Direito Penal

Concurso Formal Descomplicado: quando a pena aumenta e quando as penas se somam

Ideia central: uma única conduta que produz vários crimes

No sistema do Direito Penal brasileiro, o concurso formal ocorre quando o agente, por uma só ação ou omissão, dá causa a dois ou mais crimes, idênticos ou não. A disciplina está no art. 70 do Código Penal, que prevê dois regimes distintos: o concurso formal próprio (também chamado de perfeito ou benéfico) e o concurso formal impróprio (ou imperfeito). A diferença prática é decisiva: no próprio, aplica-se uma só pena — a do crime mais grave (ou, se iguais, uma delas) — aumentada de 1/6 até 1/2; no impróprio, as penas são somadas, como se fosse concurso material, porque se reconhecem desígnios autônomos (vontades independentes) em relação a cada crime produzido pela mesma conduta.

Perceba a lógica: a lei confere tratamento mais brando quando, num único movimento, o agente causa múltiplos resultados sem pluralidade de propósitos delitivos. A situação muda quando, ainda que em um só ato, ele revela propósitos independentes (ex.: atira para matar A e B) — aí o sistema reaproxima-se da regra do art. 69 (concurso material), somando penas.

Mensagem-chave: uma ação + vários crimes = concurso formal. Sem desígnios autônomos ⇒ aplica-se a pena do crime mais grave com aumento (1/6 a 1/2). Com desígnios autônomossoma de penas (regra do impróprio).

Base legal essencial e posição no sistema

Art. 70 do CP — núcleo do concurso formal

  • Caput (concurso formal próprio): “Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas, ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade.”
  • Parte final (concurso formal impróprio): “Não obstante, no caso de desígnios autônomos, somam-se as penas.”

Vale lembrar ainda: art. 72 (no concurso de crimes, as multas são cumulativas), art. 71 (crime continuado), art. 69 (concurso material), art. 59 (circunstâncias judiciais), art. 33 (regime), art. 44 (substituição por restritivas) e art. 75 (limite de cumprimento, 40 anos). Esses dispositivos dialogam com o art. 70 na dosimetria e execução.

Como diferenciar: próprio x impróprio (e o que não é formal)

Concurso formal próprio — sem desígnios autônomos

Há apenas um ato (ou omissão), que, por seu curso causal, atinge dois ou mais bens jurídicos e/ou vítimas, sem que se possa afirmar que o agente queria separadamente realizar cada delito. Exemplos didáticos:

  • Um único disparo que atinge dois alvos por erro na execução (ou fragmentação);
  • Um condutor que, por culpa, causa múltiplas lesões com um só choque (pluralidade de vítimas, uma só ação culposa);
  • Um único clique enviando informação caluniosa a duas pessoas (duas vítimas de calúnia num só ato de divulgação).

Concurso formal impróprio — com desígnios autônomos

Embora haja uma ação, a prova indica propósitos independentes em face de cada crime. O clássico é o atirador que, com um só disparo de rajada ou shotgun, pretende matar A e B (duas vontades dirigidas a resultados diversos). Outro exemplo: um único lançamento de malware projetado para invadir simultaneamente bases de dados de duas empresas distintas para finalidades autônomas de subtração — o plano final independe por alvo.

O que não é concurso formal

  • Concurso material (art. 69): há pluralidade de ações/omissões e, por consequência, pluralidade de crimes — as penas se somam diretamente;
  • Crime continuado (art. 71): há várias ações sob semelhança relevante de tempo, lugar, modo e outras condições, com unidade de desígnios presumida pela lei — aplica-se uma pena (do crime mais grave) com aumento por continuidade.
Quadro comparativo

Figura Núcleo fático Vontade Regra de pena
Formal próprio (art. 70, caput) Uma ação + vários crimes Sem desígnios autônomos Uma pena (mais grave) + aumento de 1/6 a 1/2
Formal impróprio (art. 70, parte final) Uma ação + vários crimes Com desígnios autônomos Soma de penas (como material)
Material (art. 69) Várias ações + vários crimes Vontades que acompanham cada ato Soma de penas
Continuado (art. 71) Várias ações semelhantes Unidade de desígnios legalmente presumida Uma pena (mais grave) + aumento por continuidade

