Como Calcular a Pena no Concurso de Crimes: Material, Formal e Continuado
Panorama do concurso de crimes e seus impactos no cálculo da pena
O Código Penal brasileiro prevê diferentes regimes para o tratamento de múltiplas infrações praticadas por um mesmo agente. Quando mais de um crime entra em cena, o modo de unificação ou acréscimo da pena modifica profundamente o resultado. É por isso que dominar o cálculo no concurso material (art. 69), no concurso formal (art. 70, próprio e impróprio) e no crime continuado (art. 71) é essencial tanto para acusação quanto para defesa. A lógica central é simples, mas a aplicação prática exige atenção a três camadas: (i) regra de unificação; (ii) critério de aumento (fração de exasperação); e (iii) ordem em que se aplicam as etapas da dosimetria (art. 68).
Dosimetria em três fases: onde entra o concurso
Fase 1 — Pena-base (art. 59 CP)
Parte-se do mínimo legal e examinam-se as circunstâncias judiciais (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias, consequências e comportamento da vítima). Essa etapa é feita para cada crime quando houver concurso material e concurso formal impróprio (pois haverá penas autônomas); e, via de regra, para o crime-base quando houver concurso formal próprio ou crime continuado (regime de exasperação).
Fase 2 — Agravantes e atenuantes (arts. 61–65)
Aplicam-se sobre a pena-base. Em concurso material/imperfeito, incidem crime a crime; em exasperação, incidem sobre a pena-base do delito tomado como referência.
Fase 3 — Causas de aumento e diminuição (parte especial e gerais)
Depois de agravantes/atenuantes, aplicam-se as causas de aumento/diminuição específicas (ex.: emprego de arma, concurso de pessoas) e as regras de concurso (art. 69, 70 e 71). É aqui que se soma ou que se exaspera, respeitando a ordem: primeiro causas específicas; em seguida, a regra de concurso.
Concurso material (art. 69 CP) — soma aritmética
Há pluralidade de ações ou omissões, cada qual tipificando um crime distinto. O cálculo é objetivo: para cada crime faz-se a dosimetria completa (três fases) e, ao final, somam-se as penas. Não há limite global de exasperação nessa regra, mas incidem limites de execução (art. 75 CP — tempo máximo de cumprimento).
- Crime A (pena final após 3 fases): 3 anos e 6 meses.
- Crime B (pena final após 3 fases): 2 anos.
- Total: 5 anos e 6 meses (regra do art. 69).
Concurso formal (art. 70 CP) — uma ação, vários resultados
O agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes (idênticos ou não). O art. 70 separa duas realidades com impacto direto no cálculo:
Concurso formal próprio (culpa única ou dolo único sem desígnios autônomos)
Aplica-se a pena de um só dos crimes — a mais grave, ou, se iguais, uma delas — com aumento de 1/6 (um sexto) até 1/2 (metade). A escolha da fração observa a quantidade de crimes, a gravidade concreta dos resultados e o intervalo entre eles. Prática consolidada: quanto mais vítimas ou resultados, maior a fração.
Um único disparo imprudente (culposo) atinge duas vítimas → dois crimes de lesão corporal culposa. Pena individual (após 2ª fase): 1 ano. Cálculo: toma-se 1 ano e aplica-se aumento de, por exemplo, 1/3 (duas vítimas) → 1 ano + 1/3 = 1 ano e 4 meses.
Concurso formal impróprio (desígnios autônomos)
Quando a conduta é dolosa e o agente revela intenções autônomas em relação a cada resultado, o art. 70 determina a aplicação das penas cumulativamente. Em outras palavras, o cálculo fica igual ao concurso material: dosimetria autônoma para cada crime e, ao final, soma aritmética.
Crime continuado (art. 71 CP) — vários crimes, condições semelhantes
Há pluralidade de ações, mas, pelas condições de tempo, lugar e modo de execução (e às vezes pela mesma ocasião), os fatos revelam continuidade delitiva. O art. 71 manda aplicar a pena de um só dos crimes (o mais grave, se diversos; se iguais, um deles) com aumento de 1/6 (um sexto) até 2/3 (dois terços). A fração deve considerar: número de infrações, lapso temporal, unidade de desígnios, similaridade de modus operandi e intensidade do dolo.
