Direito Internacional da Biodiversidade: tratados, ABS e metas 30×30 em foco
Panorama e fundamentos do direito internacional da biodiversidade
O direito internacional da biodiversidade organiza princípios, regras e instituições voltadas a conservar a diversidade biológica, assegurar seu uso sustentável e viabilizar a repartição justa e equitativa de benefícios decorrentes do acesso a recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado. A partir da década de 1970 (Estocolmo/1972) e, sobretudo, de 1992 (Rio-92), formou-se uma arquitetura jurídica policêntrica que combina tratados universais, protocolos específicos, decisões de Conferências das Partes (COPs), mecanismos financeiros e diretrizes técnicas.
Três eixos estruturam o regime: (i) conservação in situ e ex situ, com áreas protegidas e bancos de germoplasma; (ii) uso sustentável da biodiversidade e de seus serviços ecossistêmicos; e (iii) acesso e repartição de benefícios (ABS), contemplando consentimento prévio informado (PIC) e termos mutuamente acordados (TMA) com Estados e comunidades detentoras de conhecimentos tradicionais.
- CDB/1992 (Convenção sobre Diversidade Biológica): conservação, uso sustentável e ABS.
- Protocolo de Cartagena/2000: biossegurança e movimento transfronteiriço de OVM/OGM.
- Protocolo de Nagoya/2010 e Suplementar de Nagoya–Kuala Lumpur: ABS e responsabilidade.
- CITES/1973: comércio internacional de espécies ameaçadas.
- Ramsar/1971: zonas úmidas de importância internacional.
- BBNJ/2023 (Alta-Mar): biodiversidade em áreas além da jurisdição nacional (ainda pendente de entrada em vigor; requer ratificações).
- ITPGRFA/2001 (FAO): recursos fitogenéticos para alimentação e agricultura (sistema multilateral).
Arquitetura normativa: da CDB ao Marco Global de Biodiversidade
Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e seus protocolos
A CDB reconhece a soberania dos Estados sobre seus recursos naturais e estabelece que o acesso a recursos genéticos depende de PIC e TMA. O Protocolo de Cartagena cria o procedimento de Acordo Fundamentado Prévio e regras de rotulagem/segregação para o movimento transfronteiriço de organismos vivos modificados, visando prevenir riscos à biodiversidade e à saúde humana. O Protocolo de Nagoya detalha o regime ABS, incluindo compliance em países usuários (pontos de verificação, certificados de conformidade) e atenção ao conhecimento tradicional. O Suplementar de Nagoya–Kuala Lumpur aborda responsabilidade e compensação por danos à biodiversidade causados por OVM.
Marco Global de Biodiversidade de Kunming–Montreal (2022)
Em 2022, as Partes aprovaram o Marco Global de Biodiversidade (GBF) com metas para 2030, incluindo: 30×30 (proteger pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas), restaurar 30% dos ecossistemas degradados, reduzir pela metade a introdução de espécies exóticas invasoras e eliminar/realinhar, até 2030, subsídios prejudiciais à biodiversidade em centenas de bilhões de dólares/ano. O GBF também lançou a base para um mecanismo multilateral de repartição de benefícios referente a informação de sequência digital (DSI) de recursos genéticos, cujo desenho normativo segue em negociação.
Alta-mar, patrimônio comum e recursos genéticos marinhos
O Acordo BBNJ (2023), sob a UNCLOS, trata de áreas marinhas além da jurisdição nacional: (i) recursos genéticos marinhos com repartição de benefícios (inclusive de DSI), (ii) ferramentas de manejo por área como AMPs em alto-mar, (iii) avaliações de impacto ambiental e (iv) construção de capacidade. O tratado ainda não está em vigor e depende de um número mínimo de ratificações para produzir efeitos.
Comércio e espécies ameaçadas: CITES
A CITES regula o comércio internacional de espécimes de fauna e flora por meio de Anexos I-III, exigindo licenças e parecer de extração não prejudicial. Na prática, é a primeira linha de defesa contra o tráfico de vida silvestre e um importante instrumento para cadeias de suprimentos (madeira, pesca, animais de estimação exóticos, produtos medicinais).
Propriedade intelectual e conhecimento tradicional
As interfaces com TRIPS (OMC), UPOV e o sistema de patentes são centrais. Em 2024, os membros da OMPI adotaram um novo tratado sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimento Tradicional, prevendo divulgação da origem em pedidos de patentes quando invenções envolverem recursos genéticos e, quando aplicável, conhecimentos tradicionais. O instrumento reforça a rastreabilidade e a coerência com o ABS da CDB (entrada em vigor condicionada a ratificações).
