Crimes Contra a Fauna: Entenda as Penalidades por Caça, Pesca e Tráfico de Animais Silvestres
Panorama e bem jurídico protegido
Os crimes contra a fauna — com destaque para caça, pesca e tráfico de animais — integram o núcleo mais conhecido da tutela penal ambiental no Brasil. O bem jurídico protegido é a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas, dimensão concreta do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado insculpido no art. 225 da Constituição. A resposta normativa combina sanções penais e administrativas (Lei nº 9.605/1998 e regulamentos como o Decreto nº 6.514/2008), instrumentos civis de reparação integral do dano e políticas de conservação (SNUC, planos de manejo, defesos e listas oficiais de espécies ameaçadas).
Além do aspecto ecológico, a política criminal da fauna responde a outros vetores: saúde pública (zoonoses e risco sanitário), economia (pressão sobre cadeias produtivas, turismo, pesca artesanal) e ética (proibição à crueldade, inclusive com animais domésticos e exóticos). O sistema de controle articula licenciamento, autorizações, rastreabilidade (anilhas, microchips, DOF para produtos florestais correlatos) e fiscalização por órgãos federais, estaduais e municipais.
Arquitetura legal essencial
Lei de Crimes Ambientais
A Lei nº 9.605/1998 tipifica, entre os arts. 29 a 37, condutas contra a fauna: matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar, manter em cativeiro ou comercializar espécimes de fauna silvestre sem autorização; caça profissional; crimes de pesca em período/lugar proibidos ou com aparelhos vedados; e figuras ligadas a produtos e objetos da fauna. O art. 32 destaca a vedação a abuso e maus-tratos a animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Para a pesca, os tipos mais citados na prática forense são os dos arts. 34 e 35 (pesca proibida e uso de explosivos/substâncias tóxicas).
Responsabilização de pessoas jurídicas
Admite-se responsabilização penal da pessoa jurídica quando a infração resulta de decisão de seu representante legal ou órgão colegiado, no seu interesse ou benefício, sem excluir a responsabilização de pessoas físicas. As sanções incluem multas, suspensão de atividades, interdição, proibição de contratar com o Poder Público, prestação de serviços à comunidade e, em casos extremos, dissolução compulsória.
Normas complementares e listas
- Defesos e portarias dos órgãos pesqueiros: definem períodos de proibição, cotas e apetrechos permitidos por bacia hidrográfica/espécie.
- Listas oficiais de espécies ameaçadas e CITES (comércio internacional), relevantes para agravar a resposta e orientar licenças de importação/exportação.
- Regras de rastreio: anilhas oficiais e microchips (criadouros autorizados) e autorizações de transporte; ausência usualmente evidencia origem ilícita.
Caça: tipicidade, exceções e agravantes
Condutas nucleares
É crime matar, perseguir, caçar, apanhar ou utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem permissão, licença ou em desacordo com a obtida. A tipicidade alcança não apenas a captura direta, mas também preparos e instrumentos (armadilhas, redes, laços, esperas) que evidenciam o intento de caça.
Excludentes legais e tolerâncias controladas
- Autorização específica de órgão competente para controle de fauna sinantrópica nociva (ex.: javalis) e fins científicos, com requisitos estritos.
- Estado de necessidade é tese excepcional e exige prova de imediata proteção a direito próprio/terceiro, não se confunde com subsistência genérica.
- Caça profissional é expressamente proibida e possui tratamento penal mais severo.
Elementos de prova usuais
- Materialidade: animais abatidos/vivos, partes (penas, couro), armas e armadilhas; laudos de necropsia e balística.
- Local: unidades de conservação e APP agravam a resposta; georreferenciamento demonstra zona de proteção.
- Fluxo econômico: mensagens e registros que indiquem comercialização (cardápios, encomendas, valores).
- Uso de petrechos proibidos e prática em UC ou defeso reprodutivo elevam gravidade.
- Preparação de área (cevas, esperas, trilhas) costuma caracterizar dolo.
- Comércio de carne de caça fecha cadeia com receptação e pode atrair outros tipos penais.
Pesca: períodos, petrechos e locais proibidos
Tipicidade básica
É crime pescar em período no qual a pesca é proibida (defeso), em local interditado por órgão competente, com aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos ou em quantidade superior à legalmente admitida. A lei ainda tipifica a pesca com explosivos ou substâncias tóxicas, condutas de elevado potencial lesivo por afetarem múltiplas espécies e estágios de vida.
Exemplos de apetrechos vedados
- Redes de emalhe acima do limite de malhagem e tarrafas em áreas restritas.
- Espinhéis e covos em trechos críticos; choque elétrico e substâncias como cal e óleo.
- Arrasto em áreas costeiras e estuarinas de berçário.
Provas e parâmetros técnicos
- Medidas de malhagem, comprimento do pescado e biometria (tamanho mínimo legal).