Critérios práticos: como o julgador escolhe a fração de aumento (1/6 a 1/2)

Nos casos de concurso formal próprio, o juiz deve motivar a fração de exasperação. A lei não lista critérios, mas a prática consolidou alguns vetores, sempre com fundamentação concreta e evitando bis in idem com o art. 59:

  • Número de crimes/vítimas: quanto maior a pluralidade, maior tende a ser a fração;
  • Gravidade dos resultados e a heterogeneidade dos tipos atingidos;
  • Risco assumido pelo agente no desenho da única ação (ex.: disparo em local lotado);
  • Contexto subjetivo (sem, contudo, recontar vetoriais já usadas na pena-base).
Fração de aumento (art. 70, caput) — guia ilustrativo 1/6 (poucas vítimas, baixa heterogeneidade) 1/4 a 1/3 (pluralidade moderada) até 1/2 (muitas vítimas, riscos elevados)
A fração depende de dados concretos do caso — o gráfico é apenas didático.

Dosimetria passo a passo

Concurso formal próprio

  1. Calcule a pena de cada crime (trifásico): pena-base (art. 59), agravantes/atenuantes (arts. 61–66) e causas de aumento/diminuição específicas do tipo;
  2. Selecione a pena mais grave (ou, se iguais, uma delas);
  3. Exacerbe essa pena com a fração entre 1/6 e 1/2, motivando;
  4. Multas: aplique cumulativamente as multas de cada crime (art. 72);
  5. Regime, substituição (art. 44) e sursis (art. 77) observam a pena final após a exasperação.

Concurso formal impróprio

  1. Calcule a pena de cada crime de forma autônoma (trifásico);
  2. Some as penas (como no material: art. 69, por remissão do art. 70, parte final);
  3. Multas: também se somam (art. 72);
  4. Fixe regime e benefícios de acordo com a pena total; na execução, observa-se o art. 75.
Alerta prático: cuidado com o bis in idem. Se uma circunstância elevou a pena-base (art. 59), não pode ser usada de novo para justificar a fração máxima de aumento no art. 70 sem fundamento autônomo.

Estudos de caso numéricos (ilustrativos)

Caso 1 — Disparo único que lesa duas vítimas (lesão corporal)

  • Pena final de cada lesão, após o trifásico: 1 ano para V1 e 1 ano para V2;
  • Concurso formal próprio (sem desígnios autônomos): toma-se uma das penas (1 ano) e aplica-se aumento, p. ex., 1/31 ano + 1/3 = 1 ano e 4 meses;
  • Multas: somam-se os dias-multa de cada crime.

Caso 2 — Único ato de disparo com intenção de matar A e B

  • Homicídio tentado em relação a V1 (pena final: 8 anos); homicídio tentado em relação a V2 (pena final: 8 anos);
  • Prova indicou desígnios autônomos (queria matar ambos). É formal impróprio: 8 + 8 = 16 anos (antes de regime e benefícios);
  • Multas: somadas.

Caso 3 — Um só comando que desvia verbas de dois fundos distintos

  • Crimes de peculato com vítimas (entes) diferentes, executados por uma ordem bancária que direciona recursos a duas contas;
  • Se demonstrada finalidade única e divisão mecânica dos créditos, tendência ao formal próprio (exasperação pela pluralidade de ofensas);
  • Se provados propósitos independentes para cada entidade (planos distintos), formal impróprio com soma.

Questões recorrentes e linhas de análise

Pluralidade de vítimas em delitos patrimoniais

Quando, em um único contexto, o agente subtrai bens de patrimônios diversos, a discussão gira entre formal próprio (uma ação, vários crimes sem propósitos independentes) e formal impróprio (provas de planos autônomos). A solução depende de como os fatos revelam a direção da vontade — se há “coleta indiscriminada” em um só ato (tendendo ao próprio) ou objetivos separados por vítima (tendendo ao impróprio).

Crimes culposos com múltiplas vítimas

Em geral, revelam concurso formal próprio (uma só conduta culposa que atinge várias pessoas). A dosimetria costuma elevar a fração pela pluralidade de resultados, sempre com fundamentação concreta e sem duplicar valorações da pena-base.