Implementação doméstica: ABS, áreas protegidas e instrumentos econômicos
Soberania, PIC/TMA e repartição de benefícios
Países megadiversos adotaram leis específicas de acesso ao patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado, com cadastros eletrônicos, repartição de benefícios monetária (percentuais sobre receita, fundos nacionais, pagamentos por marcos tecnológicos) e não monetária (capacitação, transferência de tecnologia, coautoria e compartilhamento de dados). Em comunidades indígenas e tradicionais, aplica-se consentimento livre, prévio e informado (CLPI) e salvaguardas culturais.
Áreas protegidas e restauração
Para cumprir o 30×30, os países combinam Unidades de Conservação e outras medidas de conservação baseadas em áreas (OECMs). A restauração ecossistêmica utiliza metas por bioma (mata, savana, manguezal, recifes) e instrumentos como pagamentos por serviços ambientais, créditos de biodiversidade emergentes e licenciamento ambiental com medidas compensatórias.
Financiamento, transparência e dados
O GEF continua sendo o principal mecanismo financeiro da CDB, complementado por fundos climáticos e títulos verdes. O GBF introduziu a lógica de “monitorar para governar”: listas de indicadores (espécies, ecossistemas, integridade, financiamento) e plataformas abertas de dados, o que exige integração de inventários nacionais, metabarcoding, tecnologias de observação e controle de qualidade.
- Mapear se há recurso genético e/ou conhecimento tradicional no projeto.
- Identificar a autoridade nacional competente e o procedimento (cadastro, autorização).
- Obter PIC e pactuar TMA (benefícios monetários e não monetários).
- Emitir/arquivar certificado de conformidade e cumprir a verificação em países usuários.
- Garantir rastreamento de DSI e respeito a direitos de comunidades (CLPI).
Fiscalização, due diligence e combate à biopirataria
Órgãos, cooperação e compliance
A execução combina autoridades ambientais, aduanas, polícia, ministérios públicos, povos e comunidades tradicionais e redes internacionais (como INTERPOL–ICCWC para crimes contra a vida selvagem). Ferramentas: controles CITES, sistemas de licenças, listagens de espécies, marcação genética de madeira/peixes, verificação de cadeia de custódia e sanções administrativas e penais.
Red flags de biopirataria
- Coleta/saída de material biológico sem autorização e sem PIC/TMA.
- Depósito de sequências genéticas em repositórios sem metadados de origem/consentimento.
- Pedidos de patente sem divulgação de origem quando aplicável.
- Comércio de espécies listadas (CITES) com documentos inconsistentes.
- Administrativa: multas, apreensões, suspensão de licença e medidas de reparação.
- Civil: responsabilidade objetiva por dano à biodiversidade e aos serviços ecossistêmicos.
- Penal: crimes ambientais, tráfico de espécies e falsidades documentais.
Interfaces com clima, oceanos e agricultura
Sinergias e trade-offs
A biodiversidade conecta-se a regimes como Acordo de Paris (soluções baseadas na natureza, salvaguardas), UNCLOS (recursos marinhos), UNCCD (desertificação) e FAO (segurança alimentar). Políticas climáticas de neutralidade de carbono devem evitar impactos adversos (monoculturas bioenergéticas, conversão de ecossistemas), privilegiando restauração ecológica, florestas nativas e paisagens multifuncionais.
Agricultura, insetos polinizadores e agrotóxicos
Diretrizes internacionais estimulam o manejo integrado de pragas, redução de insumos de alto risco e proteção de polinizadores, fundamentais para cadeias alimentares. Programas de agroecologia e agrossilvicultura são exemplos de conciliação entre produtividade e conservação.
Gráfico didático – Evolução de áreas protegidas (exemplo ilustrativo)
O gráfico abaixo é didático para apresentação interna. Use dados oficiais ao publicar relatórios.
Boas práticas para governos e empresas
Governos
- Internalizar o GBF 2030 em planos nacionais, com metas mensuráveis e indicadores.
- Revisar subsídios nocivos e direcionar incentivos à conservação/restauração.
- Fortalecer sistemas de licenciamento, monitoramento e observância.
- Participar das negociações sobre DSI e do BBNJ, ampliando a cooperação científica.
Empresas e instituições de pesquisa
- Implantar due diligence de natureza (mapeamento de dependências/impactos, metas de nature-positive).
- Adotar compliance ABS (PIC/TMA, registros, rastreabilidade, repartição de benefícios).
- Proteger polinizadores e reduzir riscos de espécies invasoras em cadeias globais.
- Relatar dados em plataformas de ESG e indicadores do GBF (investimento, integridade de ecossistemas, espécies).
Conclusão
O direito internacional da biodiversidade evoluiu para um sistema robusto, porém distribuído, que exige coordenação entre tratados e políticas domésticas. O sucesso do GBF 2030, a operacionalização do regime de DSI, a entrada em vigor do BBNJ e a implementação efetiva do ABS definirão a próxima década. Para atores públicos e privados, a palavra-chave é integração: planejamento territorial, finanças, comércio e P&D devem convergir para trajetórias nature-positive, com benefícios compartilhados e respeito a povos e comunidades tradicionais.
