Rol da ANS: Entenda se a Cobertura é Limitada ou Pode Incluir Tratamentos Fora da Lista
Rol da ANS: natureza exemplificativa ou taxativa? O que mudou, o que vale hoje e como aplicar na prática
O Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS é a lista que define coberturas mínimas obrigatórias dos planos privados de assistência à saúde no Brasil. Por anos, as disputas judiciais giraram em torno de uma pergunta central: esse rol tem natureza taxativa (cobre apenas o que está escrito) ou exemplificativa (serve como referência, admitindo coberturas além do listado quando existirem razões técnico-científicas)? O tema ganhou forte repercussão com decisões da 2ª Seção do STJ que falaram em “taxatividade mitigada”, seguidas pela edição da Lei nº 14.454/2022, que alterou a Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998) para estabelecer balizas legislativas claras sobre cobertura fora do rol. Hoje, o cenário normativo e jurisprudencial aponta para um modelo híbrido: o rol continua sendo piso mínimo de cobertura, mas não esgota as possibilidades quando, no caso concreto, houver indicação médica fundamentada, evidência científica e ausência de alternativa terapêutica equivalente no rol — o que a doutrina tem chamado de exemplificatividade qualificada.
Este artigo traduz esse itinerário — decisões, lei, diretrizes técnicas — e apresenta passo a passo prático para quem precisa contestar negativas ou conceder cobertura com segurança jurídica, inclusive com quadros informativos, gráficos didáticos e tópicos operacionais.
Da “taxatividade mitigada” à lei: como o debate evoluiu
O que decidiu o STJ ao falar em “taxatividade mitigada”
Em 2022, a 2ª Seção do STJ entendeu, em julgamento de casos repetitivos, que o rol teria caráter taxativo, porém com mitigações. Em termos práticos, a Corte criou critérios de exceção para autorizar tratamentos fora do rol, desde que presentes: (i) indicação médica expressa e detalhada; (ii) inexistência no rol de alternativa eficaz e disponível ao paciente; (iii) evidência científica de eficácia/segurança do procedimento ou medicamento; (iv) quando fármaco, registro na Anvisa. Esses vetores, mesmo ditos em um paradigma de “taxatividade”, na prática abriam portas para hipóteses de cobertura fora do rol.
A Lei nº 14.454/2022 e a virada legislativa
Posteriormente, o Congresso Nacional editou a Lei nº 14.454/2022, alterando a Lei 9.656/1998 para afirmar que o rol da ANS constitui referência básica para cobertura — não um teto absoluto. A lei positivou critérios muito semelhantes aos delineados pelo STJ, mas dentro de um desenho mais expansivo, autorizando, no caso concreto, coberturas não listadas quando: (a) houver comprovação de eficácia, à luz da medicina baseada em evidências; (b) existir recomendação por órgãos de avaliação de tecnologias em saúde (nacionais ou estrangeiros de renome); (c) não houver substituto terapêutico eficaz no rol; e (d) para medicamentos, houver registro na Anvisa. A lei ainda aprimorou fluxos para atualização do rol, impondo prazos e critérios técnicos de análise.
Como os tribunais têm aplicado a nova lei
Após a edição da lei, decisões em diversos tribunais (inclusive o próprio STJ, em casos posteriores) têm adotado a exemplificatividade qualificada: o rol é piso, a operadora não precisa cobrir qualquer coisa, mas deve cobrir o que, fora do rol, preencha critérios técnico-científicos robustos e atenda à indicação médica individualizada. Esse modelo concilia previsibilidade para o sistema com a proteção do paciente em situações nas quais o ritmo de inovação supera a atualização periódica do rol.
Em uma frase: O rol da ANS é referência mínima obrigatória (piso). Fora dele, a cobertura é possível quando preenchidos critérios legais e técnico-científicos (exemplificatividade qualificada).
O que muda para beneficiários, médicos e operadoras
Para beneficiários e equipes clínicas
- Relatórios médicos precisam ser mais técnicos, explicitando diagnóstico (CID), histórico terapêutico, alternativas testadas, evidência científica (guidelines, ensaios, metanálises), risco do atraso/interrupção e indicação individualizada.