- Geolocalização (GPS/AIS) e mapas de áreas interditadas (UCs marinhas, desembocaduras, eclusas).
- Licenças (pescador amador/profissional) e anotações de bordo para embarcações.
- Defeso é critério objetivo de tipicidade: capturas nesse período tendem a ensejar apreensão de embarcação e petrechos.
- A seleção de apetrechos é central: uso de método não seletivo aumenta dano e agrava a resposta.
- Comunidades tradicionais devem observar regras locais de co-gestão e autorizações específicas.
Tráfico de animais silvestres: cadeia, rotas e documentos
Modus operandi
O tráfico de fauna envolve coleta ilegal, transporte, armazenamento e comercialização de espécimes vivos (aves canoras, répteis, primatas) e partes (penas, couro, ovos). No Brasil, o fluxo mais comum parte de biomas de alta biodiversidade (Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal) para centros urbanos e eixos rodoviários de exportação.
Indícios de origem ilegal
- Ausência de anilha oficial ou microchip e documentos de criadouro autorizado.
- Listagens com espécies ameaçadas ou com status de proteção especial.
- Transporte em condições cruéis (caixas, tubos, malas), com alta mortalidade.
Conexões normativas
Casos com exportação/importação acionam regras da CITES (permissões) e legislação aduaneira; o uso de documentos falsos e lavagem de capitais pode ser conexo quando há organização criminosa e reiteração.
- Rastreabilidade é pivô: sem anilha/microchip e nota fiscal idônea, presume-se origem ilícita.
- Laudos taxonômicos são indispensáveis para espécie e status de proteção.
- Integração entre órgãos (ambiental, Polícia, MP, Receita) aumenta a taxa de desarticulação de redes.
Agravantes, penas e alternativas penais
Critérios de gravidade
- Prática em unidade de conservação ou área de proteção; uso de métodos cruéis ou apetrechos proibidos.
- Envolvimento de espécies ameaçadas ou endêmicas; ocorrência em período de reprodução.
- Finalidade comercial (escala, lucro) e organização da atividade (cadeia estruturada).
Dosimetria e substituições
As penas combinam detenção/reclusão e multa, com possibilidade de substituição por restritivas de direitos (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária, custeio de projetos de conservação). Em crimes de menor potencial ofensivo, são aplicáveis transação penal e suspensão condicional do processo; havendo requisitos, admite-se acordo de não persecução penal (ANPP), com foco em reparação específica (reintrodução/rehabilitação, apoio a centros de triagem) e compliance.
- Extensão do dano (mortalidade, impacto populacional) e possibilidade de restauração.
- Vantagem econômica auferida e reincidência.
- Cooperação e adoção de medidas para cessar o dano ou soltar espécimes viáveis.
Fiscalização e prova: do flagrante ao relatório técnico
Autos e apreensões
A atuação administrativa (autos de infração, embargos, apreensão de petrechos, embarcações e animais) subsidia a esfera penal. A documentação deve preservar cadeia de custódia e registrar local/data, coordenadas, fotografias, vistorias e depoimentos.
Perícias e laudos
- Taxonomia (espécie, sexo, estágio de vida) e condição dos animais; para pesca, biometria e identificação de apetrechos.
- Laudos de crueldade/maus-tratos e de toxicologia quando houver substâncias.
- Geoprocessamento e imagens (drones, satélite) para delimitar áreas protegidas.
- Vincular a conduta ao resultado/risco e à ausência de autorização.
- Garantir bem-estar animal no resgate e encaminhamento a CETAS/CRAS.
- Registrar defeso e normas locais vigentes na data do fato.
Prevenção e compliance: reduzir risco antes do conflito
Setor privado e cadeias produtivas
- Due diligence de fornecedores (aves canoras, aquarismo, répteis, zoológicos, criadouros).
- Rastreabilidade com sistemas de anilhamento/microchip e conferência documental.
- Programas de educação ambiental e campanhas de consumo responsável.
Gestão pública e co-gestão
- Cooperação com comunidades tradicionais e fortalecimento de acordos de pesca.
- Monitoramento de rotas logísticas e feiras, inteligência para redes de tráfico.
- Integração com planos de manejo e fiscalização de UCs.
- Matriz de riscos por bioma e por operação (pesca, turismo, comércio de animais).
- Fluxo de licenças/autorização e atualização de defesos.
- Procedimentos de denúncia e resposta a incidentes envolvendo fauna.
Indicadores e visual simples (didático)
O gráfico de barras abaixo é ilustrativo (não representa dados oficiais). Útil para explicar a gestores a distribuição típica de autuações relacionadas à fauna.
Estudos de caso resumidos (aplicação prática)
Barco com pescado em defeso e malhagem irregular
Fato: captura durante defeso, redes fora do padrão e excedente de cota. Medidas: apreensão de pescado, petrechos e embarcação; auto de infração e notícia-crime; perícia biométrica. Resposta penal: crime de pesca proibida, com possibilidade de acordo condicionado a apoio a projetos de reprodução e campanhas educativas.
