Competência tributária no Brasil: como a Constituição reparte o poder de tributar entre União, Estados e Municípios
A competência tributária é o poder que a Constituição concede a cada ente federativo para instituir tributos.
Esse poder é repartido para evitar sobreposição, reduzir conflitos e garantir previsibilidade ao contribuinte.
Sem essa divisão, o sistema tributário seria caótico: todos poderiam cobrar tudo, o que inviabilizaria a vida econômica.
Mapa mental rápido
Quem pode criar o quê?
- União: impostos federais (IR, IPI, IOF, ITR, II, IE, IGF), contribuições e empréstimos compulsórios. Pode exercer competência residual e extraordinária.
- Estados e DF: ICMS, IPVA, ITCMD.
- Municípios e DF: IPTU, ITBI, ISS e taxas de polícia/serviço.
- Taxas e contribuições de melhoria: todos podem, dentro da sua esfera.
Tenha em mente: competência é o poder de criar o tributo pela lei; capacidade ativa é a aptidão de cobrar e administrar o tributo.
Princípios que moldam a competência
A Constituição reparte o poder de tributar observando princípios que protegem o contribuinte e a federação.
Legalidade e tipicidade
Tributo só nasce por lei (CF, art. 150, I). A lei define com precisão fato gerador, base de cálculo e alíquota.
Isonomia e capacidade contributiva
Veda-se tratamento desigual sem fundamento objetivo. Impostos devem buscar a capacidade contributiva quando possível.
Anterioridade e noventena
Regra: aumento de imposto só vale no ano seguinte e após 90 dias. Há exceções (II, IE, IOF, IPI em certas hipóteses etc.).
Vedação ao confisco
Tributo não pode ser instrumento de confisco. A análise é concreta e envolve proporcionalidade.
Imunidades constitucionais
Resguardam áreas sensíveis: recíproca (entre entes), templos, partidos e entidades sindicais, livros e jornais, entre outras.
Competência da União
A União tem a competência mais ampla, por razões de soberania, integração nacional e política macroeconômica.
Impostos federais clássicos
- IR – Imposto sobre a Renda e Proventos. Incide sobre acréscimo patrimonial. Pode ser pessoal e progressivo.
- IPI – Produtos industrializados. Função fiscal e extrafiscal; admite seletividade.
- IOF – Operações financeiras. Usado para política monetária; não se submete às anterioridades.
- ITR – Propriedade Territorial Rural. Foco extrafiscal, combate à improdutividade.
- II e IE – Importação e Exportação. Instrumentos de política de comércio exterior.
- IGF – Grandes Fortunas. Previsto na CF, dependente de lei complementar; jamais instituído.
Competência residual
A União pode criar novos impostos, desde que por lei complementar, com fato gerador e base de cálculo distintos dos já previstos (CF, art. 154, I).
Essa porta evita engessamento do sistema, mas preserva a repartição dada pela CF.
Competência extraordinária
Em caso de guerra externa ou sua iminência, a União pode instituir impostos extraordinários (art. 154, II) com base e fato ainda que idênticos aos de outros entes. São temporários.
Empréstimos compulsórios
Instituídos por lei complementar para:
• despesas extraordinárias (calamidade, guerra);
• investimento público urgente e relevante.
São tributos restituíveis, com regime rígido de controle.
Contribuições
A União detém competência para diversas contribuições:
- Sociais (art. 195): COFINS, PIS, contribuição previdenciária etc.
- Intervenção no domínio econômico (CIDE), como a CIDE-Combustíveis.
- De interesse de categorias (contribuições corporativas).
Taxas e contribuição de melhoria
Assim como os demais entes, a União pode instituir taxas (poder de polícia ou serviço específico e divisível) e contribuição de melhoria (obra pública que valoriza imóvel).
Competência dos Estados e do Distrito Federal
Os Estados (e o DF) financiam serviços como segurança pública, justiça estadual, infraestrutura e saúde, e para isso contam com três impostos constitucionais.
ICMS – circulação de mercadorias e serviços
É o principal imposto estadual. Incide sobre circulação de mercadorias, transporte interestadual e intermunicipal, e comunicação.
Seletividade pode ser aplicada conforme essencialidade. Exige disciplina nacional por lei complementar (LC 87/96 e posteriores).
Guerra fiscal decorre de benefícios sem convênio, gerando litígios e insegurança. A LC 160/2017 tentou pacificar parte do passivo.
IPVA – propriedade de veículos automotores
Incide sobre propriedade de veículos. Progressividade pode considerar valor, tipo e utilidade.
Imunidades específicas: aeronaves e embarcações são tema recorrente de controvérsia; o STF tem decisões que limitam a incidência.
ITCMD – transmissão causa mortis e doação
Estados tributam heranças e doações. Necessita lei complementar para regular competência em doações e heranças no exterior (temas de repercussão geral no STF).
