O que é o direito ao esquecimento e como funciona no Brasil
Ideia central no Brasil: o que é e o que não é “esquecimento”
Quando falamos em “direito ao esquecimento” na internet, muita gente imagina um poder amplo de apagar tudo o que já foi publicado. No Brasil, não é assim. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em repercussão geral (Tema 786), que um direito ao esquecimento em sentido amplo é incompatível com a Constituição. Isso quer dizer: não existe um poder genérico de suprimir fatos verdadeiros e lícitos de interesse público pelo simples decurso do tempo.
Mas a conclusão do STF não fecha as portas para a proteção da privacidade, da honra e da imagem. O ordenamento continua garantindo instrumentos para combater conteúdo ilícito (difamatório, ofensivo, íntimo, não autorizado, fraudulento, com dados pessoais tratados irregularmente etc.). Em termos práticos, hoje se trabalha com três frentes complementares:
- Remoção de conteúdo ilícito (ou indisponibilização do link), quando a publicação viola direitos de personalidade ou normas específicas.
- Desindexação em buscadores (redução de alcance), nos casos em que não caiba remoção integral, mas o link expõe indevidamente o nome da pessoa em pesquisas.
- Proteção de dados pessoais com base na LGPD, incluindo correção, anonimização, bloqueio ou exclusão quando houver tratamento irregular.
Portanto, o foco atual é responsabilizar e mitigar danos quando houver abuso, e não “apagar a história”.
Panorama constitucional e legal
Liberdades em tensão
A internet é um espaço de atrito entre liberdade de expressão/informação (art. 5º, IV, IX e XIV; art. 220, CF/88) e direitos da personalidade (art. 5º, V e X, CF/88). A solução é o balanço caso a caso: prevalece a liberdade quando houver interesse público, finalidade informativa e veracidade; prevalece a tutela da personalidade quando houver abusos, dano concreto, exposição desnecessária, discurso de ódio, conteúdo íntimo, ou tratamento de dados em desconformidade com a LGPD.
Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014)
Estabelece princípios e responsabilidades. Em regra, plataformas não respondem automaticamente pelo que terceiros publicam; a remoção exige ordem judicial (art. 19). Exceção relevante: conteúdo íntimo de nudez/sexo publicado sem consentimento (art. 21): basta notificação do interessado com elementos suficientes para identificação do material, devendo a plataforma removê-lo de forma célere.
LGPD (Lei 13.709/2018)
Garante direitos do titular (art. 18): acesso, correção, anonimização, bloqueio, eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade; revogação do consentimento; oposição ao tratamento; portabilidade. Para uso jornalístico, artístico e acadêmico há exceções, mas não um cheque em branco: continua havendo deveres de finalidade, necessidade e proporcionalidade.
Código Civil e outras normas
Os arts. 12 e 20 do CC permitem medidas para cessar ameaças/lesões a nome, honra e imagem, com reparação. Há ainda regras específicas para crianças e adolescentes (ECA), para dados sigilosos (por exemplo, processos em segredo de justiça) e para reabilitação criminal (que não apaga o fato, mas impõe limites de divulgação oficial e reiteração de estigmas).
Quando é possível pedir remoção ou desindexação
- Conteúdo íntimo (nudez/ato sexual) sem consentimento: remoção imediata mediante notificação, com fundamento no art. 21 do Marco Civil.
- Falsidades e ofensas: calúnia, difamação, injúria, montagens e deepfakes que afetem honra e imagem.
- Dados pessoais tratados irregularmente: divulgação de CPF, endereço, telefone, dados sensíveis ou informações excessivas sem base legal (LGPD).
- Exposição de menores sem proteção adequada, ou violação de decisões em segredo de justiça.
- Indexação abusiva do nome em buscadores que amplifique dano desproporcional, especialmente em conteúdos antigos sem interesse público atual, com possibilidade de desindexação.
- Uso comercial indevido de nome/imagem/voz sem autorização.
Em tópicos de alto interesse público (ex.: cobertura jornalística de fatos relevantes, atuação de figuras públicas, decisões judiciais), tende a prevalecer a manutenção da informação, salvo excessos específicos (sensacionalismo, dados pessoais desnecessários, erros factuais).
Como agir na prática: passo a passo
- Mapeie o problema: reúna URLs, prints com data/hora, cópia do conteúdo e dos comentários; registre o impacto (perda de emprego, assédio, risco físico, dano emocional).
