cargos, facilidades, vantagens sexuais, perdão de dívida, viagens, doações políticas ilícitas etc.).
  • Elemento normativo: em razão da função — mercancia da influência funcional, ainda que o ato específico não seja imediatamente identificável.
  • Sujeito passivo: a Administração Pública (imediato) e, mediata ou reflexamente, a coletividade lesada.

Elemento subjetivo e consumação

  • Dolo — vontade livre e consciente de solicitar/receber/aceitar vantagem, sabendo-se indevida, explorando a função.
  • Consumação — no instante da solicitação ou aceitação de promessa. Se há recebimento, ele exaure o crime, mas não é requisito para a tipicidade.
  • Tentativa — possível em hipóteses excepcionais, quando há início de execução (p. ex., comunicação inequívoca do pedido) e interrupção por causa alheia antes de se consumar; é controvérsia casuística.

Estrutura do art. 317 do CP: caput, majorante e forma privilegiada

Caput (regra-matriz)

“Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.” Pena: reclusão, de 2 a 12 anos, e multa.

§ 1º — majorante por violação de dever funcional

Eleva-se a pena se, em consequência da vantagem ou promessa, o agente retarda ou deixa de praticar ato de ofício, ou pratica infringindo dever funcional. A análise exige nexo causal entre a vantagem e a conduta funcional indevida (comissiva ou omissiva). Em termos práticos, a majorante se informa por prova de que a promessa/entrega corrompeu a atuação administrativa (ex.: liberar mercadoria irregular; arquivar multa; adulterar relatório).

§ 2ºcorrupção passiva privilegiada

Quando o funcionário pratica ato de ofício, ou o retarda/omite, cedendo a pedido ou influência de outrem (sem vantagem indevida), a pena é detenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa. É figura menos gravosa, voltada a situações de tráfico de influência interno ou atendimento a pressões, mas que não envolvam vantagem. Se houver vantagem, volta-se ao caput/§1º.

Majorantes gerais e concurso com outros crimes

Aumento do art. 327, § 2º (função de direção/assessoramento)

Para crimes praticados por funcionário público no exercício de cargo em comissão ou função de direção/assessoramento, a pena é aumentada de 1/3. A regra incide sobre os delitos do capítulo, inclusive a corrupção passiva, em razão do maior poder de captura e do risco institucional.

Concurso material, formal e continuidade delitiva

  • Concurso com corrupção ativa (art. 333): são crimes autônomos; a condenação do particular corruptor independe da do agente público, pois o tipo de um não exige a existência do outro como condição sine qua non (não é crime bilateral necessário).
  • Lavagem de capitais: recebimentos ocultados e reinseridos no mercado podem caracterizar lavagem, configurando concurso material.
  • Peculato (art. 312): quando há apropriação ou desvio de bens/valores da Administração, a tipicidade pode migrar para peculato; se a vantagem é particular concedida pelo corruptor, mantém-se no 317.
  • Concussão (art. 316) x corrupção passiva: concussão exige “exigir”; corrupção passiva, “solicitar/receber/aceitar promessa”. O tom impositivo e o uso do poder de coerção indicam concussão; pedido sem imposição, 317.

Tipificações usuais na prática forense

Corrupção passiva própria x imprópria

  • Própria: quando o agente recebe/solicita vantagem para praticar ato ilícito (ex.: liberar obra irregular).
  • Imprópria: quando recebe/solicita vantagem para praticar ato regular (ex.: “despachar mais rápido”), degenerando a isonomia entre administrados.

Mercancia da função “fora da repartição”

O texto legal abrange condutas praticadas fora da função ou antes de assumí-la, desde que em razão dela. Ex.: indicado a cargo “vende facilidades” antes da nomeação, urdindo promessas vinculadas ao futuro exercício.

Prova e cadeia de custódia: como os casos são demonstrados

Fontes típicas de prova

  • Registros audiovisuais (ações controladas, captação ambiental lícita autorizada quando cabível);
  • Mensagens (aplicativos, e-mails) e documentos administrativos que revelem o nexo “em razão da função”;
  • Testemunhos e relatórios de auditoria/controle interno;
  • Perícias financeiras (trilhas de pagamento, depósitos fracionados, uso de “laranjas”).

Consumação x flagrante

Como a solicitação/aceitação já consuma o crime, flagrantes podem ocorrer no momento do pedido ou da entrega monitorada (exaurimento). A atuação costuma envolver orientação do Ministério Público e ação controlada.

Defesas frequentes e riscos de tipificação

“Pedido” sem nexo funcional

Se a vantagem não tem conexão com a função (mera relação privada), falta o elemento “em razão dela”. A prova desse nexo é central.

Doação ou presente institucional

Presentes de baixo valor ou brindes institucionais, conforme normas de integridade e códigos de conduta, não configuram vantagem indevida quando não há contrapartida ou expectativa de favorecimento. Em contrapartida, benefícios disfarçados (viagens de luxo, consultorias fictícias) tendem à ilicitude.

