Negativa de cobertura em planos de saúde: entenda o que diz a jurisprudência brasileira
Panorama jurídico da negativa de cobertura em planos de saúde
A negativa de cobertura por operadoras de planos de saúde ocupa espaço central na judicialização da saúde suplementar no Brasil. A discussão envolve a hierarquia entre normas regulatórias da ANS, o alcance do Código de Defesa do Consumidor (CDC), a força dos precedentes do STJ/STF e a observância de prescrições médicas diante de cláusulas limitativas. A jurisprudência atual revela parâmetros relativamente consolidados: (i) o rol da ANS não esgota, por si, as coberturas possíveis; (ii) a recusa deve ser tecnicamente fundamentada e não pode contrariar, sem justificativa idônea, a indicação do médico assistente; (iii) cláusulas que limitam tempo de internação, impõem carências abusivas em urgência/emergência ou excluem tratamentos essenciais (como home care) tendem a ser reconhecidas como abusivas; e (iv) persiste a exceção de autogestão quanto à incidência do CDC.
Rol da ANS, Lei 14.454/2022 e critérios recentes
Após debates intensos sobre a natureza do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, sobreveio a Lei 14.454/2022, que fixou diretrizes para a cobertura de terapias e exames fora do rol, estabelecendo parâmetros como existência de comprovação de eficácia, recomendação por agência de saúde internacional e adequação ao caso clínico. Em complemento, decisões recentes no âmbito constitucional consolidaram critérios objetivos para autorizações judiciais em hipóteses extrarrol, exigindo que o magistrado verifique pertinência clínica, evidências científicas e a inexistência de substituto terapêutico disponível no rol quando cabível.
CDC, exceção de autogestão e consequências
Predomina a aplicação do CDC aos contratos de plano de saúde, com exceção para operadoras de autogestão. Na prática, isso significa controle mais rigoroso das cláusulas abusivas, ônus argumentativo reforçado para a operadora e interpretação pro consumidor em casos de dúvida. Em autogestão, o debate tende a se concentrar mais na literalidade contratual e na regulação setorial, sem afastar, porém, os direitos fundamentais à saúde e à vida quando demonstrada urgência terapêutica.
Súmulas e teses-chave do STJ
Limitação de internação
É abusiva a cláusula que limita tempo de internação hospitalar. O entendimento, de longa data, rechaça prazos máximos (p.ex., “X dias de UTI”), pois a duração do tratamento decorre de critério exclusivamente médico.
Urgência e carência
Cláusulas de carência não prevalecem em urgência/emergência após 24 horas da contratação: superado esse marco, recusar cobertura tende a ser considerado ilícito. Esse ponto se repete em tribunais estaduais e na doutrina aplicada ao setor.
Doença preexistente
A recusa por doença preexistente exige exames prévios e/ou prova de má-fé do beneficiário. Sem esses elementos, a negativa costuma ser afastada. Não basta afirmar preexistência de modo genérico; é preciso demonstrar que houve dissimulação consciente e que a operadora adotou subscrição adequada.
Home care
Em regra, a operadora não pode excluir home care quando indicado como substituto da internação. A jurisprudência do STJ é constante: o plano pode definir doenças cobertas, mas não o tipo de tratamento necessário à cura/controle. Decisões recentes reforçam que é indevida a redução unilateral do home care sem indicação médica.
- CDC aplicável (salvo autogestão).
- Internação: vedada limitação temporal.
- Urgência: carência não impede cobertura após 24h.
- Preexistência: exige exames prévios/demonstração de má-fé.
- Home care: coberto quando substitui internação e houver indicação médica.
Documentos e provas: como estruturar o caso
- Relatório do médico assistente com CID, justificativa clínica, alternativas tentadas, riscos de não tratamento e ineficácia de substitutos.
- Negativa formal (protocolo, e-mail, NIP/ANS) explicitando a causa da recusa (rol, rede, carência, preexistência, diretriz, etc.).
- Diretrizes clínicas nacionais/internacionais e literatura científica que sustentem o procedimento/exame.
- Orçamentos, disponibilidade de rede, tempo de espera e eventual risco de dano irreparável para fins de tutela de urgência.
Fluxo prático: antes e depois da negativa
- Solicitar pela rede com documentação clínica completa.
- Se negado, registrar NIP/ANS (intermediação preliminar) e guardar o número do protocolo.
- Persistindo a recusa, avaliar ação com tutela de urgência (especialmente em oncologia, terapias de alto custo, UTI/UTQ ou dor refratária).
- Em autogestão, redobrar a prova contratual e clínica; ainda assim, decisões protetivas são possíveis quando evidenciado risco grave.
Indicadores e tendência de litigiosidade
Relatórios públicos indicam volumosa demanda administrativa (NIP/ANS) e crescimento expressivo da judicialização nos últimos anos, com destaque para ações contra operadoras de saúde suplementar. Mesmo com oscilações recentes nas reclamações administrativas, o volume total de disputas permanece elevado no contencioso judicial.
