Direito militar

Competência da Justiça Militar Estadual e Federal: entenda quem julga o quê no Brasil

Panorama geral: onde termina a Justiça Militar Estadual e onde começa a Justiça Militar Federal

A Constituição Federal de 1988 desenha dois ramos judicial-militares distintos no Brasil: a Justiça Militar da União (JMU), de competência federal, e as Justiças Militares Estaduais (JME), vinculadas aos Estados (e ao DF, por simetria). A distinção central não é apenas geográfica: é orgânica (quem julga) e material (o que se julga). Em linhas muito objetivas: a JMU, prevista no art. 124 da CF, processa e julga os crimes militares praticados por militares das Forças Armadas e, em hipóteses legais, por civis; já a JME, tratada no art. 125, §3º e §4º, processa e julga os militares dos Estados (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares) nos crimes militares e nas ações judiciais contra atos disciplinares militares, com a ressalva de que crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar estadual são de competência do Tribunal do Júri.

Mapa mental rápido

  • JMU (Federal) – base: art. 124 CF + CPM, art. 9º (com a redação da Lei 13.491/2017). Órgãos: STM (2º grau) e Auditorias/Justiça Militar de 1º grau (juízes federais da JM e Conselhos de Justiça). Julga militares das Forças Armadas e certas hipóteses envolvendo civis. Em operações de GLO, crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militares das Forças Armadas são da JMU (art. 9º, §2º, CPM).
  • JME (Estadual) – base: art. 125, §3º e §4º CF + CPM, art. 9º (aplicável aos militares estaduais). Julga PMs e BMs nos crimes militares e ações contra atos disciplinares. Exceção: crimes dolosos contra a vida de civil vão ao Tribunal do Júri (mesmo praticados em serviço).

Conceito legal de “crime militar” e a virada de chave da Lei 13.491/2017

Não basta o agente ser militar para incidir a jurisdição militar: é preciso que a conduta seja crime militar. O conceito está no art. 9º do Código Penal Militar (CPM), que, após a Lei 13.491/2017, passou a abranger também crimes previstos na legislação penal comum quando praticados em circunstâncias estritamente militares (por exemplo, em serviço, em local sujeito à administração militar, em razão da função ou em operações de natureza militar). Em resumo, hoje existem três camadas:

  • Crimes tipificados no próprio CPM (p. ex., deserção, insubordinação, desrespeito a superior, violência contra inferior, homicídio militar em serviço, etc.).
  • Crimes comuns militarizados pela lei (p. ex., furto, peculato, lesão corporal, homicídio, estelionato), desde que presentes as hipóteses do art. 9º, II, do CPM (nexo funcional, lugar, serviço, missão etc.).
  • Competência excepcional: crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militares das Forças Armadas em operação GLO (ou assemelhadas) vão para a JMU; mas quando o autor é militar estadual (PM/BM), o Tribunal do Júri permanece competente (art. 125, §4º, CF).
Impacto prático da Lei 13.491/2017: ampliou o leque de situações em que a Justiça Militar julga crimes “comuns” praticados sob circunstância militar (o que elevou relevância da prova sobre nexo funcional e contexto de serviço). Em contrapartida, dolosos contra a vida de civil por PM/BM continuam no Júri; por militar das Forças Armadas em GLO migram à JMU.

Justiça Militar da União (Federal): órgãos, alcance e limites

A JMU é ramo especializado do Poder Judiciário da União. Sua estrutura está no art. 124 CF e na legislação de organização judiciária militar. Em primeiro grau, atuam juízes federais da Justiça Militar e os Conselhos de Justiça (permanentes e especiais); em segundo grau, o Superior Tribunal Militar (STM). O Ministério Público Militar oficia como titular da ação penal e a Defensoria Pública da União presta assistência gratuita ao acusado que não possua advogado.

O que a JMU julga

  • Crimes militares cometidos por militares das Forças Armadas (ativos e, em hipóteses legais, inativos) e por civis em situações previstas (p. ex., crime cometido contra as instituições militares em área sob administração militar, ou coautoria com militar em serviço, entre outras hipóteses do art. 9º, III, CPM).
  • Dolosos contra a vida de civil praticados por militar das Forças Armadas em GLO ou missões equivalentes (CPM, art. 9º, §2º).
  • Habeas corpus e medidas correlatas no âmbito de sua competência penal; incidentes de execução penal militar.

