Apropriação Indébita: Entenda o Crime, as Diferenças e as Defesas Possíveis
Conceito jurídico e essência do crime
A apropriação indébita ocorre quando o agente, que inicialmente detém a posse lícita de um bem móvel alheio, modifica a intenção de guarda ou de restituição e inverte o ânimo para agir como se fosse dono, passando a reter, dispor ou consumir a coisa contra a vontade do proprietário. No direito penal brasileiro, essa conduta está tipificada no art. 168 do Código Penal (CP), cuja pena básica é de reclusão de 1 a 4 anos e multa. A essência do tipo é a chamada inversão do ânimo da posse (animus domini): o sujeito recebe legitimamente o bem (em confiança, depósito, empréstimo, mandato, transporte, etc.) e, depois, decide não devolver ou se apropriar.
Trata-se de crime contra o patrimônio, com objeto material coisa móvel alheia e elemento subjetivo o dolo específico de assenhoramento. É diverso do furto, no qual o criminoso subtrai a coisa sem deter posse lícita anterior; na apropriação indébita, a fase inicial é lícita e o desvio surge depois, quando o possuidor deixa de cumprir o dever de guarda ou restituição.
• Posse lícita inicial pelo agente (recebimento por confiança, contrato, ofício).
• Coisa móvel alheia (dinheiro, veículo, mercadoria, equipamento, valores).
• Inversão do ânimo para agir como dono, sem anuência do titular.
• Dolo de apropriar-se, revelado por comportamentos como recusa injustificada em devolver, alienação, consumo, ocultação, dilapidação, confusão patrimonial.
• Resultado: lesão ao patrimônio do proprietário ou detentor do direito.
Formas qualificadas, causas de aumento e figuras correlatas
Formas qualificadas e majorantes
O §1º do art. 168 prevê hipóteses de aumento de pena (de um terço) quando: a) o agente recebeu a coisa em razão de ofício, emprego ou profissão (ex.: contador, síndico, despachante, motorista, entregador, advogado que recebe valores para repasse); b) a coisa foi recebida por erro ou caso fortuito (aqui há interface com o art. 169, mas o §1º do art. 168 protege situações em que a posse veio regular e o desvio se dá após vínculo de confiança); c) quando há depósito necessário (guarda imposta por circunstâncias). A jurisprudência tende a reconhecer a majorante sempre que a relação de confiança for acentuada pela função do agente.
Apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, CP)
Figura autônoma que pune o empregador que desconta contribuições previdenciárias dos empregados e não repassa aos cofres públicos. A pena é de reclusão de 2 a 5 anos e multa. Há discussões sobre tipicidade material em contextos de inadimplemento fiscal versus apropriação; a defesa muitas vezes invoca excludentes por inexigibilidade de conduta diversa quando demonstrada crise econômico-financeira real e medidas para regularização. Ainda assim, a conduta habitual de reter e não recolher é, em regra, entendida como crime.
Art. 169, CP – coisa havida por erro e desvio de coisa achada
Embora não seja exatamente apropriação indébita do art. 168, o art. 169 tutela cenários próximos: apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza e desvio de coisa achada. As penas costumam ser mais brandas (detenção ou multa), mas a conduta também envolve violação da boa-fé. É a situação de quem encontra um objeto perdido e, em vez de devolver ou comunicar às autoridades, se apropria dele.
Apropriação indébita (168): posse lícita inicial + desvio posterior; reclusão 1–4 anos.
Previdenciária (168-A): desconto e não repasse de contribuições; reclusão 2–5 anos.
Coisa achada / havida por erro (169): coisa perdida/entregue por engano; detenção/multa.
Diferenças para furto, estelionato e abuso de confiança civil
Furto (art. 155, CP)
No furto, o agente subtrai a coisa alheia móvel sem consentimento desde o início. Há ruptura da esfera de vigilância do proprietário por ato clandestino. Na apropriação indébita, a ruptura não existe no começo: a posse é dada voluntariamente, e só depois ocorre o desvio. Confundir as figuras afeta o enquadramento e a dosimetria da pena.
Estelionato (art. 171, CP)
No estelionato, usa-se fraude para induzir a vítima a entregar voluntariamente a coisa (consentimento viciado). Na apropriação indébita, a vítima confia por motivo legítimo (contrato, depósito, relação de trabalho) e o agente trai a confiança depois, sem necessidade de ardil prévio. Há casos-limite em que o sujeito promete devolver sabendo que não devolverá; se o dolo antecede a aquisição da posse, a jurisprudência tende a migrar para o estelionato.