Dolo eventual x culpa consciente

Em eventos com um ato e múltiplos resultados (p. ex., direção perigosa), a distinção entre dolo eventual e culpa consciente repercute na qualificação do tipo, mas, quanto ao concurso formal, o que define próprio ou impróprio é a existência (ou não) de desígnios autônomos — e não a categoria do elemento subjetivo por si só. A prova do aceitar o risco para cada resultado pode apontar autonomia de desígnios; caso contrário, permanece o próprio.

Roteiro de diagnóstico: do fato ao enquadramento

  1. Quantas ações/omissões houve? Se mais de uma, afaste o formal e examine material/continuado;
  2. Quantos crimes surgiram dessa única ação? Identifique tipos, vítimas e resultados;
  3. prova de propósitos independentes (desígnios autônomos) por crime? Se sim, impróprio (soma). Se não, próprio (exasperação);
  4. Dosimetre adequadamente (trifásico para cada crime; escolha da pena mais grave ou soma; multas cumulativas);
  5. Fixe regime e benefícios em função da pena final (e unificações na execução — art. 75).
Checklist de fundamentação

  • Descrever por que há uma só ação e múltiplos crimes;
  • Indicar elementos (ou sua ausência) de desígnios autônomos;
  • Se próprio, justificar a fração (1/6–1/2) por dados objetivos;
  • Evitar bis in idem entre art. 59 e art. 70;
  • Destacar o tratamento das multas (art. 72) e o reflexo no regime/substituição.

Interações com outros institutos

Aparência de normas e consunção

Havendo conduta que normalmente constitui crime-meio para outro crime-fim, a consunção pode eliminar o concurso — inclusive o formal. Ex.: um único ato de porte de instrumento para arrombamento consumido pelo furto qualificado, a depender do caso; a solução impede o uso indevido do art. 70 quando o ordenamento prevê absorção.

Continuidade delitiva x concurso formal

Se há uma sequência de ações com alta semelhança e unidade de contexto, discute-se art. 71. O art. 70 exige uma só ação. Em séries temporais (vários atos), a porta adequada costuma ser a continuidade (quando os requisitos legais estiverem presentes).

Regras da multa e efeitos civis

No concurso formal (próprio e impróprio), as multas são cumulativas (art. 72). Quanto a efeitos civis, cada crime mantém autonomia para reparação, ainda que a pena privativa seja unificada (próprio) — o dano à vítima B não “desaparece” porque a pena foi calculada sobre o crime mais grave com aumento.

Aplicações setoriais e exemplos temáticos

Crimes contra a pessoa

Em homicídios e lesões perpetrados por um só ato (explosão, desabamento provocado, disparo), costuma-se reconhecer concurso formal. A demarcação entre próprio e impróprio gravita na prova dos propósitosalvos específicos (A e B) tendem ao impróprio; dano indiscriminado sem finalidades autônomas, ao próprio.

Crimes patrimoniais e informáticos

Um único comando informático que subtrai dados de vários titulares pode configurar concurso formal. A depender do desenho do ataque e das finalidades, pode ser próprio ou impróprio. Na dosimetria, a pluralidade de vítimas justifica fração de aumento mais elevada no próprio, sem duplicar vetoriais.

Crimes culposos coletivos

Desastres industriais, acidentes viários com múltiplas vítimas e falhas de segurança em eventos, quando derivados de um único ato culposo, compatibilizam-se com o concurso formal próprio, cabendo atenção a consunções e delitos de perigo para evitar acumulações incoerentes.

Boas práticas para as partes

Para a acusação

  • Delimitar a unidade da ação com linha do tempo, perícias e testemunhos;
  • Demonstrar (quando pertinente) os desígnios autônomos por crime para sustentar o impróprio;
  • Individualizar resultados e vítimas para compor a fração de aumento (próprio) ou a soma (impróprio);
  • Justificar a fração do art. 70 por critérios objetivos (nº de crimes, gravidade concreta, riscos), evitando repetir a pena-base.