- Para medicamentos, é indispensável o registro na Anvisa e, quando cabível, a justificativa para uso off label com base em evidências, quando inexistir substituto igualmente eficaz do rol.
- Na indisponibilidade de rede (tempo ou distância), o beneficiário pode realizar o procedimento fora da rede e pleitear reembolso integral — desde que documentada a impossibilidade de uso da rede credenciada.
Para operadoras
- Decisões de negativa devem ser motivadas por escrito, com base técnica, citando diretrizes, literatura e alternativas do rol (se existentes) que, no caso concreto, sejam equivalentes em eficácia e segurança.
- Comitês técnicos precisam funcionar com SLAs claros (prazos ANS) e análise individualizada; respostas genéricas tendem a ser invalidadas em juízo.
- Gestão de home care, OPM intraoperatória e quimioterápicos orais deve observar entendimentos reiterados que favorecem cobertura quando clinicamente indicado.
Checklist legal para cobertura fora do rol (Lei 14.454/2022)
- Indicação médica fundamentada e individualizada (com literatura).
- Inexistência de alternativa terapêutica equivalente no rol (mesma eficácia/segurança para aquele caso).
- Evidência científica de qualidade (guidelines reconhecidos, estudos controlados, revisões).
- Para fármacos: registro na Anvisa (salvo hipóteses legais específicas, como programas de acesso).
- Observância de prazos decisórios e de motivação escrita pela operadora.
Esquema didático — posição atual (visual ilustrativo)
Temas sensíveis: onde as negativas costumam ser revistas
Home care como substituto terapêutico
Se o contrato cobre internação hospitalar, a negativa do home care prescrito como substituto — com equipe, insumos e metas terapêuticas — tende a ser abusiva. Exige-se, porém, plano assistencial claro, com critérios de segurança e reavaliações periódicas.
Órteses, próteses e materiais (OPM) de ato cirúrgico
OPM indispensáveis ao sucesso do ato cirúrgico (p. ex., stents, telas, válvulas) integram o procedimento e, em regra, devem ser cobertas. O debate se concentra em itens cosméticos ou de uso domiciliar desvinculado do ato operatório.
Oncologia e terapias-alvo
Há forte tendência de deferimento quando a indicação é oncológica com diretrizes reconhecidas, sobretudo para quimioterápicos orais e imunoterapias, a depender da evidência. Nesses casos, a negativa por “alto custo” sem discussão técnica não prevalece.
TEA e terapias multiprofissionais
Limitações rígidas de sessões para ABA, fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicologia vêm sendo afastadas quando há prescrição individualizada e necessidade contínua. Coparticipações desproporcionais que desincentivem o tratamento são rechaçadas.
Uso off label
“Off label” não é sinônimo de ilícito. Havendo justificativa clínica sólida e evidências, e não existindo alternativa do rol com eficácia comparável, muitos precedentes reconhecem cobertura, especialmente em oncologia e doenças raras.
Passo a passo prático
- Peça a negativa por escrito (com fundamentação técnica e alternativas do rol sugeridas, se houver).
- Construa relatório clínico robusto: diagnóstico, histórico, tentativas prévias, comparação com alternativas, referências (guidelines e estudos).
- Documente a urgência e indisponibilidade de rede, quando ocorrer (protocolos e prints).
- Reclame na ANS (NIP) e no Procon. Persistindo, ingresse com ação com tutela de urgência (24/48h) e astreintes.
- Para fármacos, junte comprovação de registro Anvisa e cálculo de doses/custos (para delimitar multa e reembolso).
Fluxo resumido — do pedido à cobertura
Tópicos rápidos e cuidados argumentativos
- Rol como piso: tratar como ponto de partida, nunca como limite intransponível.
- Equivalência terapêutica: se a operadora indica alternativa do rol, compare evidências e demonstre por que não é equivalente para aquele paciente.
