Direito administrativo

Alteração Unilateral nos Contratos Administrativos: Limites, Garantias e Boas Práticas da Nova Lei de Licitações

Conceito, fundamento e função pública

Alteração unilateral é a prerrogativa pela qual a Administração Pública, de forma motivada e nos limites legais, modifica sozinha cláusulas do contrato administrativo durante a execução, para adequar o objeto às necessidades coletivas ou corrigir desequilíbrios funcionais. Essa prerrogativa se conecta à supremacia do interesse público e à indisponibilidade do bem/serviço contratado, mas não autoriza arbitrariedade: toda mudança deve observar legalidade, motivação, proporcionalidade, economicidade e manutenção da equação econômico-financeira.

No Brasil, a disciplina encontra-se centralmente na Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos – NLLC), que substituiu o regime da Lei nº 8.666/1993. A NLLC consolida os tipos de alteração, estabelece procedimentos, limites quantitativos e reforça a necessidade de matriz de riscos, planejamento e gestão documental para dar previsibilidade às mudanças e preservar direitos do contratado.

QUADRO DE PARTIDA — POR QUE ALTERAR UNILATERALMENTE?

  • Adequação qualitativa: atualizar especificações técnicas por fato superveniente (norma, tecnologia, segurança).
  • Acréscimos/supressões quantitativas: ajustar quantidades ao consumo real ou a novas necessidades.
  • Correção de falhas de projeto: compatibilizações, interferências, problemas geotécnicos, acessibilidade.
  • Continuidade do serviço: evitar desassistência em serviços essenciais ou em obras críticas.
  • Eficiência e economicidade: soluções com melhor relação custo–benefício para o interesse público.

Tipologia das alterações e sua base legal

Adequações qualitativas

São mudanças que não alteram a natureza do objeto, mas ajustam especificações, metodologias ou padrões de desempenho para atender finalidades públicas supervenientes. Exemplos: atualização de norma de segurança; migração de solução tecnológica por obsolescência; ajuste arquitetônico para inclusão de acessibilidade; modificação do método executivo em obra para superar condição geológica inesperada. Exigem justificativa técnica e orçamentária, com avaliação de impacto no prazo e custo e com reequilíbrio quando houver oneração do contratado.

Acréscimos e supressões quantitativas

As alterações quantitativas ajustam a quantidade de itens/serviços mantendo a mesma natureza e padrão de qualidade. A NLLC define limites percentuais (geralmente calculados sobre o valor inicial atualizado), distinguindo obras/serviços de engenharia e demais contratos. Supressões relevantes podem ensejar indenização de custos diretamente vinculados e não amortizados (mobilização, depreciação de equipamentos, despesas indiretas).

Mudanças vedadas

É vedado o uso da alteração unilateral para descaracterizar o objeto licitado, mudar o regime de execução sem base técnica robusta ou substituir inteiramente a solução contratada por outra de natureza distinta. Mudanças estruturais demandam nova contratação (salvo hipóteses legais específicas) para preservar a competitividade e a isonomia do certame original.

BASE LEGAL — PONTOS-CHAVE DA NLLC

  • Planejamento e riscos: exigência de estudos técnicos, TR/Projeto e matriz de riscos com alocação clara (arts. de planejamento).
  • Execução e fiscalização: designação de gestor e fiscal, registros de medições e ordens de serviço.
  • Alterações: hipóteses de adequação qualitativa e acréscimos/supressões com limites, motivação e reequilíbrio.
  • Reequilíbrio: obrigação de preservar a equação econômico-financeira; critérios e provas.
  • Transparência: publicidade dos termos aditivos/extratos em PNCP e diário oficial.

Equilíbrio econômico-financeiro: eixo de contenção

No contrato administrativo, a equação pactuada na assinatura — custos + remuneração + riscos — deve permanecer intocada pela atuação unilateral do Poder Público. A alteração que aumente o custo, reduza produtividade ou imponha novas obrigações deve ser compensada (preço e/ou prazo) para restaurar a equivalência econômica. O dever de reequilibrar relaciona-se com três instrumentos:

  • Reajuste: atualização monetária periódica por índices setoriais (inflação esperada).
  • Repactuação: revisão de custos, especialmente de mão de obra, em serviços continuados conforme convenções, pisos e encargos.
  • Reequilíbrio: compensação por álea extraordinária (fato imprevisível/inevitável) ou por ato estatal que impacte a execução (ex.: alteração unilateral, mudança normativa).
GRÁFICO CONCEITUAL — MECANISMOS QUE PROTEGEM A EQUAÇÃO

Reajuste (corrige inflação programada)
Repactuação (custos de pessoal/insumos continuados)
Reequilíbrio (evento extraordinário/ato da Administração)

Na prática, a recomposição deve se basear em memória de cálculo: planilhas de custos, curvas ABC, produtividade, composições unitárias, cronograma físico-financeiro, comprovação de nexo causal e registro formal do evento determinante.

