Competência da Justiça Federal em causas marítimas: saiba quando o foro é federal ou estadual
Panorama: quando a Justiça Federal julga causas marítimas no Brasil
O sistema brasileiro não possui cortes “admiralty” autônomas: os conflitos marítimos ingressam na Justiça Federal ou na Justiça Estadual conforme as regras constitucionais e legais de competência. O eixo básico está no art. 109 da Constituição, que atribui à Justiça Federal matérias em que haja União, autarquia ou empresa pública federal como parte, interesse federal direto, ou quando os fatos ocorrerem a bordo de navios (hipóteses penais), além de ações fundadas em tratados internacionais e em bens da União (mar territorial, plataforma continental, recursos naturais). No direito marítimo, isso se traduz em um conjunto recorrente de situações práticas — revisão de atos do Tribunal Marítimo, litígios envolvendo ANTAQ, derramamentos de óleo em águas da União, crimes a bordo, controvérsias sobre hipoteca naval e anulações de registros de embarcação.
- Parte federal em juízo: União, Marinha (União), ANTAQ, IBAMA, ICMBio, Petrobrás/empresas públicas federais → regra geral: Justiça Federal.
- Bens e áreas federais: mar territorial, plataforma continental, zona econômica exclusiva (ZEE), hidrovias federais, portos organizados → forte indicativo de competência federal.
- Revisão de atos federais: acórdãos do Tribunal Marítimo, autos de infração da ANTAQ/Marinha/IBAMA → Justiça Federal.
- Crimes a bordo de navios (ressalvada a Justiça Militar) → competência penal federal.
- Relações privadas sem interesse federal (ex.: afretamento entre particulares, avaria de carga entre privados, colisão em marina particular sem impacto federal) → em regra, Justiça Estadual.
Por outro lado, muitos conflitos de natureza contratual privada (afretamento, transporte de mercadorias, salvamento e assistência, avarias comuns, colisões entre embarcações privadas em águas interiores sem reflexos federais) costumam permanecer na Justiça Estadual, salvo se emergir um elemento federal (p. ex., auto de infração da ANTAQ questionado no mesmo processo, poluição em bem da União, ou intervenção da União/Autarquia).
Competência cível: hipóteses recorrentes na navegação
1) Revisão judicial de atos do Tribunal Marítimo (TM)
O TM é órgão administrativo, vinculado à Marinha (União), com jurisdição técnico-administrativa sobre acidentes e fatos da navegação, além de gerir o Registro de Propriedade Naval. Ações que visam anular ou revisar acórdãos do TM, impugnar atos registrais (propriedade, transferência, hipoteca naval) ou discutir penalidades administrativas impostas com base em lei federal são, por sua própria natureza, demandas contra ato federal, atraindo a competência da Justiça Federal.
2) Contencioso regulatório com a ANTAQ
A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) é autarquia federal que regula navegação de apoio, cabotagem, longo curso, terminais de uso privado e serviço portuário. Autos de infração, multas, embargos, exigências contratuais e licitações federais portuárias são passíveis de controle judicial perante a Justiça Federal, pois se trata de entidade federal e de aplicação de normas federais.
3) Danos ambientais no mar territorial, ZEE e áreas portuárias federais
O mar territorial, a plataforma continental e a ZEE são bens da União. Ações civis públicas por derramamento de óleo, danos à biota marinha e contaminação em terminais sob jurisdição federal, movidas por MPF ou por autarquias federais (IBAMA, ICMBio), tendem a ser julgadas na Justiça Federal. O mesmo vale para discussões sobre planos de contingência, multas ambientais federais e responsabilidade objetiva do poluidor.
4) Registro naval, hipoteca e garantias reais
Inscrições, averbações e cancelamentos no registro do TM são atos administrativos federais. Conflitos que envolvam prioridade de hipoteca naval, nulidade de registro, concurso de credores com oponente estrangeiro (tratado) ou discussão sobre penhora de embarcação registrada frequentemente ingressam na Justiça Federal, sobretudo quando há ato ou omissão do órgão registral.
- Existe ato administrativo da Marinha/TM/ANTAQ/IBAMA a ser impugnado?
- Há bens da União diretamente afetados (mar territorial/ZEE/plataforma)?