O que a JMU não julga

  • Crimes comuns sem nexo com a função/serviço (art. 9º CPM não configurado).
  • Crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militares estaduais: ficam no Júri estadual (art. 125, §4º, CF).
  • Ações cíveis/administrativas não previstas (p. ex., atos disciplinares de PM/BM: competência é da JME, não da JMU).
Composição resumida: 1º grau – Auditorias com Juiz Federal da JM e Conselhos (juiz togado + oficiais). 2º grau – STM (Ministros militares e civis). Ministério Público Militar e DPU atuam em seus respectivos papéis constitucionais.

Justiça Militar Estadual: regras constitucionais, modelos e especialidades

Nos Estados, a Constituição (art. 125, §3º) autoriza a instituição da Justiça Militar Estadual, com competência para processar e julgar os militares dos Estados nos crimes militares definidos em lei. O mesmo dispositivo (art. 125, §4º) atribui à Justiça Militar Estadual a competência para julgar as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvado que os crimes dolosos contra a vida de civil são da competência do Tribunal do Júri.

Organização típica

  • 1º grau: Juízes de Direito do Juízo Militar e Conselhos de Justiça (mistos: juiz togado + oficiais), a depender do estado.
  • 2º grau: nos estados que possuem Tribunal de Justiça Militar (TJM), este julga em segundo grau; nos demais, a função é exercida por Câmaras Criminais especializadas do Tribunal de Justiça.
  • Ministério Público Estadual atua perante a JME; a Defensoria Pública do Estado ou dativos prestam assistência aos réus hipossuficientes.
Diferencial da JME: além do processo penal militar (crimes militares de PMs/BMs), a Constituição confere a ela, de forma expressa, a competência para julgar ações contra atos disciplinares (ex.: punições, licenças, exclusões por transgressão disciplinar), respeitada a vedação de análise do mérito do ato (sindicando legalidade e proporcionalidade).

Comparativo objetivo de competências

Tema Justiça Militar da União (JMU) Justiça Militar Estadual (JME)
Base constitucional Art. 124 CF Art. 125, §3º e §4º CF
Quem julga STM (2º grau); Juízes federais da JM e Conselhos (1º grau) TJM (onde houver) ou Câmaras do TJ; Juízes do Juízo Militar e Conselhos (1º grau)
Quem é julgado Militares das Forças Armadas e, em hipóteses legais, civis PMs e BMs (militares dos Estados)
Matéria penal Crimes militares (CPM, art. 9º, com Lei 13.491/2017). Em GLO, dolosos contra a vida de civil por FA → JMU Crimes militares (CPM, art. 9º). Dolosos contra a vida de civilTribunal do Júri
Matéria administrativa Sem competência típica para atos disciplinares de PM/BM Ações contra atos disciplinares militares (legalidade/procedimento)

Questões sensíveis de competência: pontos de atenção no dia a dia

1) Militar estadual em serviço pratica homicídio doloso contra civil

Apesar de o fato poder ocorrer “em serviço”, a Constituição é expressa: o Tribunal do Júri é competente para os crimes dolosos contra a vida de civil praticados por PM/BM (art. 125, §4º). A JME não julga essa hipótese. Eventual desclassificação (p. ex., para lesão corporal seguida de morte culposa, se reconhecida) pode gerar discussão de competência por conexão e “vis attractiva”.

2) Militar das Forças Armadas em GLO

Quando a Força Armada atua em Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou missão equivalente, crimes dolosos contra a vida de civil são de competência da JMU (CPM, art. 9º, §2º). Fora dessas hipóteses, aplica-se a regra geral do art. 9º e do art. 124, mantendo a JMU para crimes militares e a Justiça comum para crimes não militarizados.

3) Civis e coautoria

O art. 9º, III, CPM admite que civis sejam julgados na Justiça Militar quando o crime militar for praticado em coautoria com militar, ou contra patrimônio/administração militar, sob condições legais (p. ex., em local sujeito à administração militar). A controvérsia cotidiana está em provar o contexto militar para afastar a Justiça comum.

4) Ações contra atos disciplinares

A Constituição atribui à JME o julgamento das ações judiciais contra atos disciplinares (art. 125, §4º). A análise concentra-se na legalidade (competência da autoridade, devido processo, motivação, proporcionalidade), e não no mérito estrito da conveniência e oportunidade disciplinar.