Procedimento: da motivação técnica ao termo aditivo

1) Justificativa e instrução

O pedido de alteração surge do gestor/fiscal ou de áreas técnicas, com relatório circunstanciado (causa, impactos, riscos e alternativas). Devem integrá-lo: (i) parecer técnico que demonstre a necessidade; (ii) parecer jurídico quanto à legalidade e ao respeito aos limites; (iii) análise de reequilíbrio (planilhas, prazos, marcos); (iv) matriz de riscos para verificar quem suporta o evento.

2) Oitiva do contratado e negociação

Embora a alteração seja unilateral, a Administração deve ouvir o contratado para calibrar prazos, custos e logística. Boas práticas incluem reuniões de engenharia de valor para buscar solução com melhor custo–benefício e minimizar paralisações.

3) Decisão motivada e formalização

A autoridade competente profere decisão fundamentada, indicando base legal, vantagem pública, limites percentuais, impactos e compensações. Em seguida, elabora-se termo aditivo (ou ordem de serviço nos casos previstos), com publicação de extrato no PNCP e arquivamento em dossiê eletrônico.

4) Execução, medição e controle

As mudanças são incorporadas ao cronograma, aos marcos de medição e aos indicadores de desempenho. A fiscalização registra evidências (diários, fotos, ensaios, as built) e a contabilidade acompanha os impactos financeiros.

CHECKLIST — UM BOM TERMO ADITIVO DE ALTERAÇÃO

  • Descrição precisa do que muda (itens, quantidades, especificações).
  • Fundamentação técnica/jurídica e referência à matriz de riscos.
  • Limites percentuais e nova composição do valor contratual.
  • Prazos atualizados e marcos de medição.
  • Reequilíbrio: fórmulas, memória e fontes de dados.
  • Publicação e anexação de documentos (pareceres, planilhas, cronograma).

Limites quantitativos e critérios de mensuração

Os limites percentuais variam conforme o tipo de contrato, sendo usual a referência ao valor inicial atualizado. Importa adotar métricas transparentes para mensurar acréscimos/supressões: custo direto (insumos), BDI (benefícios e despesas indiretas), desmobilização/mobilização, e impacto de produtividade. Para supressões, calculam-se perdas não absorvidas e custos irrecuperáveis; para acréscimos, utilizam-se composições unitárias homologadas ou, na falta, cotações idôneas.

GRÁFICO CONCEITUAL — IMPACTO DE UMA ALTERAÇÃO DE 20% EM OBRA

Custo direto adicional
BDI/overheads
Prazo adicional

Interação com a matriz de riscos

A matriz de riscos é o documento que aloca responsabilidades por eventos previsíveis e imprevisíveis. Ela evita a judicialização da alteração unilateral, pois define se o risco de determinada mudança (ex.: interferência de utilidades, descoberta arqueológica, variação cambial, geologia, licenciamento ambiental) é do contratado, da Administração ou compartilhado. Se o evento se materializa em favor do Poder Público e impõe custo ao contratado fora do risco assumido, é dever reequilibrar. Se o risco era do contratado, a alteração pode ser implementada com reprogramação de prazo sem aumento de preço.

TABELA CONCEITUAL — EXEMPLOS DE ALOCAÇÃO

Evento Risco (exemplo) Efeito na alteração
Norma de segurança atualizada Administração Aditivo qualitativo + reequilíbrio
Interferência não mapeada (tubulação) Compartilhado Aditivo + rateio segundo matriz
Erro de produtividade do proponente Contratado Sem aumento de preço; replanejamento

Setores e casos típicos

Obras e serviços de engenharia

É o terreno clássico das alterações qualitativas (compatibilizações de projeto, reforço estrutural, rebaixamento de lençol freático, remanejamento de rede, mudanças de tecnologia construtiva). Diários de obra, as built e ensaios são imprescindíveis. Em contratos de grande vulto, recomenda-se seguro-garantia com cláusula de retomada para reduzir o tempo de paralisação quando alterações se combinam com rescisão.