- Participa União, autarquia ou empresa pública federal como parte?
- Há tratado/convenção internacional cujo cumprimento pela União seja o cerne da controvérsia?
Competência penal: crimes a bordo de navios
O art. 109, IX, da Constituição prevê competência penal federal para crimes a bordo de navios (ressalvada a Justiça Militar quando a conduta recair sobre bens/serviço/força armada em situação castrense). Em hipóteses como tráfico transnacional, contrabando, poluição, crimes contra a segurança do transporte marítimo, a persecução penal costuma ser federal, especialmente quando a embarcação está em alto-mar ou em águas sob jurisdição da União e há interesse direto federal.
Relações privadas: quando a competência é estadual (e as exceções)
Contratos de afretamento, transporte e assistência e salvamento entre particulares, litígios por avarias em cargas entre transportador e embarcador, ou colisão entre lanchas de recreio em marina privada, em regra, tramitam na Justiça Estadual. Duas exceções aparecem com frequência: (i) quando há litisconsórcio ou intervenção de autarquia/União; (ii) quando a controvérsia depende diretamente de ato administrativo federal (p. ex., embargo regulatório da ANTAQ que inviabilizou o contrato).
- Mapeie partes e intervenientes (há ente federal?).
- Identifique local e bem atingidos (mar territorial/ZEE/porto organizado?).
- Verifique atos administrativos (TM, Marinha, ANTAQ, IBAMA).
- Avalie se o pedido exige anular/modificar ato federal.
Competência e cooperação institucional
Tribunal Marítimo x Poder Judiciário
O TM não integra o Judiciário; seu papel é técnico-administrativo. Assim, ações de reparação civil ou anulação de penalidades podem ser ajuizadas no Judiciário sem prejuízo da tramitação no TM. Na prática, decisões do TM têm alto valor probatório em demandas federais e estaduais, sendo comum a Justiça citar suas conclusões técnicas.
Agências e órgãos ambientais
Em derramamentos de óleo e infrações ambientais em área federal, coexistem esfera administrativa (autos de IBAMA/ANTAQ/Marinha), cível (reparação de danos e ACP) e, eventualmente, penal. A Justiça Federal costuma centralizar as ações quando há interesse jurídico da União e seus órgãos.
Competência internacional e tratados
Litígios que envolvam execução de cartas rogatórias, cumprimento de convenções internacionais (ex.: CLC e Fund em poluição por óleo, quando internalizadas), ou questões contratuais em que a União seja parte em contrato/título com Estado estrangeiro podem deslocar a competência para a Justiça Federal. Já disputas puramente privadas com elemento estrangeiro, mas sem ente federal, seguem a regra processual comum com competência estadual, ressalvadas cláusulas de eleição de foro e instrumentos de arbitragem.
Roteiro prático para escolher o foro
- Passo 1 — Partes: se há União, autarquia ou empresa pública federal, via de regra o foro é federal.
- Passo 2 — Objeto: o pedido alcança anulação/revisão de ato do TM/Marinha/ANTAQ/IBAMA? → indica foro federal.
- Passo 3 — Local: o dano ocorreu em bem da União (mar territorial, ZEE, porto organizado)? → propensão a federal.
- Passo 4 — Penal: crime a bordo de navio? → competência penal federal (ressalvas militares).
- Passo 5 — Privado puro: contrato entre particulares sem reflexos federais → tendência estadual.
Conclusão
A competência da Justiça Federal em causas marítimas nasce, sobretudo, da presença de interesse federal direto, de atos administrativos federais a controlar, do lugar do dano (bens da União) e das hipóteses penais a bordo. Quando o litígio é estritamente privado e sem impacto em bens/atos federais, a competência permanece com a Justiça Estadual. Uma triagem jurídica criteriosa — partes, pedido, bem atingido e normas incidentes — reduz riscos de incompetência absoluta, evita litispendências inúteis, acelera a tutela efetiva e confere previsibilidade a armadores, terminais, afretadores, P&I Clubs e seguradoras. Em um setor de alto risco operacional e alto custo de sinistros, escolher corretamente o foro é tão estratégico quanto navegar com segurança.