Abuso de confiança civil e ilícito contratual
No plano civil, o inadimplemento contratual sem intenção de apropriação pode gerar responsabilidade civil, não delitos. A diferença central é o dolo de assenhoramento: recusar-se a devolver um bem por mera mora contratual, com intenção de pagar/devolver e negociações em curso, tende a permanecer na esfera cível. A apropriação indébita exige propósito definitivo de atuar como dono (venda a terceiros, ocultação, confusão patrimonial deliberada).
Exemplos práticos e setores de risco
Profissões com guarda de valores de terceiros
- Advocacia e intermediação: profissional recebe alvarás ou valores de acordo e retém sem repassar ao cliente; além do aspecto penal, há infrações disciplinares.
- Contabilidade/financeiro: tesoureiros, síndicos e administradores que convertem recursos do condomínio ou empresa em proveito próprio.
- Logística e transporte: motoristas e entregadores que retêm cargas/valores sob guarda e não devolvem.
- E-commerce: operadores que recebem produtos para devolução (RMA) e os desviam, não estornando o consumidor.
Relações de consumo e incidentes comuns
Plataformas e marketplaces frequentemente recebem bens para troca/devolução. A retenção indevida pode caracterizar ilícito civil (CDC) e, quando houver dolo de assenhoramento, apropriação indébita. Em locações e comodatos, o não retorno deliberado do imóvel não é apropriação indébita (bem imóvel), mas a retenção e venda de móveis/equipamentos do locador pode ser crime, pois o objeto é móvel.
• Venda rápida do bem de terceiro sem autorização.
• Ocultação do objeto e desaparecimento do possuidor.
• Mistura de valores em conta pessoal, sem possibilidade de rastreamento.
• Recusa reiterada e injustificada em devolver, apesar de notificações formais.
• Falsificação de recibos ou prestação de contas.
Etapas de investigação e provas usuais
Boletim de ocorrência e preservação de evidências
A vítima deve registrar ocorrência e preservar documentos: contratos, termos de guarda, recibos, mensagens, e-mails, notas fiscais e registros bancários. Em contextos corporativos, relatórios de auditoria e inventário auxiliam a demonstrar a posse lícita inicial e a inversão do ânimo por parte do investigado.
Rastreamento de ativos
Transferências financeiras, PIX, extratos e movimentações de cartões são frequentemente usados para reconstituir o caminho do dinheiro. A quebra de sigilo bancário e fiscal depende de ordem judicial. Em bens físicos, notas de venda e rastreamento logístico (etiquetas, localização, CT-e) conectam o bem desviado ao agente.
Defesas possíveis e causas excludentes de tipicidade
Inexistência de dolo de assenhoramento
A defesa pode demonstrar que a retenção decorreu de mora contratual ou de controvérsia civil legítima (ex.: compensação, direito de retenção legal, divergência sobre danos), sem intenção de apropriar-se definitivamente. Pagamentos parciais, propostas de acerto e a devolução espontânea do bem indicam ausência de animus domini. Nesses casos, o conflito é cível, não penal.
Erro de tipo e boa-fé objetiva
Se o agente acreditava legitimamente ter direito sobre a coisa (por exemplo, confusão de mercadorias, autorizações ambíguas), pode haver erro de tipo essencial, excluindo o dolo. Procedimentos internos falhos e políticas pouco claras de devolução também podem gerar atipicidade quando não há vontade de assenhoramento.
Inexigibilidade de conduta diversa (168-A)
Em apropriação previdenciária, a defesa às vezes invoca crise econômico-financeira incontornável, somada a esforços efetivos de regularização, para afastar a culpabilidade (tese casuística e restrita). Provas robustas de insolvência real, parcelamentos anteriores e priorização de salários ajudam, mas não há garantia: a conduta de descontar e não repassar costuma ser reputada gravosa.
• Existência de contrato que autoriza retenção até ajuste de danos ou pagamento.
• Devolução parcial/total antes da persecução penal e abertura para negociação.
• Transparência contábil e ausência de ato de ocultação ou alienação da coisa.
• Comprovação de erro operacional e política de correção imediata.
Consequências penais e civis; acordo e reparação do dano
Dosimetria e substituição de pena
Considerando o mínimo legal de 1 ano para o art. 168, é comum aplicação de pena restritiva de direitos em substituição à privativa de liberdade, quando presentes os requisitos do art. 44 do CP. A reparação do dano — ainda que parcial — funciona como circunstância atenuante e, em juizados especiais (quando cabível), pode viabilizar acordo de não persecução penal ou transação, conforme parâmetros legais e posição do Ministério Público.