Três furtos simples praticados, em semanas seguidas, no mesmo estabelecimento e com idêntico modus operandi. Pena individual (após 2ª fase): 2 anos. Base: 2 anos. Fração: 1/2 (três eventos em curtíssimo lapso e alto grau de reiteração). Resultado: 2 anos + (2 × 1/2) = 3 anos.
Como escolher a fração de aumento (guidelines práticos)
Concurso formal próprio — 1/6 a 1/2
- 2 resultados → usualmente 1/6 a 1/3, conforme gravidade das consequências.
- 3–4 resultados → 1/3 a 1/2.
- ≥5 resultados → tende ao teto de 1/2, salvo peculiaridades que atenuem.
Crime continuado — 1/6 a 2/3
- 2 eventos → 1/6 a 1/4, se muito próximos e simples.
- 3–5 eventos → 1/3 a 1/2, conforme lapso, modus e danos.
- 6+ eventos ou continuidade qualificada → próximo de 2/3.
Ordem de aplicação quando coexistem causas
No método trifásico (art. 68), a sequência segura é: (1) pena-base; (2) agravantes/atenuantes; (3) causas de aumento/diminuição específicas; e, por fim, a regra de concurso (soma ou exasperação). Quando há concurso formal próprio e, dentro do delito-base, também há causa de aumento, primeiro calcula-se a pena desse delito com sua causa específica e só depois aplica-se a fração do art. 70.
- Escolha o crime-base (o mais grave ou um deles, se iguais).
- Aplique o art. 59 (pena-base) e as agravantes/atenuantes.
- Incida causas específicas do crime-base (ex.: arma, concurso de agentes).
- Somente agora aplique a fração do art. 70 conforme número e gravidade dos resultados.
Estudo de casos completos
Estudo 1 — Roubo com duas vítimas por um único ato (concurso formal próprio)
Fatos: o agente, com arma, aborda casal e subtrai bens em um único contexto fático. Há dois roubos (duas vítimas). Método: toma-se o roubo mais grave como base (em regra, as penas são iguais) e aplica-se a causa de aumento por arma antes da fração do art. 70.
Pena abstrata do roubo (art. 157, caput, redação exemplificativa): 4 a 10 anos. 1) Pena-base: 4a6m (circunstâncias parcialmente desfavoráveis). 2) Agravantes/atenuantes: nenhuma. 3) Causa específica: arma → +2/3 (exemplo ilustrativo): 4a6m × 1,666... = 7a6m. 4) Concurso formal próprio (duas vítimas): +1/3 → 7a6m × 1,333... ≈ 10 anos.
Estudo 2 — Série de furtos de pequena monta na mesma loja (crime continuado)
Pena base (furto simples) após fases 1 e 2: 1a8m. Causas específicas: nenhuma. Crime continuado: 4 eventos → fração de 1/2. Resultado: 1a8m × 1,5 = 2 anos e 6 meses.
Estudo 3 — Um único disparo com intenção de matar dois desafetos (concurso formal impróprio)
Há desígnios autônomos (dolo direcionado a dois resultados). O cálculo seguirá o art. 69 com penas autônomas para cada tentativa de homicídio (ou homicídio consumado), somando-se ao final. Se forem tentativas com diminuição do art. 14, II, aplica-se a fração de diminuição em cada crime e, só depois, soma-se.
Concurso de crimes e regime inicial/execução
O resultado final (soma ou exasperação) repercute no regime inicial (art. 33 CP), na possibilidade de substituição da pena privativa por restritivas (art. 44) e na suspensão condicional (art. 77). Em concurso material com somatório acima dos limites legais, institutos despenalizadores tornam-se inviáveis. Já no formal próprio/continuado, uma dosimetria bem fundamentada na fração pode manter o patamar em faixa mais benéfica.
Critérios de fundamentação da fração — boas práticas
- Quantity matters: registre expressamente o número de vítimas/eventos e como isso escalona a fração.
- Proximidade temporal: curto lapso entre eventos reforça continuidade; eventos espaçados reduzem a fração.
- Unidade de desígnios e modus operandi: maior similitude → maior fração no continuado.
- Gravidade concreta: consequências, lesões e vulnerabilidade das vítimas justificam aproximação ao teto.
- Proporcionalidade: evite bis in idem — não aumente pela mesma razão em fases distintas.
