Recuperação Judicial para Pessoas Físicas: Como Funciona a Repactuação de Dívidas pelo CDC
Recuperação judicial de pessoas físicas superendividadas: o que existe (e o que não existe) no ordenamento brasileiro
Quando o assunto é “recuperação judicial de pessoas físicas superendividadas”, é comum surgir um equívoco: a Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falências) — mesmo após as reformas — não se aplica a pessoas físicas não empresárias. O instituto da recuperação judicial foi concebido para empresários e sociedades empresárias, enquanto as pessoas físicas superendividadas contam com um microssistema próprio de proteção inaugurado pela Lei nº 14.181/2021, que reformou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e criou um procedimento de repactuação global de dívidas. Assim, em vez de uma “recuperação judicial” nos moldes empresariais, o que há para o consumidor é um processo de reorganização do passivo, com conciliação multilateral, plano judicial quando necessário e preservação do mínimo existencial.
Neste guia prático e técnico, reunimos a base normativa aplicável, o passo a passo do procedimento, os limites e as oportunidades para quem busca reorganizar as dívidas pessoais com segurança jurídica, além de checklists, quadros informativos e visuais didáticos que facilitam a atuação de consumidores, advogados, Defensorias e Procons.
Base legal e conceitos fundamentais
Microssistema de proteção do superendividado
- Lei nº 14.181/2021 (Lei do Superendividamento): alterou o CDC e o Estatuto do Idoso para instituir prevenção e tratamento do superendividamento (arts. 4º, 6º, 39, 51, 54-A a 54-G, 104-A e 104-B do CDC, entre outros).
- Superendividamento: impossibilidade do consumidor de boa-fé pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer o mínimo existencial (conceito normativo a partir da Lei 14.181/2021).
- Mínimo existencial: patamar de renda impenhorável de fato destinado à moradia, alimentação, saúde, educação e transporte essenciais; não há valor fixo na lei — define-se caso a caso com base em provas e parâmetros locais.
Atenção ao escopo: a recuperação judicial da Lei 11.101/2005 é para empresários. Para a pessoa física não empresária, o caminho é o procedimento de repactuação global do CDC (arts. 104-A e 104-B), além de renegociações extrajudiciais e programas públicos de educação financeira.
Quais dívidas podem ser reorganizadas e quais ficam fora
Entram, em regra
- Dívidas de consumo assumidas de boa-fé: cartões de crédito, CDC/financiamentos pessoais, cheque especial, crediários de lojas, plataformas digitais de crédito e Buy Now, Pay Later, além de serviços essenciais (água, luz, gás, telecom).
- Contratos bancários no varejo financeiro (empréstimos, adiantamentos, parcelamentos), inclusive com instituições financeiras e fintechs.
Ficam fora (ou sofrem tratamento restrito)
- Pensão alimentícia e obrigações de natureza alimentar.
- Indenizações por ilícitos dolosos, multas penais e tributos (em regra, submetem-se a regimes próprios).
- Contratos com garantias reais de bens essenciais (ex.: financiamento habitacional) — costumam ser preservados, adequando-se fluxo e encargos dentro do plano.
- Dívidas contraídas com má-fé ou para consumo de luxo, quando demonstrado abuso.
Prevenção: crédito responsável e informação clara
Deveres dos fornecedores
- Avaliar capacidade de pagamento e zelar pela concessão responsável (evitar empurrar crédito que sufoque o mínimo existencial).
- Informar de forma destacada o Custo Efetivo Total (CET), juros, tarifas, seguros e riscos, sem venda casada (prática vedada).
- Abster-se de assédio — especialmente a idosos — e de oferta não solicitada de consignado, telemarketing agressivo e refinanciamentos seriados que elevem o CET.
Educação financeira e ferramentas de proteção
- Programas permanentes de educação financeira e “trilhas” de reabilitação do crédito em Procons/Defensorias.
- Uso de painéis de dívida total por CPF (com consentimento) para mapear sobreposição de créditos e evitar a “bola de neve”.
Exemplo didático — composição típica do passivo de uma família superendividada (valores fictícios)
Passo a passo do procedimento judicial de repactuação (CDC)
1) Requerimento com prova da boa-fé e da renda
- Petição inicial com lista completa de dívidas, comprovantes de renda e despesas essenciais e proposta de mínimo existencial.
- Pedidos de consolidação dos credores e designação de audiência global (art. 104-A, CDC).
2) Audiência de conciliação com todos os credores
- Busca-se acordo multilateral com reorganização de prazos, redução de encargos e parcela única que caiba no orçamento.
- O juiz pode suspender temporariamente cobranças/execuções das dívidas abrangidas para viabilizar a negociação (art. 104-A, §).