- Notifique a plataforma: use os canais “denunciar”/“reportar” e o formulário jurídico. Em conteúdo íntimo, a remoção deve ser celeríssima após a notificação adequada.
- Acione o responsável direto (site/blog/usuário), quando identificável, solicitando retirada/correção e registrando o protocolo.
- Busque a desindexação em buscadores, quando cabível: peça para que o conteúdo não apareça na pesquisa por nome e sobrenome, mitigando o dano sem “apagar” o histórico.
- Via judicial: se a remoção não ocorrer ou o risco for urgente, ajuíze pedido de tutela de urgência para indisponibilização do link e/ou desindexação, com prova do dano e da probabilidade do direito. Em valores modestos, é possível usar o Juizado Especial Cível (até 40 salários mínimos).
- Fundamente com LGPD quando houver dados pessoais: demonstre ausência de base legal, excesso, falta de finalidade ou desproporcionalidade.
- Indenização: além da retirada, busque reparação por danos morais e materiais, se houver.
Dica operacional: guarde protocolos, e-mails, IDs de denúncia e prazos informados. Esses registros reforçam o pedido em eventual ação.
Provas e estratégia
- Documente a difusão: resultados no Google/Bing, número de visualizações, republicações.
- Contextualize o interesse público: explique por que a manutenção ou indexação pelo nome é desproporcional (ex.: fato antigo, já superado, sem relevância atual).
- Evite pedir “apagamento do passado”: foque em excessos, ilegalidades e necessidade de minimização. Isso se alinha melhor com a jurisprudência pós-Tema 786 e com a LGPD.
- Provas técnicas: hash do arquivo, witness de páginas (ferramentas de preservação), perícia se houver alegação de montagem.
Responsabilidade das plataformas: limites e exceções
De modo geral, as plataformas só respondem civilmente se, após ordem judicial, mantiverem conteúdo ilícito (art. 19, Marco Civil). Exceção: nudez/sexual sem consentimento (art. 21) — basta notificação válida. Em paralelo, a LGPD pode responsabilizar o controlador quando houver falhas de segurança, ausência de base legal ou descumprimento de direitos do titular.
Para buscadores, é comum a discussão de desindexação (retirada do nome da consulta), não necessariamente a remoção do conteúdo na origem. Já para hospedagem e redes sociais, a providência típica é a indisponibilização do post/arquivo específico.
Pedido extrajudicial rápido (modelo de referência)
Assunto: Solicitação de remoção/desindexação de conteúdo – violação de direitos de personalidade e LGPD
Prezados,
Sou titular dos dados e venho requerer a indisponibilização e/ou desindexação do conteúdo acessível em: [listar URLs], que contém [descrever: dados pessoais sem base legal / imagens íntimas / ofensas / informações desatualizadas sem interesse público].
O material viola meus direitos de privacidade, honra e imagem (CF/88, art. 5º, V e X; CC, arts. 12 e 20), bem como a LGPD (arts. 6º e 18). No caso de imagens íntimas, aplica-se o art. 21 do Marco Civil.
Solicito solução em caráter urgente, informando protocolo e prazo de resposta. Anexo documentos comprobatórios.
Atenciosamente, [nome, CPF, contato]
Riscos e limites (o que pode inviabilizar a retirada)
- Interesse público claro, especialmente cobertura jornalística de fatos recentes e relevantes, sem excessos.
- Verdade e licitude da publicação, com cuidado editorial e finalidade informativa.
- Figura pública em atuação oficial: a transparência tende a prevalecer, salvo abuso.
- Pedidos genéricos (“apague tudo sobre mim”) ou sem precisão de URLs e fundamentos.
Nesses cenários, a via mais realista é desindexação parcial, correção do texto, retirada de dados excessivos e direito de resposta.
Higiene digital: como se prevenir
- Revise configurações de privacidade em redes sociais e buscadores.
- Ative alertas de nome (Google Alerts) para detectar citações.
- Evite expor dados pessoais em comentários, currículos abertos e marketplaces.
- Guarde comprovantes e protocolos de cada denúncia.
- Em empresas, implemente programa de privacidade e governança em dados (LGPD).
Perguntas rápidas de orientação (antes do acordeão)
- Preciso de ordem judicial para tudo? Não. Para conteúdo íntimo (art. 21, MCI) basta notificar a plataforma com prova mínima. Para demais casos, a regra é ordem judicial, salvo remoções voluntárias pelos próprios termos de uso.