Armadilhas frequentes e como evitá-las
- Inverter a ordem (aplicar a fração do art. 70/71 antes de causas específicas do crime-base).
- Somar e exasperar ao mesmo tempo sobre os mesmos fatos (mistura indevida de regimes).
- Fração padronizada sem motivação: o aumento deve ser individualizado, ainda que use balizas quantitativas.
- Confundir formal próprio com impróprio: procure elementos objetivos de desígnios autônomos.
- Crime continuado artificial: sem semelhança relevante de tempo, lugar e modo, o correto é concurso material.
Checklist operacional para o cálculo
- Identifique se há uma ou várias ações e se existem vários resultados.
- Classifique: material (soma), formal próprio (exasperação), formal impróprio (soma) ou continuado (exasperação).
- Defina o crime-base quando houver exasperação.
- Aplique o art. 59 e as agravantes/atenuantes.
- Calcule as causas específicas do crime-base (se houver).
- Somente então aplique a fração do art. 70 ou 71, motivando-a.
- Em concurso material/imperfeito, some as penas finais.
- Verifique reflexos: regime inicial, substituição e sursis.
Conclusão
O cálculo da pena em concursos de crimes obedece a linhas claras: soma no material e no formal impróprio; exasperação no formal próprio e no continuado. A técnica correta exige respeitar o método trifásico, escolher adequadamente o crime-base, aplicar primeiro as causas específicas e fundamentar a fração de aumento com dados objetivos (número de vítimas/eventos, gravidade concreta, lapso temporal e similitude do modus operandi). Uma motivação limpa evita bis in idem, reduz nulidades e confere proporcionalidade e transparência à decisão. Para a defesa, a chave está em discutir a classificação (provar que não houve desígnios autônomos, p. ex.) e a fração escolhida; para a acusação, em demonstrar com precisão os elementos que ampliam a reprovabilidade. Em ambos os lados, cálculos claros e sequenciados permitem construir decisões e recursos tecnicamente sólidos.
Guia rápido — como calcular a pena no concurso material, formal e crime continuado
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Passo a passo universal
Classifique o cenário:Concurso material (art. 69): várias ações/omissões → várias penassomadas .Concurso formal próprio (art. 70, caput): uma ação → vários resultados,sem desígnios autônomos → pena do crime-base com aumento de1/6 a 1/2 .Concurso formal impróprio (art. 70, parte final): uma ação,com desígnios autônomos →soma das penas (como no material).Crime continuado (art. 71): várias ações em condições semelhantes de tempo, lugar e modo → pena do crime-base com aumento de1/6 a 2/3 .
Escolha o crime-base (somente para formal próprio e continuado): omais grave se diferentes; se idênticos, escolha um e conclua as três fases nele.- Execute o
método trifásico :Fase 1 — Pena-base (art. 59) a partir do mínimo legal.Fase 2 — Agravantes/atenuantes (arts. 61–65).Fase 3 — Causas de aumento/diminuição do delito-base.Só depois aplique a regra de concurso (soma ou fração do art. 70/71).
Fundamente a fração (quando aplicável):- Formal próprio: 2 resultados →
1/6–1/3 ; 3–4 →1/3–1/2 ; ≥5 → em regra1/2 . - Continuado: 2 eventos →
1/6–1/4 ; 3–5 →1/3–1/2 ; ≥6 ou qualificadas → até2/3 .
- Formal próprio: 2 resultados →
Finalize :- Material / formal impróprio:
some as penas finais de cada crime. - Formal próprio / continuado: pegue a pena do crime-base (após fases 1–3) e
multiplique pela fração escolhida (ex., +1/3 = ×1,333).
- Material / formal impróprio:
Cheat sheet — quando somar e quando exasperar
Situação | Regra | Fração |
---|---|---|
Dosimetria crime a crime + |
— | |
Pena do crime-base + |
||
— | ||
Pena do crime-base + |
Exemplos ultra-sintéticos
Material : Crime A = 3a6m; Crime B = 2a →Total 5a6m .Formal próprio : pena do base = 1a; duas vítimas → +1/3 →1a4m .Continuado : base = 2a; quatro eventos → +1/2 →3a .
Erros que anulam a sentença (evite!)
