Fornecimento de Medicamentos de Alto Custo pelo Estado: Entenda seus Direitos e Como Garantir o Acesso
Fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado: o que é, quando cabe e como viabilizar
O direito à saúde é direito social (art. 6º) e dever do Estado (art. 196) na Constituição Federal, concretizado por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Quando a terapêutica necessária tem preço elevado — os chamados medicamentos de alto custo —, surgem dúvidas sobre quem deve fornecer, quais critérios técnicos e jurídicos precisam ser atendidos e como comprovar a necessidade. Este guia prático reúne fundamentos constitucionais, normas infralegais e entendimentos consolidados de STF/STJ para orientar a atuação administrativa e judicial, com roteiros, checklists e quadros informativos.
Base constitucional e arranjo do SUS
O SUS organiza-se pelos princípios de universalidade, integralidade, equidade, regionalização e hierarquização (CF, arts. 196–200; Lei 8.080/1990
). A assistência farmacêutica integra a atenção à saúde, devendo garantir acesso racional e seguro aos fármacos necessários. A Lei Complementar 141/2012 disciplina o financiamento; o Decreto 7.508/2011 define instrumentos como RENASES (serviços) e RENAME (medicamentos), além dos PCDT (Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas).
- Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF): grupo de fármacos de maior complexidade e valor, com critérios de inclusão e monitoramento próprios; requer processo administrativo com formulários e laudos padronizados.
- PCDT/RENAME: indicam linhas de cuidado, passo a passo de uso, posologias e situações de exceção.
- CONITEC: avalia a incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde, considerando eficácia, segurança, custo-efetividade e impacto orçamentário.
Quem responde: legitimidade e solidariedade federativa
O STF consolidou que qualquer ente federado (União, estados, DF ou municípios) pode ser demandado para garantir prestações do SUS, em regime de responsabilidade solidária. Na prática, o cidadão pode ajuizar a ação contra o ente mais próximo (ex.: estado/município) sem prejuízo de redesenho interno do financiamento/execução. Em demandas envolvendo medicamentos excepcionais ou importados, é comum a presença da União pela competência regulatória da Anvisa e políticas farmacêuticas nacionais.
Critérios consolidados na jurisprudência
Requisitos do STJ (Tema Repetitivo 106)
O STJ firmou requisitos objetivos para o fornecimento judicial de medicamentos não padronizados/alto custo:
- Laudo médico circunstanciado: detalha diagnóstico (CID), justificativa técnica do fármaco proposto, falha/contraindicação das alternativas do SUS e prognóstico sem o tratamento;
- Incapacidade financeira do paciente/família de arcar com o custo (comprovantes de renda e orçamento do tratamento);
- Registro sanitário na Anvisa (salvo hipóteses excepcionais julgadas pelo STF para fármacos sem registro, mas com forte evidência e pedido pendente).
Parâmetros do STF
- Responsabilidade solidária dos entes e acesso universal (temas constitucionais sobre SUS e repartição de competências);
- Para medicamentos sem registro na Anvisa, a regra é a vedação, admitindo-se exceção extraordinária com: inexistência de substituto registrado, evidência de eficácia/segurança, pedido de registro em trâmite e imprescindibilidade comprovada;
- Preferência por equivalentes terapêuticos e observância a PCDT/RENAME, sem engessar a avaliação clínica individual.
Via administrativa: como instruir o pedido no CEAF
Antes de judicializar, recomenda-se esgotar a via administrativa. Isso acelera a entrega quando cabível e fortalece a prova na ação, caso haja negativa. O fluxo típico inclui:
- Consulta com especialista da rede, emissão do Laudo/Prescrição padronizado do Componente Especializado;
- Reunião de documentos: exames, histórico terapêutico, justificativas, formulários oficiais;
- Protocolo no alto custo do estado/município; obtenção de número de processo e prazo de resposta;
- Se deferido, inclusão em cronograma de dispensação com monitoramento de adesão e efeitos adversos;
- Se indeferido, coleta de decisão escrita (motivo) para subsidiar eventual tutela judicial.