Para a defesa

  • Contestar a existência de desígnios autônomos quando não houver prova robusta;
  • Argumentar por consunção quando um tipo absorver o outro em crime-fim;
  • Pugnar por fração mínima no próprio com base em dados concretos (poucas vítimas, baixo risco, ausência de especial censurabilidade);
  • Evitar bis in idem apontando duplicidades entre art. 59 e 70.
Mini-roteiro de cálculo — exemplo sintético

  1. Definir se é formal próprio ou impróprio (desígnios autônomos?).
  2. Calcular as penas individualmente (trifásico).
  3. PRÓPRIO: escolher a mais grave e aumentar 1/6–1/2. IMPRÓPRIO: somar as penas.
  4. Somar multas (art. 72) em ambos os cenários.
  5. Fixar regime e benefícios pela pena final; na execução, observar art. 75.

Conclusão

O concurso formal é a resposta do Código Penal para os casos em que uma única ação gera vários crimes. A chave de leitura está nos desígnios autônomos: ausentes, temos o concurso formal próprio, com exasperação da pena do crime mais grave entre 1/6 e 1/2; presentes, incide o impróprio, com soma de penas. As multas são sempre cumulativas (art. 72). O julgador deve motivar a fração escolhida com dados concretos e cuidar para não incorrer em bis in idem com as circunstâncias do art. 59. Para acusação e defesa, dominar o percurso lógico — número de ações, vontade, tipos afetados e dosimetria adequada — é o que separa decisões coerentes de respostas arbitrárias. Em síntese: no concurso formal, mais do que contar vítimas, importa entender a ação e os fins que a orientaram; é essa análise que define se a pena será exasperada ou somada.

FAQ — Concurso formal (acordeão)

1) O que é concurso formal e como se diferencia do material e do continuado?

É quando uma única ação ou omissão gera dois ou mais crimes (CP, art. 70). No concurso material (art. 69) há várias ações e as penas se somam. No crime continuado (art. 71) há várias ações semelhantes e aplica-se uma pena (do crime mais grave) com aumento por continuidade.

2) Quando é “concurso formal próprio” e qual a regra de pena?

Quando, sem desígnios autônomos, uma única ação produz múltiplos crimes. A pena é a do crime mais grave (ou, se iguais, uma delas), com aumento de 1/6 a 1/2 (CP, art. 70, caput). As multas são cumulativas (art. 72).

3) O que caracteriza o “concurso formal impróprio”?

Quando a mesma ação é praticada com desígnios autônomos (propósitos independentes) para realizar vários crimes. Nesse caso, as penas são somadas, como no concurso material (CP, art. 70, parte final).

4) Como o juiz escolhe a fração de aumento (1/6 a 1/2) no formal próprio?

Com base em dados concretos do caso: número de crimes/vítimas, gravidade dos resultados, heterogeneidade dos tipos e o risco criado pela única ação. Deve evitar bis in idem com o art. 59 (circunstâncias judiciais) e motivar a fração escolhida.

5) O concurso formal altera regime inicial, substituição e execução?

Sim. A pena final (após a exasperação ou soma) influencia regime inicial (art. 33 CP), substituição por restritivas (art. 44) e sursis (art. 77). Na execução, observam-se as regras de unificação e o limite de cumprimento do art. 75 do CP (40 anos), sem afetar as multas cumulativas (art. 72).

Quadro rápido

  • Formal próprio (art. 70, caput): uma ação, sem desígnios autônomos → pena do mais grave + 1/6 a 1/2.
  • Formal impróprio (art. 70, parte final): uma ação, com desígnios autônomos → soma de penas.
  • Multa (art. 72): sempre cumulativa no concurso de crimes.

Base técnica — Fontes legais essenciais

  • Código Penal: art. 70 (concurso formal: caput e parte final), art. 69 (concurso material), art. 71 (crime continuado), art. 72 (multa cumulativa), art. 59 (circunstâncias judiciais), art. 33 (regime), art. 44 (substituição por restritivas), art. 75 (limite de 40 anos).
  • CF/88, art. 5º, XLVI (individualização da pena) e princípios de proporcionalidade e devido processo.
  • LEP (Lei 7.210/1984): unificação de penas e critérios para benefícios na execução.


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