Au Pair no Exterior: seus direitos, contrato ideal e como evitar abusos
Panorama: quem é a au pair e por que os “direitos trabalhistas” variam no exterior
No exterior, au pair é, em regra, uma jovem (ou jovem adulto) que reside temporariamente na casa de uma família anfitriã para ajudar no cuidado de crianças e atividades correlatas, recebendo “pocket money” (mesada), alimentação, moradia e, muitas vezes, apoio para estudos de idioma. Diferente de uma babá formal, o instituto da au pair nasceu como programa cultural, e por isso a legislação de cada país pode tratá-lo fora do regime laboral comum. Ainda assim, há direitos mínimos que decorrem de normas migratórias, de proteção à infância, de saúde e segurança, de não discriminação e, em vários países, de leis trabalhistas gerais quando a relação ultrapassa os contornos do intercâmbio.
- Fonte de direitos: legislação migratória (visto/autorizações), contratos do programa, leis nacionais (trabalho, previdência, saúde e segurança), convenções internacionais (direitos humanos, combate ao tráfico e trabalho forçado) e normas locais/regionais (p. ex., União Europeia, províncias canadenses, estados norte-americanos).
- Zona cinzenta: quando a carga de trabalho, controle e subordinação de fato se aproximam de emprego doméstico, tribunais podem requalificar a relação e aplicar o direito do trabalho, com salários, horas extras, férias e contribuições sociais.
- Boa-fé e dignidade: independentemente da classificação jurídica, au pairs têm direito a um ambiente seguro, livre de assédio, com descanso adequado, alimentação e moradia condizentes com a saúde e a dignidade humanas.
Quadro – Essência para a au pair brasileira antes de aceitar a vaga
- Entender qual regime se aplica no país (programa cultural x emprego doméstico);
- Exigir acordo escrito com escopo de tarefas, carga horária, folgas, “pocket money”, quarto privativo e estudos;
- Confirmar seguro-saúde, cobertura de acidentes e políticas de emergência;
- Checar visto/autorizações e limites (horas, cursos, trocas de família, duração do programa);
- Guardar cópias, e-mails e registros (horas trabalhadas, incidentes, pagamentos, cursos).
Estrutura mínima do contrato: cláusulas que protegem
Objeto e tarefas
Defina claramente o que é cuidado infantil (rotinas, acompanhamento escolar, refeições da criança, brincadeiras) e o que é “ajuda leve” doméstica (organização de brinquedos, louça ligada às refeições das crianças, lavanderia das crianças). Tarefas que descaracterizam o programa (limpeza pesada, jardinagem, cuidar de pets como função principal, dirigir longas distâncias diariamente para serviços da família) devem ser vedadas ou remuneradas à parte sob regime específico.
Jornada e descanso
- Limite semanal: programas legítimos estipulam teto de horas semanais e intervalo diário entre jornadas. Mesmo onde não há CLT, recomenda-se espelhar padrões internacionais de descanso diário mínimo e 1 a 2 dias livres por semana (com direito a domingo ao menos mensalmente).
- Noite e plantões: escalar “noite de babá” só é lícito com prévio acordo, limites de frequência e compensação específica.
Hospedagem e alimentação
Quarto privativo, acesso a banheiros em condições de higiene, internet razoável, alimentação nutritiva e respeito a restrições alimentares. Condicionar comida ou aquecimento a desempenho é prática abusiva e pode configurar trabalho degradante.
Pocket money e educação
Ao lado do apoio cultural (curso de idioma ou créditos educacionais), a mesada deve estar em valor compatível com o custo de vida local e com as horas exigidas. Em alguns países, famílias/organizações custeiam parte do curso e transporte. Evite cláusulas que multem a au pair por sair do programa sem causa — prefira prever mediação e aviso prévio.
Seguro, acidentes e saúde mental
Seguro que cubra acidentes, doenças e, preferencialmente, responsabilidade civil durante atividades com crianças. Programas sérios incluem rede de apoio, telefone 24h e políticas de prevenção a assédio e violência doméstica.
Troca de família e término
Prever rematch sem punição, com prazos e alojamento temporário garantidos por agência/organização. Término antecipado: devolução proporcional de valores cobrados indevidamente, passagens de retorno e guias para regularizar a situação migratória.