≈156k
≈193k
≈160k
Observação: valores aproximados a partir de painéis/relatórios públicos; 2025 refere-se ao acumulado até junho.
Casos recorrentes de negativa e como os tribunais decidem
- Exame/terapia “fora do rol”: possível deferimento se há evidência científica, indicação médica e inexistência de substituto adequado no rol.
- Home care como substituição da internação: tendência de condenar negativas e vedar redução unilateral sem base clínica.
- Medicamentos oncológicos e off-label: exigem lastro probatório (estudos, diretrizes, pareceres). Quanto maior a robustez científica, maior a chance de deferimento.
- Rede indisponível/tempo de espera excessivo: autorizam reembolso integral ou atendimento fora da rede quando demonstrado risco de agravamento.
Conclusão
A jurisprudência converge para um núcleo comum: não se admite negativa automática ou genérica. A análise deve ser clínica e individualizada, aberta a técnicas contemporâneas e pautada por evidência científica, sobretudo quando há risco à vida ou à função. Em juízo, prevalecem precedentes que proíbem limitar internação, restringir urgência por carência além de 24h, excluir home care quando substitutivo da internação e recusar por preexistência sem a devida subscrição médica prévia. Para os beneficiários, a chave é documentar e fundamentar tecnicamente o pedido; para as operadoras, motivar com precisão e observar a RN 623/2024 e os critérios legais/jurisprudenciais vigentes, evitando contencioso e danos reputacionais.
Guia rápido
- Rol da ANS: é referência mínima de cobertura, não limite absoluto.
- Negativa de cobertura: só é válida se houver fundamento técnico e legal claro, nunca genérico.
- Urgência e emergência: a carência não pode impedir atendimento após 24 horas da contratação.
- Home care: deve ser autorizado quando substitui internação hospitalar, conforme indicação médica.
- Preexistência: exige exames prévios e prova de má-fé do segurado para recusa legítima.
- Dano moral: ocorre quando a recusa causa agravamento da saúde ou sofrimento desnecessário.
FAQ
O plano pode negar tratamento fora do rol da ANS?
Não automaticamente. Desde a Lei nº 14.454/2022, o rol da ANS é exemplificativo. O procedimento deve ser coberto se houver comprovação científica de eficácia, recomendação médica e inexistência de substituto terapêutico adequado no rol. A negativa sem essa análise individualizada é considerada abusiva pela jurisprudência.
O que fazer diante de uma negativa de cobertura?
O primeiro passo é solicitar a negativa por escrito e registrar reclamação na ANS (NIP). Em casos urgentes, é possível ingressar com ação judicial com pedido de tutela de urgência. O paciente deve apresentar laudo médico detalhado e comprovação do risco de dano à saúde.
Negativa por doença preexistente é válida?
Somente se a operadora comprovar que o beneficiário sabia da condição e omitiu dolosamente, e que foram realizados exames prévios no ato da contratação. Sem esses elementos, o STJ entende que a recusa é abusiva e que o tratamento deve ser autorizado.
Quando há direito a indenização por danos morais?
Quando a negativa de cobertura causa agravamento da saúde, atraso em tratamento essencial ou sofrimento físico e emocional. Os tribunais costumam reconhecer o dano moral nesses casos, especialmente em situações de urgência médica ou internação indevidamente recusada.
Fundamentação jurídica essencial
- Lei nº 9.656/1998 — regula os planos de saúde e define coberturas obrigatórias.
- Lei nº 14.454/2022 — estabelece critérios para cobertura de procedimentos fora do rol da ANS.
- Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) — aplica-se aos contratos de plano de saúde, exceto autogestão.
- Resoluções da ANS (RN 465/2021 e RN 623/2024) — tratam da cobertura mínima e dos direitos dos beneficiários.
- Súmulas do STJ:
- 302: é abusiva a limitação de tempo de internação hospitalar.
- 608: aplica-se o CDC aos planos de saúde, salvo autogestão.
- 597: é abusiva a carência superior a 24 horas em casos de urgência.
- 609: negativa por doença preexistente só é válida com exame prévio e má-fé comprovada.
Considerações finais
A jurisprudência tem reforçado que a recusa injustificada de cobertura médica fere o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana. O beneficiário deve reunir documentos, relatórios médicos e provas da necessidade do tratamento para fortalecer eventual ação judicial. Por outro lado, as operadoras devem aprimorar seus critérios técnicos e adotar práticas transparentes, evitando decisões padronizadas e sem fundamentação clínica adequada.
As informações aqui apresentadas têm caráter educativo e não substituem a orientação individual de um profissional jurídico especializado. Cada caso deve ser analisado segundo suas particularidades contratuais e médicas.