Inverter a ordem — aplicar art. 70/71 antes de causas específicas do crime-base.Duplicar fundamentos — aumentar pela mesma razão em fases diferentes (bis in idem).Fração automática — não justificar por que 1/3 e não 1/6, por exemplo.Classificação errada — chamar de formal próprio quando hádesígnios autônomos (caso em que a regra é somar).
Mini-fórmula mental
Com esse roteiro, você estrutura a decisão ou o recurso de maneira clara, compara cenários (soma vs exasperação), evita nulidades e entrega um cálculo
O que diferencia concurso material , concurso formal e crime continuado no cálculo da pena?
Em qual etapa do método trifásico entram as regras de concurso (arts. 69, 70 e 71)?
Após definir a
Como escolher a fração de aumento no concurso formal próprio?
A lei fixa
Quando o concurso formal vira impróprio e passa a somar penas?
Quando houver
Como se define o crime-base para exasperação no formal próprio e no continuado?
Escolhe-se o
Qual a diferença entre concurso material e crime continuado na prática?
No material, as ações são independentes e as penas se
Posso aplicar a fração do art. 70/71 antes das causas específicas do crime-base?
Não. A sequência correta (art. 68) é: pena-base → agravantes/atenuantes →
O que considerar para caracterizar o crime continuado ?
Exige-se pluralidade de infrações com semelhança relevante de
Como o resultado final influencia regime inicial , substituição e sursis ?
Penas maiores pela
Quais são as bases legais que sustentam o cálculo nos concursos de crimes?
Referencial normativo e jurisprudencial
Fontes legais e técnicas para cálculo da pena em concurso de crimes (material, formal e crime continuado):
Legislação principal
Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) Art. 59 — circunstâncias judiciais (fixação da pena-base).Arts. 61 a 65 — agravantes e atenuantes.Art. 68 — método trifásico de aplicação da pena.Art. 69 — concurso material (soma aritmética das penas).Art. 70 — concurso formal (próprio: exasperação de 1/6 a 1/2; impróprio: cumulação/soma).Art. 71 — crime continuado (exasperação de 1/6 a 2/3; critérios de tempo, lugar e modo).Art. 33 — critérios para regime inicial de cumprimento.Art. 44 — substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.Art. 77 — suspensão condicional da pena (sursis).Art. 75 — limite máximo de cumprimento de pena (repercussão na execução após soma/exasperação).
Código de Processo Penal Art. 387 — fixação de pena na sentença (observância do art. 68 do CP).Art. 617 — vedação à reformatio in pejus (impactos na revisão de frações e somas em grau recursal).
Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) Arts. 111 e 112 — unificação de penas, progressão e reflexos do somatório/exasperação.
Jurisprudência orientativa
STF HC 84.414/SP — necessidade de fundamentação concreta para a fração de aumento (art. 70/71).HC 97.256/RS — distinção entre concurso formal próprio e impróprio (desígnios autônomos).RE 597.270 — parâmetros de motivação no método trifásico (art. 68 CP).
STJ AgRg no REsp 1.499.050/RS — fração do crime continuado proporcional ao número de infrações e às condições de tempo/lugar/modo.HC 365.963/SC — concurso formal próprio: escolha do crime-base mais grave e aplicação da causa específica antes da exasperação.REsp 1.341.370/MT — vedação ao bis in idem na dosimetria (não repetir fundamento em fases distintas).AgRg no HC 535.463/RS — formal impróprio: cumulação de penas quando demonstrados desígnios autônomos.
Diretrizes práticas de fundamentação
- Explicitar
número de vítimas/eventos e olapso temporal entre eles. - Demonstrar a
semelhança de tempo, lugar e modo (crime continuado) ou aausência/presença de desígnios autônomos (concurso formal próprio x impróprio). - Aplicar primeiro as
causas específicas do delito-base; só depois a regra de concurso (arts. 69–71), conformeart. 68 . - Evitar
duplicidade de fundamentos (ex.: usar o número de vítimas para majorar a pena-base e novamente para fixar fração alta de art. 70/71).
Leitura doutrinária recomendada
Cezar Roberto Bitencourt — Tratado de Direito Penal, Parte Geral: método trifásico e concursos de crimes.Rogério Greco — Curso de Direito Penal, Parte Geral: concurso material, formal e crime continuado.Guilherme de Souza Nucci — Código Penal Comentado, arts. 68–71: critérios de fração e seleção do crime-base.