Insight prático: a palavra-chave em competência penal militar é contexto. Para militarizar o crime comum (Lei 13.491/2017), a acusação precisa demonstrar nexo funcional, lugar ou circunstância de serviço. Sem isso, a causa retorna à Justiça comum.

Procedimento e atores: como os processos caminham

  • Investigação: pode envolver IPM (Inquérito Policial Militar) instaurado por autoridade militar; quando houver civil ou outras circunstâncias, pode haver cooperação com Polícia Civil/Federal.
  • Acusação: promovida pelo MP Militar (na JMU) ou pelo MP Estadual (na JME), conforme o caso.
  • Primeira instância: julgamento por juiz togado (federal/estadual do juízo militar) e, para crimes propriamente militares, com composição dos Conselhos de Justiça (participação de oficiais).
  • Segunda instância: STM (JMU) ou TJM/TJ (JME). Recursos extraordinários podem alcançar o STF (matéria constitucional) e o STJ (matéria infraconstitucional), a depender do tema.

Gráfico didático – onde mais surgem conflitos de competência (exemplo ilustrativo)

Os dados abaixo são meramente ilustrativos para visualização de risco – não representam estatística oficial.

Doloso contra a vida (PM/BM) – definição de júri x JME
Crimes “comuns militarizados” pós-Lei 13.491/2017
Coautoria com civil em área militar
Ações contra atos disciplinares (controle do mérito)

Cenários práticos resolvidos

A) Lesão corporal em abordagem policial militar, em serviço, contra civil

Se culposa, com nexo de serviço, tende a ser crime militar (JME). Se houver indícios de dolo e resultado morte, a competência pelo crime doloso contra a vida será do Tribunal do Júri. Havendo concurso de crimes, o juízo competente pelo crime doloso contra a vida atrai os conexos.

B) Peculato praticado em quartel do Exército

Com base no art. 9º do CPM, é crime militar e de competência da JMU. Se houver coautoria de civil em área sob administração militar, ele também poderá ser processado na Justiça Militar.

C) Oficial PM punido por transgressão disciplinar com afastamento

O controle judicial da legalidade do ato disciplinar é da JME (art. 125, §4º). Examina-se competência da autoridade, devido processo, motivação e proporcionalidade, sem adentrar o mérito discricionário.

D) Militar da Marinha em GLO com morte de civil por disparo

Em operação GLO, o CPM, art. 9º, §2º direciona a causa à JMU, afastando o Tribunal do Júri. A fase investigativa costuma ocorrer por IPM, com controle do MPM.

Boas práticas para evitar nulidades por incompetência

  • Delimite o contexto já no inquérito: lugar, hora, ordem de serviço, missão, vínculo funcional.
  • Registre a natureza da operação (ordinária, GLO, garantia da votação, defesa civil militarizada etc.).
  • Cheque o art. 9º do CPM para qualificar o tipo de crime militar (incisos I–III; §2º para GLO).
  • Verifique a vítima (civil x militar) e o resultado (doloso contra a vida → ver regra especial).
  • Em ações disciplinares, componha o processo administrativo com notificação válida, defesa, provas e motivação clara; o controle judicial incidirá sobre esses elementos.
Checklist de competência

  1. O agente é militar federal (FA) ou estadual (PM/BM)?
  2. O fato se amolda ao art. 9º do CPM (crimes militarizados)?
  3. civil vítima de crime doloso contra a vida? Então veja: FA em GLO → JMU; PM/BM → Júri.
  4. É ato disciplinar? → JME (controle de legalidade).
  5. Existe coautoria de civil e lugar militar? → avaliar hipóteses do art. 9º, III, CPM.

Conclusão

A separação entre Justiça Militar da União e Justiças Militares Estaduais é constitucionalmente precisa: a JMU (art. 124) tutela a disciplina e a hierarquia das Forças Armadas, processando crimes militares (em sentido amplo após a Lei 13.491/2017) e assumindo, em GLO, os dolosos contra a vida de civil; a JME (art. 125, §3º-§4º) tutela as instituições militares estaduais, julga crimes militares de PM/BM e as ações contra atos disciplinares, mas remete ao Tribunal do Júri os dolosos contra a vida de civil. Na prática, a chave da competência é o contexto fático que militariza (ou não) a conduta: nexo funcional, missão, local e vítima. Equipes que documentam esses elementos desde a investigação reduzem conflitos de foro, evitam nulidades e concentraram o processo no órgão constitucionalmente habilitado a decidir.