Responsabilidade civil cumulativa
Além da esfera penal, o agente responde por danos materiais e, quando houver violação à honra ou abalo moral, por danos morais. Em ambientes empresariais, a reparação inclui lucros cessantes, perda de chance e multas contratuais. Em condomínios, a gestão costuma buscar restituição com atualização e, em alguns estados, perda do cargo de síndico por destituição.
Compliance, prevenção e boas práticas organizacionais
Segregação de funções e rastreabilidade
Empresas e condomínios devem implementar segregação de funções em pagamentos e recebimentos, dupla checagem para saques e adiantamentos, contas separadas para clientes (escrow/account), prestação de contas periódica e inventários regulares. Sistemas com trilhas de auditoria e limites de alçada reduzem a oportunidade de desvio.
Políticas de adiantamentos, reembolsos e devoluções
Processos claros de adiantamentos de viagem, reembolsos e devoluções (RMA) diminuem o espaço para interpretações subjetivas. O canal de denúncia e o controle interno são pilares de detecção precoce.
Treinamento e cultura de integridade
Treinamentos periódicos sobre conflitos de interesse, guarda de valores e consequências legais da apropriação indébita estabelecem padrões de conduta. Programas de background check e políticas de presentes ajudam a mitigar riscos em posições sensíveis.
Casos ilustrativos (hipóteses didáticas)
Depósito de mercadoria para conserto
Consumidor entrega notebook à assistência técnica. Ao fim do prazo, a empresa vende o bem como “sucata” sem autorização. Há evidência de inversão do ânimo e potencial enquadramento no art. 168, cumulável com responsabilidade civil por perdas e danos.
Repasse de valores pelo procurador
Procurador recebe indenização judicial e não repassa ao outorgante; usa o dinheiro para pagar dívidas pessoais. Documentos bancários e o alvará provam a posse lícita inicial e a destinação diferente, indicando apropriação indébita.
Retenção de contribuições de empregados
Empresa desconta INSS em folha e não recolhe por meses. Vê-se, em tese, apropriação indébita previdenciária (art. 168-A), com risco penal e fiscal, salvo hipóteses excepcionais de inexigibilidade muito bem demonstradas.
Conclusão
A apropriação indébita é um crime de quebra de confiança que se distingue do furto e do estelionato pelo momento de formação do dolo e pela posse lícita inicial. No ordenamento penal brasileiro, aparece na forma comum (art. 168), em variações qualificadas e na relevante apropriação previdenciária (art. 168-A). A atuação eficiente exige provas documentais, rastreamento financeiro e, do lado das organizações, compliance para prevenção e resposta. Para a defesa, demonstrar ausência de animus domini, boa-fé e contexto civil legítimo pode afastar a tipicidade ou mitigar a pena. Em qualquer cenário, reparar o dano precocemente é medida que tanto protege a vítima quanto colabora na solução penal mais proporcional.
Guia rápido
- O que é: Crime patrimonial em que o agente, com posse lícita inicial de coisa móvel alheia, inverte o ânimo e passa a agir como dono, recusando-se a devolver ou dispondo do bem (art. 168 do CP).
- Pena-base: reclusão de 1 a 4 anos e multa (art. 168, caput, CP).
- Majorantes: aumento de 1/3 se a coisa é recebida em razão de ofício, emprego ou profissão, ou em depósito necessário (art. 168, §1º, CP).
- Variante relevante: apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP): descontar contribuição do empregado e não repassar ao INSS (pena de 2 a 5 anos e multa).
- Figuras próximas: coisa havida por erro e desvio de coisa achada (art. 169 do CP); furto (art. 155) e estelionato (art. 171) – diferem pelo momento do dolo e pela posse inicial.
- Elemento-chave: animus domini (intenção de assenhoramento). Indícios: alienar o bem, ocultar, confundir com patrimônio próprio, recusar devolução sem causa legítima.
- Defesas comuns: ausência de dolo (mero inadimplemento civil), erro de tipo, inexigibilidade de conduta diversa em 168-A (tese excepcional).
- Provas típicas: contratos/recibos, comunicações, extratos/PIX, inventários, rastreamento logístico, ordens de pagamento, auditorias internas.
- Reparação: restituição do bem/valores pode mitigar a pena e facilitar acordos penais quando cabíveis.