Serviços continuados (limpeza, vigilância, TI)

As alterações comumente ajustam níveis de serviço e quantidades por mudança de demanda. Devem ser refletidas em SLAs, dimensionamento de equipes, insumos e rotas. A repactuação periódica de custos de pessoal é irmã da alteração, pois evita transformar mudança de escopo em aumento artificial de preço.

Fornecimentos seriados

Para bens padronizados, alterações quantitativas — reduzindo ou aumentando lotes — são ferramentas de gestão de estoque e orçamento. Regras de qualidade, amostra padrão e testes de recebimento previnem litígios quando a mudança repercute em especificações de fabricante.

Riscos, abusos e formas de controle

Os principais riscos são: (i) uso da alteração para contornar licitação (mudança de natureza do objeto); (ii) aditivos sucessivos sem base técnica; (iii) negativa indevida de reequilíbrio; (iv) deficiência de prova (sem estudos, sem medição). O controle se dá por transparência (PNCP), pareceres, auditoria interna, órgãos de controle externo e judiciário. Programas de integridade no contratado e governança no órgão contratante reduzem riscos de captura e direcionamento.

ALERTAS QUE APONTAM PARA ABUSO

  • Alterações que dobram o valor e mudam a natureza do contrato.
  • Aditivos sem memória de cálculo ou sem parecer técnico.
  • Supressões com indenização ignorada apesar de custos irrecuperáveis evidentes.
  • Não publicação no PNCP e ausência de dossiê eletrônico completo.

Boas práticas operacionais

  • Planejar com estudos sólidos (levantamentos, sondagens, compatibilização BIM, pesquisa de mercado).
  • Padronizar minutas de aditivos com campos para risco, memória e indicadores.
  • Negociar soluções de engenharia de valor e registrar alternativas descartadas.
  • Auditar internamente aditivos acima de limiares (valor/prazo) antes da decisão.
  • Publicar extratos e bases de cálculo em formato aberto para controle social.
  • Usar dispute boards, mediação e arbitragem (quando cabível) para resolver divergências sem paralisar o objeto.

Conclusão

A alteração unilateral é o instrumento que permite ao contrato público respirar durante a execução e acompanhar mudanças do mundo real: novas normas, tecnologias, demandas e riscos. Seu exercício responsável exige planejamento robusto, motivação técnica, respeito à matriz de riscos e recomposição econômica sempre que a Administração deslocar custos para o contratado. Usada com transparência e proporcionalidade, ela preserva a continuidade e a qualidade dos serviços/obras, evita litígios e entrega valor público. Usada sem estudos, sem limites e sem reequilíbrio, converte-se em fonte de nulidades e paralisações. O caminho virtuoso passa por: (i) governança contratual com papéis definidos; (ii) documentação e publicidade completas; (iii) indicadores e auditoria permanentes; e (iv) cultura de solução de disputas, que privilegia o resultado ao cidadão sobre a retórica do culpado. Em síntese: alterar unilateralmente é poder-dever do gestor — e sua legitimidade nasce do interesse público comprovado e da segurança jurídica assegurada a quem contrata com o Estado.

GUIA RÁPIDO — ALTERAÇÃO UNILATERAL DOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

  • O que é: faculdade legal da Administração de modificar sozinha cláusulas do contrato para atender o interesse público, com motivação e respeito à equação econômico-financeira.
  • Quando usar: adequação qualitativa (atualizar especificações/métodos sem mudar a natureza do objeto) e acréscimos/supressões quantitativas (ajuste de quantidades).
  • Como fazer direito: estudo técnico, análise de risco, oitiva do contratado, decisão motivada, termo aditivo e publicação no PNCP.
  • Limites: não pode descaracterizar o objeto licitado nem contornar competição; deve observar proporcionalidade e o due process.
  • Contrapesos: reequilíbrio (preço/prazo), indenização por supressões relevantes, direito de defesa e controle pelos órgãos de fiscalização.
  • Boas práticas: matriz de riscos clara, memória de cálculo, indicadores (SLAs), dispute boards/mediação, seguro-garantia com retomada (obras).

O que caracteriza a alteração unilateral e por que ela existe?