3) Plano judicial compulsório (se o consenso fracassar)
- O magistrado impõe plano que prioriza essencialidade e proporcionalidade, preservando o mínimo existencial, usualmente com horizonte de até 5 anos (parâmetro prático frequente).
- Fixação de ordem de pagamento, taxas e encargos recalibrados; vedação a assédio e “rolagens” que pioram o CET durante o plano.
4) Monitoramento e reabilitação
- Relatórios periódicos, ajustes extraordinários em caso de variação relevante de renda e mecanismos de reabilitação do crédito (ex.: retirada gradual de apontamentos após marcos de cumprimento).
Checklist documental do consumidor
- Renda: holerites, extratos, IRPF, comprovantes de benefícios.
- Despesas essenciais: moradia, saúde, educação, transporte (notas/recibos).
- Mapa de dívidas: credor, saldo, taxa, CET, parcelas vincendas, garantias e data do contrato.
- Histórico de boa-fé: pagamentos pretéritos, e-mails de negociação, protocolos de Procon.
- Proposta de mínimo existencial justificada e planilha de orçamento familiar.
Limites, controvérsias e estratégias práticas
Não há “falência civil” padronizada
Com o CPC/2015 deixou de existir um rito nacional clássico de insolvência civil como no CPC/1973. A prática forense evoluiu para execuções concentradas e mecanismos do CDC. Há discussões acadêmicas e decisões pontuais sobre execução universal ou concurso de credores em hipóteses extremas, mas a via normalizada para pessoa física superendividada hoje é a repactuação global do CDC, combinada com renegociações extrajudiciais.
Contratos com garantia real e moradia
Em geral, evita-se desconstituir garantias legítimas (ex.: habitação), preferindo-se acomodar o fluxo no plano e ajustar encargos acessório/seguro embutido quando abusivos.
Consignado e descontos em folha
É possível reordenar percentuais, limitar descontos e sincronizar com a parcela única do plano, preservando o mínimo existencial e coibindo refinanciamentos sucessivos sem transparência.
Fintechs e BNPL
Exigem provas detalhadas do CET e da cronologia dos contratos. Priorize comparativos objetivos de taxa e custo total para demonstrar onerosidade excessiva e propor redução razoável.
Boas práticas na petição e na audiência
- Levar planilha única com cenário antes/depois do plano e evidência do CET real por credor.
- Fixar parcela total que caiba no orçamento e cláusula de revisão se a renda variar ±20%.
- Requerer suspensão de cobranças e bloqueio de assédio enquanto durar a negociação.
- Prever gatilhos de compliance para credores (ajuste de cadastros e cobrança dentro do plano).
Fluxo resumido da reorganização do passivo pessoal (CDC)
Tópicos rápidos para atuação imediata
- Mapeie 100% das dívidas (inclusive digitais) e pause novas contratações até fechar o plano.
- Calcule o mínimo existencial com base em documentos (não chute valores) e justifique cada rubrica.
- Peça suspensão de cobranças e de descontos abusivos que inviabilizem a proposta.
- Negocie CET e encargos com comparativos objetivos; priorize essencialidade de gastos.
- Programe reabilitação do crédito por marcos (ex.: 6, 12, 24 meses de adimplência).
Conclusão: reorganizar dívidas com dignidade não é “privilégio empresarial”
Embora a recuperação judicial da Lei 11.101/2005 seja exclusiva de empresários, o consumidor pessoa física dispõe, hoje, de um arcabouço robusto para reorganizar passivos sem destruir a própria subsistência. O procedimento de repactuação do CDC permite conciliação multilateral, plano judicial quando necessário, redução de encargos e monitoramento, tudo à luz da dignidade da pessoa humana e da preservação do mínimo existencial. Ao combinar boa-fé, provas consistentes e uma proposta exequível, a pessoa superendividada tem condições reais de recomeçar, enquanto fornecedores — por dever legal — devem praticar crédito responsável e cooperar para a sustentabilidade do plano.
Base técnica (fontes legais)
- Lei nº 14.181/2021 — reforma do CDC e do Estatuto do Idoso para prevenção e tratamento do superendividamento.
- CDC (arts. 4º, 6º, 39, 51, 54-A a 54-G, 104-A e 104-B) — repactuação global, audiência com credores e preservação do mínimo existencial.
- Lei nº 11.101/2005 — não aplicável a pessoas físicas não empresárias; regime próprio para empresários e sociedades empresárias.
- CPC/2015 — regramento de execução e tutela coletiva/individual; inexistência de rito nacional de “insolvência civil” padronizado, prevalecendo soluções do CDC e da execução concentrada.
- Finalidade: permitir que pessoas físicas superendividadas reorganizem suas dívidas de consumo sem comprometer o mínimo existencial.
- Base legal: Lei nº 14.181/2021, que alterou o Código de Defesa do Consumidor (arts. 54-A a 54-G e 104-A/B).