- Posso pedir “apagamento do meu nome do Google”? Você pode pedir desindexação em situações específicas de dano desproporcional e ausência de interesse público atual, articulando fundamentos de personalidade e LGPD.
- E se o site estiver fora do Brasil? Direcione o pedido aos intermediários locais (filiais, representantes, provedores de busca) e fundamente em normas brasileiras quando o acesso/dano ocorrer aqui.
- Quanto tempo demora? Depende do caso e da urgência. Com tutela de urgência, decisões podem sair rapidamente; em notificações administrativas, observe os prazos dos termos de uso.
- Remover o link resolve? Muitas vezes mitiga o dano. A remoção na origem é ideal, mas a desindexação já reduz o alcance.
Perguntas frequentes – prática do dia a dia
O STF afastou a ideia genérica de apagar fatos verdadeiros e lícitos pelo simples tempo. Continuam possíveis a remoção de conteúdo ilícito, a desindexação e a tutela de dados pela LGPD.
Guarde prints datados, URLs, e-mails de cobrança/ameaça, negativa de emprego, mensagens ofensivas. Relatos médicos e testemunhas também ajudam a demonstrar o dano.
É possível notificar plataformas e até propor ação no Juizado Especial (até 20 salários sem advogado). Porém, casos complexos costumam exigir assessoria técnica.
É a retirada do nome do resultado em buscadores para determinado link. O conteúdo original pode continuar no site, mas fica muito menos visível.
Varia conforme os termos de uso e a gravidade. Para nudez não consensual, a resposta deve ser imediata após notificação válida (art. 21, MCI). Nos demais casos, não há prazo fixo em lei; por isso, protocolos e urgência judicial são importantes.
Depende. Para desindexação, é comum acionar o buscador. Para remoção, o ideal é atingir o responsável pelo conteúdo e, se necessário, a plataforma que hospeda.
Não “sempre”. Em regra, permanece por interesse público e liberdade de imprensa. Porém, excessos (sensacionalismo, exposição desnecessária de dados pessoais, erro) podem justificar correção, atualização, minimização ou, em casos extremos, retirada.
É possível pedir atualização do conteúdo para refletir a absolvição e, em hipóteses específicas, desindexação do nome para reduzir estigma — a depender do interesse público residual do caso.
Se o acesso e o dano ocorrerem no Brasil, é possível fundamentar em leis brasileiras e acionar representantes locais ou intermediários (buscadores, provedores) com atuação aqui.
O arrependimento não invalida o que era lícito, mas plataformas podem remover com base nos próprios termos. Em dados pessoais, a LGPD permite revogar consentimento e solicitar eliminação, observadas as exceções legais.
Base técnica e referências normativas
- Constituição Federal/88: art. 1º, III (dignidade); art. 5º, IV, IX, XIV, V e X (liberdades, honra, imagem); art. 220 (liberdade de manifestação e informação).
- Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014): art. 19 (responsabilidade condicionada à ordem judicial); art. 21 (remoção de nudez/ato sexual mediante notificação).
- LGPD (Lei 13.709/2018): art. 6º (princípios: finalidade, necessidade, proporcionalidade, segurança); art. 18 (direitos do titular: acesso, correção, eliminação, oposição etc.).
- Código Civil: arts. 12 e 20 (proteção do nome, honra e imagem; tutela inibitória e reparatória).
- ECA (Lei 8.069/1990): proteção integral e prioridade absoluta a crianças e adolescentes, inclusive na exposição digital.
- Jurisprudência: STF, Tema 786 (incompatibilidade de um “direito ao esquecimento” genérico; soluções por responsabilidade civil, LGPD e medidas pontuais de proteção).
Observação: veículos jornalísticos sérios costumam acolher pedidos de atualização e de minimização de dados pessoais quando demonstrada a desnecessidade ou o risco, sem prejuízo do interesse público da notícia.
Fecho prático
O caminho brasileiro não é “apagar a história”, mas conter abusos e minimizar danos. Em situações de exposição indevida — especialmente conteúdo íntimo, dados pessoais, erros factuais e falsidades — há meios eficazes para remover ou desindexar links e buscar indenização. Estruture o caso com provas, protocolos e fundamentação em Marco Civil, LGPD, Código Civil e na jurisprudência. Quando houver interesse público legítimo, privilegie correções, atualizações e minimização em lugar de pedidos genéricos de apagamento.
Mensagem-chave: o que funciona é precisão (URLs, fatos, fundamentos), celeridade nas notificações e, se necessário, tutela de urgência. Foque no dano concreto e na proporcionalidade.