- Relatório médico com CID, evolução, terapias tentadas, eficácia e reações;
- Protocolo/PCDT correspondente e razões da exceção (se for o caso);
- Posologia, duração estimada, cálculo de dose por peso/SC;
- Orçamento por ciclo/mês e estimativa anual de custo;
- Documentos socioeconômicos (capacidade de pagamento);
- Evidências científicas (sumário de estudos, diretrizes de sociedades médicas);
- Registro na Anvisa e apresentações existentes no Brasil.
Quando judicializar: tutelas de urgência e desenho da demanda
Frustrada a via administrativa — por negativa ou demora injustificada —, pode-se ajuizar obrigação de fazer com pedido de tutela de urgência para fornecimento imediato, desde que demonstrados probabilidade do direito (documentação robusta) e perigo de dano (risco de agravamento/óbito).
Peças e pedidos usuais
- Fornecimento do medicamento específico ou do princípio ativo (admitindo-se equivalente terapêutico com anuência médica);
- Fixação de prazo para entrega e astreintes (multa diária) por descumprimento;
- Possibilidade de ressarcimento caso o paciente tenha custeado doses por urgência;
- Encaminhamento para Rede Assistencial mais próxima com logística de dispensação e acompanhamento;
- Indicação de fontes orçamentárias e planejamento quando pertinente (sem sub-rogação do gestor).
Economia, equidade e sustentabilidade
Medicamentos de alto custo pressionam orçamentos estaduais/municipais. As cortes têm buscado equilibrar o caso concreto com a coletividade, estimulando: aquisição centralizada, priorização de genéricos e biossimilares quando intercambiáveis; avaliação de tecnologias (CONITEC) e negociação de preço; e o monitoramento de resultados em saúde. Esses vetores não suprimem o direito individual, mas orientam soluções mais custo-efetivas.
Biossimilar não é idêntico ao biológico de referência, mas deve demonstrar alta similaridade em qualidade, segurança e eficácia. A substituição automática depende de regramento e anuência clínica. Muitos precedentes têm autorizado equivalente terapêutico para reduzir custos, desde que garantido o desfecho clínico.
Prova técnica: e-NatJus, CONITEC e literatura científica
Pareceres do e-NatJus (núcleo de apoio técnico do CNJ) e relatórios da CONITEC são frequentemente citados em decisões. Eles não substituem o juízo clínico do médico assistente, mas orientam sobre eficácia real, desfechos relevantes e custo-efetividade. Em juízos de urgência, anexar nota técnica e-NatJus coerente com o caso concreto reforça a plausibilidade.
Exemplo didático: etapas que costumam acelerar a concessão
As barras acima são ilustrativas (não estatísticas); servem para orientar a priorização documental.
Questões recorrentes em alto custo
Medicamento fora do PCDT/RENAME
É possível obter judicialmente quando houver imprescindibilidade individual, falha de alternativas padronizadas e evidências robustas. A decisão pondera impacto coletivo, podendo autorizar princípio ativo ou equivalente.
Uso off-label
Pede maior rigor probatório: diretrizes, estudos controlados, posição de sociedades médicas e justificativa personalizada. Sem evidência robusta, a negativa tende a prevalecer.
Medicamento sem registro na Anvisa
Regra: não se concede. Exceções examinadas pelo STF exigem inexistência de substituto, pedido de registro em trâmite, evidência de eficácia/segurança e necessidade vital. Em geral, a União é chamada ao processo.
Importação direta e logística
Quando o fármaco é importado, a decisão costuma fixar prazo razoável para aquisição e estabelece pontos oficiais de dispensação, com farmacovigilância e relatórios de uso.
Substituição por biossimilar
Admite-se se houver equivalência e segurança, com ciência do médico. O objetivo é sustentabilidade sem sacrificar o resultado terapêutico.
Roteiro prático para o paciente e para o advogado
- Conseguir relatório clínico detalhado com justificativa da necessidade e falha das alternativas;
- Reunir exames, histórico terapêutico e orçamento do medicamento;
- Protocolar pedido no CEAF e guardar nº de protocolo e resposta;
- Documentar gastos emergenciais (notas fiscais) para eventual reembolso;
- Manter adesão e relatórios de acompanhamento para renovar a dispensação.