- Prevenção: segregação de funções, contas de custódia (escrow), prestação de contas, políticas de adiantamentos e compliance com trilhas de auditoria.
FAQ
1) O que diferencia apropriação indébita de furto?
No furto, a posse da vítima é rompida desde o início por subtração. Na apropriação indébita, o agente recebe licitamente o bem e depois decide não devolver, comportando-se como dono.
2) E de estelionato, qual a diferença?
No estelionato, há fraude para obter a entrega voluntária do bem. Na apropriação indébita, a entrega é lícita e legítima (depositário, mandatário, empregado), e o desvio ocorre posteriormente.
3) Quando há aumento de pena na apropriação indébita?
Quando a coisa é recebida em razão de ofício, emprego ou profissão (ex.: síndico, advogado, contador), ou em depósito necessário, aplica-se o aumento de 1/3 (art. 168, §1º, CP).
4) O que é apropriação indébita previdenciária?
É a conduta do empregador que desconta a contribuição do empregado e não a repassa ao INSS, prevista no art. 168-A do CP, com pena de 2 a 5 anos e multa.
5) Posso responder penalmente por ficar com um objeto que encontrei?
Sim, se houver desvio de coisa achada (art. 169, II, CP) – a pessoa deve devolver ou comunicar a autoridade. Não é art. 168, mas é crime correlato.
6) Inadimplência contratual sempre é crime?
Não. Sem dolo de assenhoramento, trata-se de questão civil. O crime exige conduta típica como ocultar, alienar ou recusar devolução sem justa causa, revelando intenção de agir como dono.
7) Quais provas ajudam a vítima?
Contrato ou termo de guarda, recibos, mensagens, extratos, relatórios de auditoria, rastreamento de cargas e notas de venda – todos demonstram a posse lícita inicial e a inversão do ânimo.
8) Existem acordos para evitar prisão?
Dependendo do caso, podem caber acordo de não persecução penal ou substituição por penas restritivas (art. 44 do CP), especialmente com reparação do dano.
9) Como empresas podem prevenir o crime internamente?
Com segregação de funções, contas separadas de cliente (escrow), prestação de contas periódica, limites de alçada, inventários e canal de denúncia.
10) O que fazer se fui acusado injustamente?
Reúna provas de boa-fé (comunicações, proposta de devolução, registros contábeis), demonstre ausência de dolo e procure defesa técnica para requerer arquivamento, absolvição ou acordo mais proporcional.
Fundamentos jurídicos essenciais (nome alternativo à “Base técnica”)
- Código Penal: art. 168 (apropriação indébita: reclusão 1–4 anos e multa); art. 168, §1º (majorantes); art. 168-A (apropriação previdenciária: reclusão 2–5 anos e multa); art. 169 (coisa havida por erro/desvio de coisa achada); art. 155 (furto); art. 171 (estelionato); art. 44 (substituição da pena).
- Processo penal: possibilidade de acordo de não persecução penal quando preenchidos os requisitos legais (art. 28-A do CPP).
- Responsabilidade civil: reparação de danos materiais e morais cumulável com a esfera penal (art. 927 do CC e princípios gerais).
- Direito do trabalho/previdenciário: em 168-A, relação com a obrigação de recolhimento de contribuições descontadas dos empregados.
- Jurisprudência dominante (síntese): exige-se posse lícita inicial e dolo de assenhoramento inequívoco; inadimplemento contratual por si só não configura o tipo penal sem atos indicativos de apropriação.
Considerações finais
A apropriação indébita tutela a confiança nas relações sociais e comerciais. O foco do tipo está na inversão do ânimo após a posse lícita, que a distingue do furto e do estelionato. Para o titular do bem, documentar a entrega e as obrigações de guarda/restituição, além de agir rápido para preservar evidências, aumenta a eficácia da resposta civil e penal. Para empresas, políticas de compliance e controles com rastreabilidade reduzem riscos e fortalecem a prova. Para acusados, a estratégia passa por demonstrar boa-fé, ausência de dolo e, quando adequado, reparar o dano para buscar a solução menos gravosa. Em qualquer cenário, a análise técnica do caso concreto é determinante para o enquadramento correto e para a definição do melhor caminho processual.
Aviso importante
Este material é informativo e foi elaborado para orientar de forma geral. As situações reais variam conforme documentos, fatos e interpretações judiciais. Por isso, estas informações não substituem a avaliação individualizada de um(a) advogado(a) criminal ou cível, que poderá analisar provas, riscos e estratégias adequadas ao seu caso.