Taxas e contribuição de melhoria
Estados podem instituir, em sua esfera, taxas de polícia ou serviço e contribuição de melhoria por obras estaduais.
Competência dos Municípios e do DF
Os Municípios estão mais próximos do cidadão. Prestam serviços diretos e exercem poder de polícia urbana. Suas receitas próprias vêm, sobretudo, de IPTU, ISS e ITBI.
IPTU – propriedade urbana
Incide sobre propriedade de imóvel urbano. Admite progressividade fiscal e no tempo por função social (CF, art. 182, §4º).
A base é o valor venal. É possível alíquota diferenciada por localização e uso, respeitada a isonomia.
ISS – serviços
Incide sobre a prestação de serviços constantes de lista nacional (LC 116/2003 e atualizações).
Debates recorrentes:
• local do recolhimento (domicílio do tomador em alguns serviços);
• guerra fiscal do ISS com alíquotas abaixo do mínimo (2%).
ITBI – transmissão inter vivos de bens imóveis
Incide sobre transmissão onerosa de imóveis. Não incide sobre incorporação do capital em pessoa jurídica, salvo se atividade preponderante for imobiliária.
Taxas e contribuição de melhoria
Municípios cobram taxas de lixo, iluminação pública (via contribuição COSIP), fiscalização, entre outras, quando atendidos os requisitos constitucionais.
Distrito Federal e Territórios
O DF acumula competências de Estado e Município, não sendo dividido em municípios.
Territórios federais, se criados, podem ter regime tributário específico, com repartição definida por lei.
Limitações constitucionais ao poder de tributar
Mesmo com competência definida, nenhum ente pode tributar sem respeitar as limitações constitucionais.
Imunidades
- Recíproca: entes não podem tributar patrimônio, renda ou serviços uns dos outros, ressalvado o que explore atividade econômica com finalidade lucrativa.
- Templos: imunidade ampla voltada à liberdade religiosa.
- Partidos, entidades sindicais e instituições de educação/assistência sem fins lucrativos: requisitos legais precisam ser cumpridos.
- Livros, jornais e periódicos e o papel destinado à sua impressão: imunidade cultural estendida pelo STF ao livro eletrônico e aos leitores digitais dedicados.
Anterioridade e noventena
Não se aplicam a alguns tributos (II, IE, IOF) e em hipóteses específicas do IPI e da CIDE; atenção às exceções para contribuições previdenciárias e ao IPVA/IPTU na alteração de base (noventena).
Uniformidade geográfica e não discriminação
União não pode tributar de modo a favorecer discriminações entre Estados. Estados não podem estabelecer diferenças tributárias em razão da procedência ou destino (art. 152, CF).
Repartição de receitas: quem fica com o quê
Competência para instituir é uma coisa; receita efetiva é outra. A Constituição cria fundos e transferências obrigatórias.
- FPE e FPM: parcelas do IR e do IPI distribuídas a Estados e Municípios segundo critérios de população e renda.
- ICMS: Estados repassam 25% aos Municípios, com parte distribuída conforme o Valor Adicionado Fiscal.
- IOF-Ouro: repartição específica quando ouro é ativo financeiro.
- Royalties e participações especiais: receitas de natureza compensatória com regras próprias.
Essas transferências equilibram a federação e viabilizam políticas locais.
Como identificar a competência em 5 passos
- Defina o fato gerador: renda? propriedade? consumo? serviço? transmissão?
- Chequem a Constituição: arts. 145 a 162, e o CTN para regras gerais.
- Veja a lei complementar: lista do ISS, regras do ICMS, conflitos de competência do ITCMD.
- Observe imunidades e princípios: podem afastar a incidência ou moldar a tributação.
- Confirme anterioridades e vigência: para saber desde quando se aplica a alteração.
Estudos de caso práticos
1) Marketplace de serviços digitais
Plataforma conecta prestadores e tomadores em vários municípios. ISS incide. Em alguns serviços, local do tomador define a competência. Atenção à alíquota mínima e à substituição tributária prevista em lei local.
2) Transporte interestadual de cargas
Serviço de transporte entre Estados sofre ICMS, de competência estadual. Eventual taxa municipal por tráfego só é válida se houver serviço específico e divisível, o que raramente ocorre.
3) Doação recebida do exterior
O ITCMD exige lei complementar para disciplinar a competência quando o doador reside no exterior. Sem LC, a cobrança é inconstitucional. O STF já sinalizou essa exigência.
4) Transferência de imóvel para integralizar capital
Regra: não incide ITBI na transmissão para integralização de capital social, salvo se a atividade preponderante da empresa for a compra e venda de imóveis ou locação. Tema de jurisprudência pacificada.