- Checar PCDT e posição da CONITEC sobre a tecnologia;
- Anexar parecer e-NatJus compatível com o caso;
- Fundamentar com STJ Tema 106 (requisitos) e precedentes do STF (solidariedade; registro Anvisa);
- Formular pedidos com prazo, astreintes e possibilidade de equivalente terapêutico;
- Indicar rede de dispensação e monitoramento para reduzir risco de descumprimento.
Estimativa de custo e planejamento terapêutico
O planejamento ajuda o magistrado e o gestor a dimensionarem o impacto: dose por kg/SC, número de ciclos, monitorização laboratorial e eventuais internações. Indicar custo por mês e por ano, com cenário de descontinuação por resposta ou troca por equivalentes, favorece soluções sustentáveis.
- Atualizar PCDT/RENAME com janelas regulares de revisão;
- Usar linhas de cuidado claras e teleconsultoria para dúvidas de elegibilidade;
- Firmar compras compartilhadas ou acordos de acesso gerenciado quando viável;
- Transparência de filas e prazos nos portais de saúde;
- Integração com Farmacovigilância e registro de desfechos.
Conclusão
O fornecimento de medicamentos de alto custo é expressão concreta do direito fundamental à saúde, mas precisa ser conduzido com rigor técnico e responsabilidade coletiva. A via administrativa bem documentada, aliada a laudos clínicos precisos, pareceres técnico-científicos (e-NatJus/CONITEC) e aos parâmetros jurisprudenciais (STJ Tema 106 e diretrizes do STF), tende a viabilizar decisões rápidas, seguras e sustentáveis. Nos casos em que a judicialização é inevitável, pedidos focados em imprescindibilidade individual, registro sanitário e equivalentes terapêuticos — quando apropriado — costumam conciliar a urgência do paciente com a eficiência do SUS. Em última análise, a proteção da vida e da dignidade exige prova robusta, planejamento e cooperação federativa.
Guia rápido: o fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado segue normas constitucionais e administrativas. Veja o passo a passo e os principais cuidados para garantir o direito com segurança jurídica.
- 1. Reúna documentos médicos: obtenha relatório completo com diagnóstico (CID), justificativa técnica e falha das alternativas do SUS.
- 2. Verifique se o medicamento consta na RENAME: a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais define o que é fornecido regularmente.
- 3. Consulte o PCDT: os Protocolos Clínicos indicam tratamentos e medicamentos padronizados pelo SUS.
- 4. Peça via administrativa: protocole o requerimento no setor de alto custo da Secretaria de Saúde com cópia dos exames e prescrições.
- 5. Aguarde resposta formal: registre o protocolo e o prazo. Caso haja negativa, exija o motivo por escrito.
- 6. Judicialize se necessário: se o medicamento for essencial e o pedido negado, é possível acionar a Justiça com relatório médico e prova de incapacidade financeira.
- 7. Inclua parecer técnico: laudos do e-NatJus e CONITEC fortalecem o pedido e agilizam decisões.
- 8. Acompanhe a dispensação: mantenha registro de entregas, reações adversas e resultados clínicos.
- 9. Solicite renovação quando vencer o prazo: atualize exames e relatórios antes do término do ciclo terapêutico.
- 10. Prefira sempre medicamentos equivalentes: biossimilares e genéricos reduzem custos e aceleram o fornecimento.
Essas informações têm caráter educativo e não substituem a orientação de profissionais da saúde ou da advocacia especializada. Sempre consulte o médico responsável e, em caso de negativa do Estado, procure um advogado ou a Defensoria Pública para análise do seu caso concreto.
Quem tem obrigação de fornecer medicamentos de alto custo: União, Estado ou Município?
De forma geral, a obrigação é solidária entre os entes federativos. O cidadão pode acionar qualquer um deles. Na prática, a execução costuma ser direcionada ao ente com estrutura para a assistência farmacêutica de referência (normalmente o Estado), mas a solidariedade permite redirecionamento se necessário.
Quais são os requisitos jurídicos mais aceitos para obter medicamento não padronizado pelo SUS?