Erro de proibição e inexigibilidade de conduta diversa

São teses raras, dependentes de contexto (p. ex., cultura organizacional permissiva não justifica o crime). A defesa pode discutir ausência de dolo em negociações legítimas quando inexista qualquer contrapartida funcional.

Mapa mental — distinções céleres

Corrupção passiva x crimes próximos

  • Concussão (316): exigir vantagem — postura imperativa/coercitiva.
  • Corrupção ativa (333): oferecer ou prometer a vantagem (sujeito ativo: particular).
  • Prevaricação (319): retardar/omitir praticar ato por interesse ou sentimento pessoal, sem vantagem.
  • Peculato (312): apropriar-se/desviar bem público confiado ao agente.

Dosimetria da pena e consequências acessórias

Etapas da fixação

  • 1ª fase (pena-base): art. 59 do CP (culpabilidade, antecedentes, conduta social etc.).
  • 2ª fase: atenuantes/agravantes (arts. 61 e 65).
  • 3ª fase: causas de aumento/diminuição (ex.: § 1º do art. 317; art. 327, § 2º).

Efeitos práticos

  • Perda do cargo/função, quando expressamente motivada na sentença (art. 92, I, “a”, do CP) e atendidos os critérios;
  • Inabilitação para exercício de cargo ou função pública por prazo determinado (quando cabível na espécie);
  • Reparação do dano ao erário e perdimento de bens diretamente relacionados à vantagem ilícita;
  • Risco de ações correlatas: improbidade administrativa (Lei 8.429/1992, com alterações da Lei 14.230/2021) e ações civis públicas.

Quadros práticos

Check-list de investigação e compliance

  1. Identifique solicitação, recebimento ou aceitação de promessa (mensagens, reuniões, testemunhos).
  2. Comprove o nexo “em razão da função” (processos, despachos, poder decisório do agente).
  3. Mapeie a contrapartida (ato de ofício, acesso, priorização, blindagem).
  4. Registre a cadeia de custódia de evidências digitais e financeiras.
  5. Ative controles internos: segregação de funções, rodízio em áreas sensíveis, canais de denúncia com anonimato.
Exemplos didáticos

  • Licitações: servidor “vende” ata de preços ou antecipa edital a empresa interessada em troca de patrocínio.
  • Fiscalização urbana: agente solicita quantia para não autuar obra em desconformidade.
  • Saúde/Educação: gestor recebe vantagens para priorizar contrato, alterar notas técnicas ou liberar pagamento indevido.
  • Tributário: auditor aceita promessa de emprego futuro em empresa fiscalizada para aliviar autos de infração.

Gráfico didático — faixas penais e agravantes

Comparação visual simples das faixas abstratas e aumentos possíveis:

Barras meramente ilustrativas (não substituem cálculo judicial). A última coluna representa o aumento de 1/3 do art. 327, § 2º, quando incidente.

Prevenção institucional: reduza a oportunidade, aumente o custo do desvio

Governança e integridade

  • Códigos de conduta com regras claras sobre brindes, hospitalidade e conflitos de interesses;
  • Transparência ativa em licitações, contratos, agendas públicas e decisões administrativas;
  • Auditoria contínua com red flags para pagamentos atípicos, alterações de escopo, aditivos sequenciais;
  • Proteção ao denunciante e programas de integridade para fornecedores (cláusulas anticorrupção, due diligence de terceiros);
  • Educação e rodízio em postos sensíveis, evitando captura por relacionamentos de longo prazo.

Roteiro prático para análise de casos

Perguntas orientadoras

  • Existe prova de solicitação, recebimento ou aceitação de promessa?
  • A vantagem é indevida e tem nexo com a função? (beneficiário tinha poder de decidir/influenciar?)
  • Houve contrapartida funcional (retardar/omitir/praticar ato contra o dever)? Se sim, incide §1º.
  • O agente ocupava direção/assessoramento (art. 327, §2º)? Se sim, aplicar aumento de 1/3.
  • concursos com lavagem, peculato ou fraude em licitação?

Considerações finais

A corrupção passiva, delineada pelo art. 317 do Código Penal, é um delito de perigo que atinge o núcleo da probidade administrativa. Seu traço distintivo é a solicitação (ou aceitação) da vantagem em razão da função, o que consuma o crime independentemente de pagamento ou prática do ato. A majorante do § 1º eleva a resposta estatal quando a vantagem impacta o desempenho do cargo, e o art. 327, § 2º, recrudesce a pena para posições de direção/assessoramento. Na prática, a diferenciação com concussão (exigir), prevaricação (interesse pessoal sem vantagem) e peculato (apropriação de bem público) é vital para a correta tipificação. A prova repousa na demonstração do nexo funcional e na cadeia de custódia de registros e fluxos financeiros. No plano preventivo, governança, transparência e integridade reduzem a oportunidade do desvio e elevam o custo da infração, fortalecendo a confiança na Administração.