Aviso importante: este material é informativo e não substitui a análise personalizada de profissional habilitado. A aplicação dos arts. 124 e 125 da Constituição, do CPM (art. 9º) e da Lei 13.491/2017 depende do caso concreto, de provas sobre o contexto do fato, de normas estaduais de organização judiciária e de precedentes dos Tribunais Superiores.

Guia rápido

  • Quem julga o quê: a Justiça Militar da União (JMU) julga crimes militares envolvendo militares das Forças Armadas e, em hipóteses legais, civis. As Justiças Militares Estaduais (JME) julgam PMs/BMs nos crimes militares e ações contra atos disciplinares.
  • Doloso contra a vida de civil: por PM/BM vai ao Tribunal do Júri (competência constitucional). Por militar das Forças Armadas em GLO vai à JMU.
  • Crime militar: definido no art. 9º do CPM. Após a Lei 13.491/2017, certos crimes comuns viram militares quando praticados em contexto/serviço militar.
  • Chaves de competência: agente (FA x PM/BM), vítima (civil x militar), contexto (serviço, lugar militar, missão), e natureza do resultado (doloso contra a vida).

FAQ

1) PM em serviço comete homicídio doloso contra civil. Vai para a Justiça Militar?

Não. A Constituição determina que crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar estadual são julgados pelo Tribunal do Júri. A JME não é competente para essa hipótese.

2) Soldado do Exército, em GLO, causa morte dolosa de civil. Quem julga?

Nessa situação específica, a competência é da Justiça Militar da União, pois o CPM, art. 9º, §2º atrai o caso para a JMU quando o fato ocorre em operação de Garantia da Lei e da Ordem ou missão equivalente.

3) Crime de peculato em quartel da Aeronáutica com coautoria de civil. Fica onde?

Em regra, é crime militar por ocorrer em área sob administração militar e com nexo de serviço. A competência é da JMU; o civil coautor pode ser processado na Justiça Militar conforme o art. 9º, III, do CPM.

4) Policial militar questiona punição disciplinar. Qual justiça aprecia?

As ações contra atos disciplinares de PM/BM são apreciadas pela Justiça Militar Estadual. O controle é de legalidade (devido processo, competência, motivação, proporcionalidade), não do mérito disciplinar.

Caderno normativo essencial (bases legais comentadas)

  • CF/88, art. 124 — institui a Justiça Militar da União e sua competência penal sobre crimes militares envolvendo militares das Forças Armadas.
  • CF/88, art. 125, §3º e §4º — define a Justiça Militar Estadual, sua competência para crimes militares de PM/BM e para ações contra atos disciplinares; fixa a competência do Tribunal do Júri para crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar estadual.
  • CPM, art. 9º — conceitua crime militar. Após a Lei 13.491/2017, abrange também crimes comuns quando praticados em contexto militar (nexo funcional, lugar sujeito à administração militar, serviço, missão etc.).
  • CPM, art. 9º, §2º — em GLO ou missões equivalentes, dolosos contra a vida de civil praticados por militares das Forças Armadas são de competência da JMU.
  • Organização judiciária — JMU: Auditorias (1º grau) e STM (2º grau). JME: Juízos militares e Conselhos em 1º grau; TJM (onde instituído) ou câmaras especializadas do TJ em 2º grau.
Como usar as fontes: identifique agente, vítima, local/serviço e missão. Aplique o art. 9º do CPM para “militarizar” (ou não) o fato; verifique as cláusulas constitucionais dos arts. 124 e 125 para definir a justiça competente; em GLO, observe o §2º.

Considerações finais

A linha que separa a competência da Justiça Militar da União e das Justiças Militares Estaduais é constitucionalmente nítida, mas a prática exige atenção ao contexto fático (nexo de serviço, lugar, missão e vítima). A JMU concentra-se nos fatos ligados às Forças Armadas e, em GLO, julga o doloso contra a vida de civil; a JME tutela a disciplina de PMs/BMs, julga seus crimes militares e as ações disciplinares, remetendo ao Júri os crimes dolosos contra a vida de civil. A correta qualificação já no inquérito evita nulidades, duplica a eficiência e assegura o julgamento pelo órgão constitucionalmente designado.

Aviso importante: este conteúdo é informativo e não substitui a análise individualizada de profissional habilitado. A definição da justiça competente depende do caso concreto, da prova do contexto militar, das normas de organização judiciária e de precedentes dos Tribunais Superiores. Procure orientação técnica antes de tomar decisões processuais.

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