- Laudo médico circunstanciado (CID, evolução, justificativa da escolha e necessidade do fármaco).
- Incapacidade financeira do paciente para custear o tratamento.
- Inexistência de substituto terapêutico equivalente nas listas oficiais (RENAME/PCDT) ou ineficácia comprovada das alternativas do SUS.
- Registro na Anvisa do medicamento pleiteado.
O que é RENAME e PCDT e por que importam?
RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) e os PCDT (Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas) definem os fármacos e esquemas padronizados pelo SUS. Estar dentro deles facilita o fornecimento administrativo; fora deles, geralmente é preciso demonstrar necessidade excepcional e, muitas vezes, recorrer ao Judiciário.
Quais documentos devo juntar no pedido administrativo e/ou judicial?
- Relatório médico detalhado e atualizado (CID, dose, tempo de uso, riscos e urgência).
- Receita dentro do prazo de validade e exames comprobatórios.
- Comprovantes de renda/hipossuficiência e orçamentos de farmácias (quando cabível).
- Evidências de falha/intolerância às alternativas padronizadas (quando existirem).
- Parecer técnico de apoio (e-NatJus ou notas técnicas/CONITEC) quando possível.
Como funciona a negativa administrativa? Vale a pena insistir antes de judicializar?
Sim. Protocole o pedido na Secretaria de Saúde, obtenha número de protocolo e peça decisão fundamentada (com base em lista/PCDT ou ausência de critérios). A negativa escrita ajuda a instruir eventual ação judicial e, por vezes, pode ser revertida em instâncias administrativas internas.
É possível obter liminar para início imediato do tratamento?
Em hipóteses de risco de agravamento do quadro ou perigo de dano irreparável, muitos juízes concedem tutela de urgência para início do fornecimento, exigindo os requisitos médicos e o registro Anvisa. O cumprimento pode ser fixado com multa diária (astreintes).
Medicamentos experimentais ou sem registro na Anvisa podem ser exigidos?
Via de regra, não. A ausência de registro na Anvisa costuma impedir o fornecimento, salvo hipóteses muito excepcionais (uso compassivo com autorização específica e fundamentação técnica robusta). A comprovação científica de eficácia/segurança é elemento central.
O Estado pode substituir a marca prescrita por genérico ou biossimilar?
Pode, se houver equivalência terapêutica reconhecida e não houver contraindicação técnica para o caso concreto. O médico assistente deve justificar a necessidade de marca específica quando for realmente indispensável (ex.: resposta individual, imunogenicidade em biológicos).
Quem custeia insumos relacionados (seringas, material para infusão, monitoramento)?
Itens indissociáveis ao tratamento costumam ser incluídos no fornecimento (insumos, dispositivos e, quando indicado, transporte para aplicação ou serviço de home care limitado ao procedimento), conforme prescrição e protocolos locais.
Que prazos são razoáveis para o fornecimento após decisão?
Variam conforme logística e se há compra emergencial. Em medidas de urgência, os prazos podem ser de 48–10 dias; em rotinas de aquisição, podem chegar a algumas semanas. Decisões judiciais geralmente fixam prazo específico e multa por descumprimento.
- Constituição Federal: arts. 6º (direitos sociais) e 196–198 (saúde como direito de todos e dever do Estado; organização do SUS).
- Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) e Lei nº 12.401/2011 (incorporação de tecnologias; CONITEC).
- RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais; PCDT – Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (Ministério da Saúde).
- Registro Anvisa – exigência para comercialização e uso terapêutico.
- STF, Tema 793 – responsabilidade solidária dos entes federativos no fornecimento de medicamentos/insumos de saúde.
- STJ, Tema 106 (repetitivo) – critérios para fornecimento de medicamento não padronizado: laudo médico, ausência/ineficácia de alternativa no SUS, registro Anvisa e incapacidade econômica do paciente.
- e-NatJus – Notas técnicas de apoio à decisão clínica e judicial em saúde.
Lembre-se: políticas e listas do SUS sofrem atualizações periódicas. Antes de litigar, confira a situação mais recente do fármaco na RENAME/PCDT e avalie com equipe médica a possibilidade de esquemas equivalentes já incorporados.