Feira com aves silvestres sem anilha
Fato: comercialização de aves canoras sem documentação. Medidas: fiscalização integrada, apreensão e encaminhamento a CETAS; identificação taxonômica. Resposta penal: crimes contra a fauna; apuração de rede logística e lavagem de capitais quando houver estrutura organizada.
Caça de subsistência alegada
Fato: abate em zona rural com armas e cevas. Análise: ausência de emergência e existência de meios alternativos afasta estado de necessidade. Resposta: responsabilização penal e administrativa, com possibilidade de pena restritiva direcionada à recomposição e educação ambiental.
“Base normativa comentada” (fauna, pesca e tráfico)
Constituição Federal, art. 225
Estabelece o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações e autoriza sanções penais e administrativas a condutas lesivas.
Lei nº 9.605/1998
Tipifica condutas contra a fauna entre os arts. 29 a 37; proíbe a caça profissional; veda maus-tratos (art. 32) e disciplina crimes de pesca proibida (com destaque para os arts. 34 e 35); admite responsabilização da pessoa jurídica e penas alternativas vinculadas à reparação.
Decreto nº 6.514/2008
Regulamenta as infrações administrativas, valores de multas, procedimentos de apreensão, interdição e embargo, e integra a prova para a esfera penal.
CITES e normativas pesqueiras
Acordo internacional que regula o comércio de espécies; portarias nacionais definem defesos, tamanhos mínimos e apetrechos por região/espécie, base para tipicidade.
Conclusão
A tutela penal da fauna é um eixo indispensável de política ambiental. Ao reprimir a caça, a pesca ilegal e o tráfico, o ordenamento não apenas pune condutas, mas desestimula mercados, preserva serviços ecossistêmicos e protege a função socioambiental da biodiversidade. A efetividade, contudo, depende da combinação entre fiscalização qualificada, prova técnica robusta, justiça consensual responsável e prevenção com educação e compliance. O caminho prático é integrar sanção, reparação e governança para reduzir pressões sobre populações silvestres e reverter danos com soluções baseadas na natureza.
Guia rápido
- Defina o foco: enquadre por caça, pesca (defeso, petrechos) ou tráfico de fauna (coleta, transporte, comércio).
- Cheque autorizações: licenças/portarias, anilha oficial ou microchip, documento de origem e área permitida.
- Colete prova técnica: taxonomia/biometria, registro fotográfico, coordenadas, laudos de maus-tratos e de apetrechos proibidos.
- Conecte achado a resposta: sanção penal/administrativa + reparação específica (CETAS/CRAS, reintrodução, educação ambiental).
FAQ
1) Pescar no defeso sem causar dano visível ainda é crime?
Sim. A pesca em período proibido, em local interditado ou com apetrechos vedados é crime formal, independentemente de dano imediato. Havendo risco relevante ou resultado (mortandade, lesão à saúde), há agravantes.
2) A pessoa jurídica pode responder por crimes de fauna?
Sim. Se a infração resulta de decisão de representante/órgão da empresa no seu interesse ou benefício, a pessoa jurídica responde, sem prejuízo das pessoas físicas. Sanções incluem multa, suspensão de atividades e prestação de serviços à comunidade.
3) Quando o porte de aves em feiras caracteriza tráfico?
Quando há ausência de anilha/microchip e de documentos idôneos (criadouro autorizado, nota fiscal), espécies ameaçadas ou indícios de comercialização organizada (listas de pedidos, valores, logística).
4) É possível acordo para evitar prisão nesses casos?
Em hipóteses cabíveis, podem-se aplicar transação penal, suspensão condicional do processo ou ANPP, com condições como reparação específica, custeio de projetos de conservação e educação ambiental.
Fundamentos legais essenciais (comentados)
- Constituição, art. 225: tutela do meio ambiente e autorização de sanções penais e administrativas a condutas lesivas.
- Lei nº 9.605/1998: arts. 29 a 37 (fauna, caça e comércio), 32 (maus-tratos), 34 e 35 (pesca proibida; explosivos/tóxicos); admite responsabilização da pessoa jurídica e penas alternativas.
- Decreto nº 6.514/2008: infrações administrativas, multas, apreensões, embargos e ritos processuais na via ambiental.
- Portarias/Normas de pesca (defesos, tamanhos mínimos, malhagem, áreas interditadas) e CITES para comércio internacional de espécies.
Considerações finais
A repressão à caça, à pesca ilegal e ao tráfico de animais protege a biodiversidade, desarticula mercados ilícitos e promove serviços ecossistêmicos vitais. A efetividade depende de fiscalização qualificada, provas técnicas, integração entre esferas penal/administrativa/cível e foco em reparação integral e prevenção.