Guia rápido
- Objeto: conservação da diversidade biológica, uso sustentável e repartição justa e equitativa de benefícios (ABS).
- Pilares jurídicos globais: CDB/1992 (Convenção sobre Diversidade Biológica) + Cartagena/2000 (biossegurança) + Nagoya/2010 (ABS) + regimes setoriais (CITES/1973, Ramsar/1971, ITPGRFA/2001–FAO, BBNJ/2023 – alta-mar).
- Princípios-chave: soberania sobre recursos naturais, consentimento prévio informado (PIC/CLPI), termos mutuamente acordados (TMA), precaução, equidade e respeito ao conhecimento tradicional.
- Metas 2030 (GBF Kunming–Montreal): proteger 30% de terras e mares (30×30), restaurar 30% de ecossistemas degradados, reduzir invasoras e eliminar subsídios nocivos à natureza.
- Compliance para pesquisa/negócios: checar ABS (PIC/TMA), certificados de conformidade, due diligence contra biopirataria, licenças CITES e controles aduaneiros.
FAQ (NORMAL)
1) O que é ABS e quando preciso de PIC/TMA?
ABS é o regime de acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios. O acesso depende de consentimento prévio informado (PIC) da autoridade/ comunidade e de termos mutuamente acordados (TMA) que detalham benefícios monetários e não monetários (capacitação, coautoria, dados).
2) Conhecimento tradicional também está protegido?
Sim. A CDB/Nagoya reconhece direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais. O uso de conhecimento tradicional associado requer CLPI e repartição de benefícios. Tratativas recentes na OMPI exigem divulgação de origem em certos pedidos de patente.
3) Como a biossegurança de OVM/OGM é tratada internacionalmente?
O Protocolo de Cartagena estabelece o Acordo Fundamentado Prévio para o movimento transfronteiriço, rotulagem/segregação e avaliação de risco, aplicando o princípio da precaução para proteger biodiversidade e saúde.
4) O que muda com o BBNJ para a biodiversidade de alta-mar?
O BBNJ (2023) cria bases para repartição de benefícios de recursos genéticos marinhos (inclusive informação de sequência digital – DSI), viabiliza áreas marinhas protegidas em alto-mar, define avaliações de impacto ambiental e cooperação/capacitação. O tratado aguarda ratificações para entrar em vigor.
Fundamentos jurídico-técnicos essenciais (base renomeada)
- Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB (1992): arts. 1 (objetivos), 8 (conservação in situ), 9 (ex situ), 15 (acesso a recursos genéticos), 16–18 (tecnologia e cooperação).
- Protocolo de Cartagena (2000): Acordo Fundamentado Prévio, avaliação de risco e regras de movimentação de OVM.
- Protocolo de Nagoya (2010): PIC, TMA, pontos de verificação, certificado de conformidade e proteção de conhecimento tradicional.
- CITES (1973): Anexos I–III, licenças e parecer de extração não prejudicial para comércio de espécies.
- Ramsar (1971): conservação e uso racional de zonas úmidas de importância internacional.
- ITPGRFA/FAO (2001): sistema multilateral de acesso e repartição para recursos fitogenéticos de alimentação e agricultura.
- BBNJ (2023): biodiversidade em áreas além da jurisdição nacional (RMAs, AMP, AIA, capacidade) – pendente de entrada em vigor.
- Marco Global de Biodiversidade de Kunming–Montreal (2022): metas 2030 (30×30, restauração, invasoras, subsídios), indicadores e mecanismo para DSI.
- Interfaces com propriedade intelectual: TRIPS e Tratado da OMPI (2024) sobre PI, recursos genéticos e conhecimento tradicional – divulgação de origem em certos pedidos de patente.
Considerações finais
O direito internacional da biodiversidade é policêntrico e exige coordenação entre CDB/Protocolos, CITES, Ramsar, FAO e oceanos (UNCLOS/BBNJ). Para cumprir o GBF 2030, Estados e empresas precisam incorporar ABS aos fluxos de P&D e cadeias de suprimentos, ampliar áreas protegidas e restaurar ecossistemas, enquanto fortalecem dados, financiamento e observância contra biopirataria. Integração com clima, agricultura e comércio é decisiva para trajetórias nature-positive.
Aviso importante (elaboração da sua frase): Este conteúdo é informativo e não substitui a atuação de profissionais habilitados (advogado(a) ambiental, especialista em ABS/biossegurança e consultores técnicos). Cada projeto ou pesquisa envolvendo recursos genéticos e conhecimento tradicional exige análise jurídica, técnica e ética específica junto às autoridades competentes e às comunidades envolvidas.