- Proporcionalidade: custo elevado, por si, não justifica negativa quando há forte evidência e necessidade clínica.
- Documentação: sem relatório e bibliografia, a chance de êxito diminui; “pareceres” genéricos não bastam.
- Atualização do rol: use a tramitação de diretrizes na ANS como argumento adicional (processo em curso; pareceres técnicos).
Conclusão: segurança jurídica com centralidade no paciente
O debate exemplificativo vs. taxativo amadureceu. Com a Lei 14.454/2022, o legislador positivou que o rol é referência básica, admitindo cobertura além do listado quando presentes critérios técnico-científicos e indicação médica individualizada. Em outras palavras: nem tudo fora do rol será coberto, mas muito do que for clinicamente indispensável — e demonstrado — deverá ser. Para o sistema, a regra entrega previsibilidade; para o paciente, garante acesso a tecnologias essenciais, sem transformar a lista em obstáculo cego à boa prática clínica. O caminho seguro é técnico: relatórios completos, evidências sólidas, comparação honesta de alternativas e decisões motivadas. Assim, planos cumprem sua função social e o Judiciário intervém apenas quando a negativa contraria a lei, a ciência e a dignidade do usuário.
Base técnica (fontes legais e orientações)
- Lei nº 9.656/1998 — normas gerais dos planos de saúde; coberturas mínimas e regras de atendimento.
- Lei nº 14.454/2022 — ajusta a Lei 9.656/98 para admitir cobertura fora do rol quando atendidos critérios técnico-científicos (exemplificatividade qualificada).
- CDC — arts. 6º, 14, 39 e 51; boa-fé e equilíbrio contratual; responsabilidade objetiva do fornecedor.
- Normas/Resoluções da ANS — Rol de Procedimentos e Diretrizes de Utilização (DUT); prazos máximos de atendimento/autorização.
- Jurisprudência do STJ — decisões sobre taxatividade mitigada e aplicação dos critérios hoje acolhidos pela lei; precedentes sobre home care, OPM, quimioterápicos orais e off label quando presentes evidências idôneas.
Guia rápido — Rol da ANS: exemplificativo x taxativo
- Ponto central: o Rol da ANS é piso mínimo de cobertura. Admite-se cobertura fora do rol quando preenchidos critérios legais e técnico-científicos.
- Base legal atual: Lei 9.656/1998 (planos de saúde) + Lei 14.454/2022 (exemplificatividade qualificada) + CDC (arts. 6º, 14, 39, 51).
- STJ (linha geral): “taxatividade mitigada” → exige análise do caso concreto; a lista não é um teto absoluto.
- Critérios para cobrir fora do rol:
- Indicação médica fundamentada e individualizada.
- Inexistência de alternativa equivalente no rol (mesma eficácia/segurança).
- Evidência científica robusta (guidelines, estudos).
- Para fármacos: registro na Anvisa.
- Negativas frequentemente abusivas: home care que substitui internação; OPM indispensáveis ao ato cirúrgico; limites rígidos a terapias do TEA; recusa genérica por “fora do rol”.
- Procedimento prático: peça negativa por escrito; junte relatório médico completo; comprove urgência e indisponibilidade de rede; acione ANS (NIP)/Procon; se necessário, ajuíze com tutela de urgência e astreintes.
- Documentos-chave: prescrição + CID, histórico terapêutico, comparação com alternativas do rol, referências científicas, protocolos de contato com a operadora.
- Reembolso fora da rede: cabe quando a rede credenciada é inviável no tempo/local adequados e isso está documentado.
- Importante para operadoras: decisões devem ser motivadas por escrito com base técnica; respostas genéricas tendem a ser invalidas em juízo.
- Mensagem final: trate o rol como referência mínima; se o caso preencher os critérios legais e clínicos, a cobertura fora do rol é defensável e costuma ser deferida.
FAQ — Rol da ANS: exemplificativo ou taxativo? (sem acordeão)
O que é o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS?