Guia rápido — Competência da Justiça Federal em causas marítimas
- Quando vai para a Justiça Federal: (i) há União, autarquia ou empresa pública federal em qualquer polo; (ii) o pedido busca anular/rever ato federal (acórdão do Tribunal Marítimo, auto da ANTAQ, IBAMA, Marinha); (iii) dano/infração recai sobre bens da União (mar territorial, ZEE, plataforma continental, porto organizado/hidrovia federal); (iv) crimes a bordo de navios (ressalvas militares).
- Quando tende a ser Estadual: litígios privados (afretamento, transporte, colisão entre particulares em marina) sem ato ou interesse federal direto.
- Chaves práticas: mapear partes, pedido, bem atingido e ato administrativo questionado. Isso define o foro com segurança.
FAQ
O que faz a ação ir, de fato, para a Justiça Federal?
A presença de ente federal (União/Marinha/ANTAQ/IBAMA) como parte ou a necessidade de controle judicial de ato federal (ex.: acórdão do Tribunal Marítimo, multa da ANTAQ/IBAMA) já atraem a competência federal. Também pesam danos em bens da União ou discussões fundadas em tratados internacionais internalizados.
Acidentes e fatos da navegação decididos pelo Tribunal Marítimo podem ir ao Judiciário?
Sim. O Tribunal Marítimo é órgão administrativo técnico; suas decisões têm alto valor probatório, mas podem ser revistas na Justiça Federal quando se pede a anulação/reforma do ato.
Derramamento de óleo no mar cai em qual foro?
Em regra, na Justiça Federal, pois o mar territorial, a ZEE e a plataforma continental são bens da União. Normalmente atuam MPF, IBAMA e Marinha, com base em legislação federal ambiental e de tráfego aquaviário.
E contratos privados de afretamento e transporte?
Ficam, via de regra, na Justiça Estadual, salvo se houver ato/parte federal ou impacto direto em bem da União (p. ex., embargo da ANTAQ que inviabilizou a execução contratual).
Fundamentos normativos essenciais (base de referência)
- Constituição Federal, art. 109 — competência da Justiça Federal (entes federais em juízo; crimes a bordo de navios; bens e interesses da União).
- Lei nº 2.180/1954 — organiza o Tribunal Marítimo e o Registro de Propriedade Naval.
- Lei nº 10.233/2001 — cria e estrutura a ANTAQ (regulação e fiscalização aquaviária).
- Lei nº 9.537/1997 (LESTA) e Decreto nº 2.596/1998 — segurança do tráfego aquaviário e competências da Autoridade Marítima.
- Lei nº 8.617/1993 — define mar territorial, ZEE e plataforma continental como bens da União.
- Lei nº 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente) e Lei nº 9.605/1998 (Crimes Ambientais) — responsabilidade por poluição hídrica.
- Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) — procedimentos técnicos e de apuração de sinistros (interface com TM e Marinha).
- CPC, regras gerais de competência e controle de atos administrativos (aplicação subsidiária).
- Há União/Autarquia/Empresa pública federal na lide?
- O pedido anula/revê ato federal (TM, ANTAQ, IBAMA, Marinha)?
- O dano/infração ocorreu em bem da União (mar territorial/ZEE/porto organizado)?
- Existe tratado/convenção com cumprimento a cargo da União?
- Se todas as respostas forem negativas e o litígio for privado, a tendência é foro Estadual.
Incidência qualitativa de competência federal por tema (ilustrativo)
Considerações finais
A definição do foro em disputas marítimas depende menos da “matéria marítima” e mais da presença de interesse federal direto, do controle de atos administrativos federais e do bem jurídico atingido. Identificar com precisão esses vetores evita nulidades por incompetência absoluta, encurta o tempo do litígio e melhora a estratégia processual de armadores, terminais, afretadores, seguradoras e P&I Clubs. Em paralelo, decisões técnicas do Tribunal Marítimo e normas da Autoridade Marítima costumam orientar a solução judicial, seja no foro federal, seja no estadual.
Este conteúdo tem caráter informativo e educacional. Ele não substitui a análise individual do seu caso por um(a) advogado(a) com experiência em direito marítimo e regulatório, que poderá avaliar documentos, riscos e estratégias adequadas ao seu contexto.