5) Leasing de veículos
Operações de leasing financeiro envolvem incidência de IOF (operações de crédito) e debates de ISS, dependendo da estrutura contratual. A análise é casuística e demanda atenção à lista de serviços.
6) Energia elétrica e telecom
Constituem mercadorias ou serviços? A energia elétrica se trata como mercadoria para fins de ICMS. Comunicação igualmente integra o campo do ICMS. Serviços de valor adicionado (aplicativos) tendem ao ISS quando presentes na lista.
Conflitos de competência e “guerras fiscais”
Quando entes tentam atrair arrecadação com benefícios sem respaldo, surge insegurança.
ICMS
Benefícios devem observar o CONFAZ (convênios). Sem isso, o incentivo é inconstitucional. A LC 160/2017 trouxe convalidação parcial de benefícios pretéritos e regras de transparência.
ISS
Municípios tentam reduzir alíquotas abaixo do mínimo ou deslocar o local de incidência. A LC 116/2003 fixa parâmetros. A lei local que contraria a LC é inválida.
Como resolver
Constituição, leis complementares e a jurisdição do STF balizam as soluções. O contribuinte deve documentar operações, manter compliance e, se necessário, buscar medidas judiciais para evitar bitributação.
Taxas x Preços públicos: evite confusão
Taxa exige vinculação a um serviço público específico e divisível, ou a poder de polícia. Preço público é contraprestação por serviço em regime de direito privado ou exploração econômica; não é tributo.
Exemplo: taxa de coleta de lixo domiciliar pode ser válida se atender aos critérios de especificidade e divisibilidade. “Taxa” de iluminação pública não é taxa; é contribuição (COSIP).
Checklist para o profissional
- Identifique o núcleo do fato gerador.
- Mapeie o ente constitucionalmente competente.
- Confirme existência de lei e, se preciso, de lei complementar.
- Verifique imunidades e princípios limitadores.
- Cheque anterioridade/noventena.
- Analise risco de conflito e bitributação.
- Documente tudo: contratos, notas, laudos, convênios.
Perguntas frequentes (FAQ objetivo)
Município pode criar imposto novo fora da CF?
Não. Impostos são taxativos na Constituição. Município só pode instituir IPTU, ITBI e ISS, além de taxas e contribuição de melhoria.
União pode tributar o patrimônio dos Estados?
Não, pela imunidade recíproca, salvo exploração econômica com finalidade lucrativa.
Quem tributa serviços de streaming?
Debate intenso. Em regra, incidem contribuições federais (como PIS/COFINS) e, no campo municipal, ISS quando o serviço constar na lista da LC 116/2003 (temas evolutivos e controvertidos na jurisprudência).
O que é competência residual?
Faculta à União criar novos impostos por lei complementar e com base distinta dos já existentes.
Posso ser tributado por dois entes pelo mesmo fato?
Não deve. Se ocorrer, há bitributação ou conflito de competência. A solução passa por análise constitucional e, muitas vezes, judicialização.
Erros comuns e como evitar
- Confundir taxa com preço público: verifique especificidade e divisibilidade do serviço.
- Ignorar a lei complementar: ICMS e ISS dependem de LC para uniformidade.
- Esquecer anterioridade: aumentos repentinos podem ser questionados.
- Desconsiderar imunidades: podem afastar totalmente a incidência.
Notas sobre jurisprudência (panorama)
O STF ocupa papel central na guarda da CF. Alguns pontos recorrentes:
- Imunidade de livros alcança e-books e leitores dedicados.
- ITBI não incide na integralização de capital, salvo preponderância imobiliária.
- ICMS sobre software sofreu inflexões jurisprudenciais; atenção às decisões mais recentes que tendem ao ISS em certas hipóteses de licenças.
- ITCMD em heranças do exterior depende de lei complementar federal para disciplinar competência.
Roteiro de estudo para concursos
- Leia os arts. 145 a 162 da CF com marcações por ente.
- Faça tabelas comparativas por imposto (fato gerador, base, sujeito ativo, anterioridades).
- Resolva provas com questões de guerra fiscal e imunidades.
- Esquematize competências residual e extraordinária da União.
- Treine casos práticos: ITCMD do exterior, local do ISS, benefícios de ICMS, IPTU progressivo.
Conclusão estratégica
A competência tributária brasileira é uma engenharia constitucional que equilibra arrecadação, autonomia e proteção ao contribuinte.
Dominar quem pode instituir o quê, sob quais princípios e com quais limitações, evita autuações, permite planejamento lícito e fortalece a federação.
Para o operador do direito, o caminho seguro é sempre partir do texto constitucional, atravessar a lei complementar aplicável, checar as leis locais e confrontar tudo com a jurisprudência atualizada.
Assim se constrói atuação eficiente, previsível e alinhada ao interesse público.