Aviso importante — estas informações não substituem o(a) profissional
Este conteúdo tem caráter informativo e educacional. Casos concretos de corrupção passiva exigem avaliação técnica sobre provas (solicitação, promessa, recebimento), nexo funcional, incidência de majorantes e eventual concurso com outros delitos, além de possíveis reflexos em improbidade e sanções administrativas. Procure orientação de profissional habilitado para análise do seu cenário específico.

Guia rápido

  • Crime: Corrupção Passiva (art. 317 do Código Penal).
  • Bem jurídico protegido: probidade e moralidade administrativa.
  • Conduta típica: solicitar, receber ou aceitar promessa de vantagem indevida, para si ou para outrem, em razão da função pública.
  • Pena: reclusão de 2 a 12 anos e multa (majorada em casos específicos).
  • Sujeito ativo: funcionário público (art. 327, CP).
  • Sujeito passivo: Administração Pública e a coletividade.
  • Momento de consumação: com a solicitação ou aceitação da vantagem indevida (crime formal).
  • Diferenciação: na concussão, o agente “exige” a vantagem; na corrupção passiva, ele “solicita” ou “aceita promessa”.
  • Forma privilegiada: quando o ato é praticado cedendo a pedido ou influência, sem vantagem indevida (§2º, art. 317, CP).
  • Majorante: aumento de pena se, em razão da vantagem, o servidor retarda, omite ou pratica ato contrário ao dever funcional (§1º).

FAQ Normal

1. O que caracteriza o crime de corrupção passiva?

O crime ocorre quando o funcionário público solicita, recebe ou aceita promessa de vantagem indevida relacionada ao exercício da função pública, mesmo que o ato não seja efetivamente praticado.

2. Qual a diferença entre corrupção passiva e concussão?

Na corrupção passiva, o agente pede ou aceita espontaneamente; na concussão, ele exige mediante coação ou abuso de poder.

3. Existe corrupção passiva sem o recebimento de dinheiro?

Sim. O crime se consuma com a solicitação ou aceitação da promessa, ainda que nada seja recebido.

4. O que é vantagem indevida?

Qualquer benefício, financeiro ou não, que não seja devido ao agente — como dinheiro, favores, viagens, cargos, presentes, promoções, etc.

5. Quais as penas previstas no art. 317 do Código Penal?

Pena de reclusão de 2 a 12 anos e multa, podendo ser majorada em até 1/3 se o ato implicar violação de dever funcional (§1º) ou envolver função de direção (§2º, art. 327, CP).

6. A tentativa é punível?

É possível em casos excepcionais, quando a execução é iniciada (ex.: pedido de vantagem) e interrompida por causa alheia à vontade do agente.

7. Qual a diferença entre corrupção passiva própria e imprópria?

É própria quando o servidor aceita vantagem para praticar ato ilícito; é imprópria quando a vantagem visa ato legal, porém imoral, como acelerar processos.

8. Como o crime é investigado?

Por meio de provas documentais, gravações, mensagens, relatórios de auditoria, rastreamento financeiro e operações controladas com o Ministério Público e a polícia.

9. O corruptor particular também comete crime?

Sim. O particular responde por corrupção ativa (art. 333 do CP), quando oferece ou promete vantagem indevida ao agente público.

10. Quais são os efeitos da condenação?

Além da pena de reclusão, pode haver perda do cargo público, indenização ao erário e proibição de ocupar cargos públicos por tempo determinado (art. 92, CP).

Base legal e doutrinária

  • Art. 317, Código Penal: define o crime e suas modalidades.
  • Art. 327, §2º, CP: aumenta a pena em caso de cargo de direção ou assessoramento.
  • Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), com alterações da Lei nº 14.230/2021.
  • Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), aplicável às pessoas jurídicas.
  • Jurisprudência: STJ, HC 613.802/SC – reconhece que a consumação ocorre com a mera solicitação da vantagem indevida.
  • STF, HC 142.205/SP: reforça que a corrupção passiva é crime formal e independe do recebimento do dinheiro.

Considerações finais

A corrupção passiva é um dos crimes mais graves contra a administração pública, pois mina a confiança social e destrói a moralidade estatal. Sua caracterização exige a demonstração de solicitação, aceitação ou recebimento de vantagem indevida em razão da função. As jurisprudências reforçam que o crime é formal e consuma-se independentemente da efetiva entrega de valores. O combate à corrupção exige mecanismos de compliance, transparência e auditoria em todos os níveis administrativos.

Aviso: estas informações têm caráter educativo e não substituem a consulta de um profissional qualificado. Cada caso deve ser analisado conforme suas provas, contexto funcional e legislação aplicável.

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