- Quem pode requerer: consumidor de boa-fé que não consegue pagar suas dívidas de consumo mantendo despesas básicas.
- O que pode incluir: cartões de crédito, empréstimos pessoais, financiamentos, contas de serviços essenciais.
- O que fica fora: pensão alimentícia, tributos, multas, dívidas trabalhistas e créditos com má-fé.
- Etapas do processo: requerimento judicial → audiência de conciliação → plano de pagamento → homologação judicial.
- Prazo médio: plano geralmente limitado a até 5 anos, ajustado à renda e às necessidades básicas do devedor.
- Objetivo: preservar o mínimo existencial, restabelecer o equilíbrio financeiro e evitar exclusão social.
- Direitos do consumidor: negociação coletiva, suspensão de cobranças abusivas e acesso a programas de reabilitação do crédito.
- Boas práticas: comprovar boa-fé, juntar documentos de renda e gastos essenciais, propor plano realista e buscar conciliação.
FAQ — Recuperação judicial de pessoas físicas superendividadas (sem acordeão)
Pessoas físicas podem pedir recuperação judicial?
Não nos moldes da Lei nº 11.101/2005. Essa lei é destinada a empresários e sociedades empresárias. No caso de pessoas físicas não empresárias, aplica-se o procedimento de repactuação global de dívidas previsto na Lei nº 14.181/2021 (reforma do CDC), que funciona como uma “recuperação civil” voltada para consumidores superendividados.
O que é a repactuação global de dívidas?
É um procedimento judicial em que o consumidor apresenta um pedido para reorganizar todas as dívidas de consumo de boa-fé, com base em sua capacidade de pagamento. O juiz pode convocar todos os credores para uma audiência única de conciliação e aprovar um plano judicial compulsório quando não houver acordo.
Quais são os principais requisitos para o pedido?
O consumidor deve comprovar boa-fé, renda comprovada, mínimo existencial comprometido e relação completa de todas as dívidas. É necessário juntar comprovantes de renda, despesas básicas e histórico de tentativas de negociação com os credores.
O que acontece após o pedido?
O juiz designa uma audiência global com os credores. Nessa fase, busca-se um acordo coletivo. Se não houver consenso, o magistrado pode impor um plano judicial de pagamento, respeitando a dignidade do consumidor e limitando os descontos para preservar o mínimo existencial.
Quais dívidas podem ser incluídas?
Podem ser incluídas dívidas de consumo como cartão de crédito, empréstimo pessoal, cheque especial, crediário e serviços essenciais (energia, água, internet). Ficam fora as pensões alimentícias, tributos, indenizações por ilícito doloso e contratos firmados com má-fé.
Qual a diferença entre repactuação e falência civil?
A falência civil, antiga figura do CPC/1973, foi abolida. Atualmente, a repactuação global substitui esse modelo, priorizando a preservação da dignidade e o reequilíbrio econômico, sem liquidação forçada de bens.
O plano judicial pode reduzir juros e alongar prazos?
Sim. O juiz pode autorizar redução de encargos, parcelamento e readequação de prazos quando comprovada boa-fé e capacidade limitada de pagamento, sempre respeitando a proporcionalidade entre credores.
Durante o processo, o consumidor ainda pode ser cobrado?
O juiz pode determinar a suspensão das cobranças e execuções relacionadas às dívidas incluídas no plano até a homologação da repactuação. Essa medida protege o consumidor de assédio e acúmulo de juros enquanto negocia.
Como é calculado o mínimo existencial?
Não há valor fixo na lei. O cálculo deve considerar moradia, alimentação, saúde, transporte e educação, respeitando o padrão de vida mínimo e a renda comprovada. O juiz avalia cada caso com base em documentos e despesas apresentadas.
Quem pode auxiliar nesse procedimento?
O consumidor pode buscar ajuda na Defensoria Pública, Procon ou com um advogado especializado em direito do consumidor, que auxiliará na elaboração do plano e na coleta de provas para o processo.
Base técnica (fontes legais)
- Lei nº 14.181/2021 — dispõe sobre a prevenção e tratamento do superendividamento do consumidor.
- Código de Defesa do Consumidor — arts. 4º, 6º, 39, 51, 54-A a 54-G e 104-A/B.
- Lei nº 11.101/2005 — aplicável exclusivamente a empresários e sociedades empresárias.
- CPC/2015 — regula o procedimento e execução civil, sem prever falência civil de pessoa física.
Aviso importante
Este material tem caráter informativo e visa explicar os mecanismos legais existentes para pessoas físicas superendividadas. Embora baseado em leis e decisões atuais, não substitui a consulta a um(a) advogado(a) ou Defensoria Pública. Cada caso exige análise individualizada de documentos, rendimentos e negociações, pois as soluções judiciais dependem da situação concreta do consumidor.