É a prerrogativa exorbitante que permite à Administração ajustar o contrato em execução para proteger a finalidade pública e a continuidade do serviço. Nasce da supremacia do interesse público e da indisponibilidade do patrimônio/competências estatais. Não autoriza arbitrariedade: toda modificação precisa de base legal, motivação técnica e preservação da equação econômico-financeira.

Quais são os tipos de alteração admitidos em lei?

Duas famílias: adequação qualitativa (atualizar tecnologia, método, padrão de desempenho, segurança, acessibilidade) e acréscimos/supressões quantitativas (ajuste de quantidades). Mudanças que alterem a natureza do objeto ou o regime de execução sem necessidade técnica idônea exigem nova contratação.

Como preservar o equilíbrio econômico-financeiro após a alteração?

Se a mudança impuser custos adicionais ou redução de produtividade, a Administração deve recompor a equação por meio de reequilíbrio (preço/prazo), além de mecanismos permanentes: reajuste (inflação) e repactuação (custos de mão de obra em serviços continuados). É indispensável memória de cálculo (planilhas, composições, cronograma, nexo causal).

Quais são os passos do procedimento correto?

(1) Relatório técnico do gestor/fiscal com causa, alternativas e riscos; (2) parecer jurídico; (3) oitiva do contratado e negociação de prazos/custos; (4) decisão motivada pela autoridade; (5) termo aditivo com publicação no PNCP; (6) atualização de cronograma, marcos de medição e SLAs.

Há limites percentuais para acréscimos e supressões?

Sim, calculados sobre o valor inicial atualizado, com percentuais distintos para obras/serviços de engenharia e para demais contratos (ver lei aplicável). Supressões relevantes podem gerar indenização de custos irrecuperáveis (mobilização, depreciação, despesas indiretas comprovadas).

O que é vedado fazer por alteração unilateral?

Descaracterizar o objeto ou trocar a solução por outra de natureza diversa; fatiar aditivos para burlar limites; impor ônus sem reequilíbrio; deixar de publicar ou documentar; usar alteração como sanção informal. Nessas hipóteses, o ato é nulo e pode gerar responsabilização.

Como a matriz de riscos influencia a alteração?

Define quem suporta eventos previsíveis/imprevisíveis (geologia, licenças, utilidades, variação cambial etc.). Se a mudança decorrer de risco da Administração ou compartilhado, cabe reequilíbrio. Se for risco do contratado, a alteração pode demandar reprogramação sem aumento de preço.

Que documentos e evidências tornam a alteração defensável?

TR/Projeto, estudos e pareceres, diários e fotografias (obras), ensaios, medições, atas de reunião, planilhas e cronogramas revisados, despacho decisório e publicação do aditivo. Sem dossiê completo, a alteração perde robustez probatória.

Quais cuidados ao glosar medições após uma alteração?

Conectar a glosa a não conformidades específicas, oferecer defesa, registrar ordens de serviço e manter comutatividade (paga-se o que foi executado com qualidade). Glosas genéricas ou sem prova são anuláveis.

Seguro-garantia e dispute boards ajudam quando a alteração é controvertida?

Sim. O seguro-garantia com retomada reduz paralisações em obras; comitês de resolução de disputas, mediação e arbitragem (quando cabível) resolvem divergências técnicas de forma rápida e menos litigiosa.


REFERENCIAL JURÍDICO E OPERACIONAL (BASE TÉCNICA RENOMEADA)

  • Constituição Federal, art. 37: princípios LIMPE, publicidade e eficiência; controles interno/externo.
  • Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos): planejamento e riscos (arts. iniciais), designação de gestor/fiscal e execução; regras de alterações (adequação qualitativa; acréscimos/supressões com limites), reequilíbrio, sanções e transparência/PNCP.
  • Legislação setorial (concessões/PPPs, saneamento, energia, transporte) quando o objeto exigir regimes especiais.
  • Precedentes de controle (TCU/TCEs): nulidade de aditivos que mudam a natureza do objeto; exigência de memória de cálculo; indenização por supressões; motivação e publicidade como condições de validade.
  • Boas práticas comparadas: performance bonds com retomada, dispute boards, contratos orientados a desempenho e métricas (SLAs/KPIs).

AVISO IMPORTANTE: Este conteúdo é informativo e educacional. Ele não substitui a avaliação personalizada de profissionais habilitados (advocacia pública/privada, controle interno/externo e consultorias técnicas), que analisarão documentos, riscos, preços, prazos e jurisprudência do seu caso antes de decidir por qualquer alteração, reequilíbrio, sanção ou rescisão contratual.

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