É a lista de coberturas mínimas obrigatórias que os planos de saúde devem oferecer, atualizada periodicamente pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Ele estabelece um piso assistencial, não um pacote completo de tudo que existe na medicina.
Afinal, o rol é exemplificativo ou taxativo?
Hoje prevalece a ideia de exemplificatividade qualificada: o rol é referência mínima (piso). Fora dele, a cobertura pode ser reconhecida quando preenchidos critérios legais e técnico-científicos (Lei 14.454/2022 e orientação do STJ sobre “taxatividade mitigada”).
Quais são os critérios para o plano cobrir algo fora do rol?
Em síntese: (i) indicação médica fundamentada e individualizada; (ii) inexistência no rol de alternativa equivalente em eficácia e segurança; (iii) evidência científica robusta (diretrizes/guidelines, estudos); e (iv) para medicamentos, registro na Anvisa. Atendidos esses pontos, a negativa tende a ser abusiva.
O que os tribunais costumam garantir mesmo quando o rol é invocado?
Há forte proteção a home care quando substitui internacão, órteses/próteses indispensáveis ao ato cirúrgico, quimioterápicos orais e terapias oncológicas indicadas, e terapias multiprofissionais (como em TEA) sem limites arbitrários. Em todos os casos, exige-se lastro técnico.
Uso “off label” é automaticamente excluído?
Não. Off label não é veto automático. Com relatório médico consistente, evidências e sem alternativa eficaz do rol, há decisões determinando cobertura, sobretudo em oncologia e doenças raras.
Como devo agir após uma negativa baseada em “fora do rol”?
Peça a negativa por escrito com a motivação técnica; reúna relatório/prescrição, diretrizes clínicas e provas da urgência e de indisponibilidade de rede (se houver). Registre reclamação na ANS (NIP) e no Procon. Persistindo o risco, ajuíze ação com tutela de urgência e astreintes.
Quando posso ser atendido fora da rede credenciada?
Se a operadora não oferecer rede adequada no tempo/local exigidos, é possível realizar o tratamento fora da rede e exigir cobertura direta ou reembolso integral, desde que a indisponibilidade esteja bem documentada.
Planos antigos ou contratos coletivos mudam a resposta?
Mesmo com regramentos específicos, continuam submetidos ao CDC e ao controle de abusividade. A discussão sobre fora do rol segue os mesmos critérios legais e técnicos, inclusive para coletivos.
O custo elevado pode justificar a negativa?
O custo, isoladamente, não justifica negar. A operadora deve demonstrar alternativa equivalente e motivar tecnicamente a decisão. Nos casos com evidência sólida e necessidade clínica, o Judiciário costuma impor a cobertura.
Quais documentos aumentam a chance de êxito?
Relatório médico completo (CID, histórico, riscos do atraso, comparação com alternativas), prescrição, diretrizes/guidelines, protocolos de contato com a operadora, prova de urgência e da indisponibilidade da rede, e para fármacos, registro Anvisa.
Base técnica (fontes legais e orientações)
- Lei nº 9.656/1998 — normas gerais dos planos de saúde e coberturas mínimas.
- Lei nº 14.454/2022 — consolida a exemplificatividade qualificada e os critérios para cobertura fora do rol.
- CDC — arts. 6º, 14, 39 e 51 (boa-fé, equilíbrio contratual, responsabilidade objetiva e cláusulas abusivas).
- Normas/Resoluções da ANS — Rol de Procedimentos e Diretrizes de Utilização (DUT), prazos máximos de atendimento/autorização.
- Jurisprudência do STJ — linha da taxatividade mitigada, com precedentes sobre home care, OPM, quimioterápicos orais e off label quando presentes evidências idôneas.
Aviso importante
Este material é informativo e educacional. Embora baseado em leis, normas da ANS e jurisprudência, ele não substitui a avaliação individualizada de profissionais de saúde e de um(a) advogado(a). Cada caso exige análise dos documentos clínicos, do contrato, da urgência e das evidências científicas aplicáveis para definir a estratégia adequada.