Migração e compliance: visto, fronteira e limites
O visto define o que é permitido: natureza da atividade (cultural ou trabalho), carga horária, possibilidade de estudar, duração da estadia, se pode trocar de família/programa e se há cota anual. Atividades fora do escopo do visto podem resultar em irregularidade migratória, multas para a família/organização e até deportação. Guarde passaporte, formulário de adesão, apólice de seguro e contatos da Autoridade Competente (agência nacional, ministério ou imigração).
Checklist migratório
- Qual é o visto/autoridade que rege o programa? Existem agências credenciadas obrigatórias?
- Há limites de horas, idade e requisitos de idioma para a au pair?
- Quais documentos de background check e saúde são exigidos?
- Qual o prazo máximo de permanência? É possível prorrogar?
- Como funciona a troca de família (rematch) e quem custeia moradia nesse período?
Proteções universais: saúde e segurança, assédio e discriminação
Saúde e segurança no trabalho doméstico
Mesmo como intercâmbio, a au pair realiza tarefas com riscos (cozinha, transporte de crianças, limpeza de materiais químicos). Boas práticas incluem instrução prévia, fornecimento de EPI doméstico (luvas, máscaras para uso de químicos), cadeirinhas homologadas e políticas claras de uso de carro da família (seguro, manutenção, combustível, multas).
Assédio, violência e canais de denúncia
Assédio sexual, assédio moral, violência doméstica e discriminação por origem, raça, orientação sexual ou religião são ilegalidades em praticamente todos os ordenamentos. O contrato deve indicar canais independentes (agência, autoridade pública, linhas de ajuda) e medidas protetivas imediatas (mudança de residência, atendimento médico e psicológico, polícia).
Plano de segurança pessoal
- Lista de contatos de emergência (agência 24h, polícia, embaixada/consulado do Brasil, amigos, rede local);
- Cópias digitais de documentos em nuvem segura;
- Palavra-código com amigos para sinalizar risco;
- Mapeamento de abrigo temporário em rematch;
- Registros contemporâneos de incidentes (mensagens, fotos, horários).
Quando a relação vira emprego: requalificação e consequências
Se a família impõe controle e subordinação típicos de emprego (escala rígida além dos limites do programa, tarefas extensas de limpeza, metas, ausência de caráter cultural), há risco de requalificação. Cada país tem critérios, mas os indícios comuns são: poder diretivo intenso, continuidade, pessoalidade e contraprestação econômica predominante. Consequências possíveis: salários retroativos, horas extras, férias, contribuições previdenciárias e multas por infrações laborais e migratórias.
Como documentar
- Planilha ou aplicativo de horas com tarefas;
- Comprovantes de pagamentos e mensagens com instruções diárias;
- Fotos/descrições de tarefas além do escopo infantil;
- Testemunhos (outras au pairs, vizinhos, professores das crianças).
Impostos, previdência e benefícios sociais
Dependendo do país, a au pair pode ter de declarar renda (mesada + benefícios em espécie) e recolher tributos, ainda que a taxa seja reduzida. Em regimes que requalificam a relação, podem ser devidos INSS/seguro social, seguro-desemprego e férias remuneradas. Informe-se com antecedência: algumas autoridades divulgam guias anuais para au pairs e famílias, indicando quem recolhe, prazos e formulários.
Boas práticas financeiras
- Conta bancária em seu nome e recibos de pagamentos;
- Guia de declaração de impostos local e recibos do curso/transportes;
- Registro do valor estimado de moradia e alimentação fornecidas (benefícios em espécie).
Países e linhas gerais de elegibilidade e limites (sem números rígidos)
Sem substituir a consulta oficial, eis um mapa de navegação para au pairs brasileiras:
Estados Unidos
- Programa cultural regulado por autoridade federal de intercâmbio; participação exige agências credenciadas, curso educacional e limites de horas por semana e por dia.
- Mesada mínima e apoio educacional são definidos por regulamentos/termos das sponsors e podem ser atualizados; verifique fontes oficiais antes de fechar contrato.
- Troca de família (rematch) é possível com regras estritas e prazos curtos; seguro-saúde obrigatório.
União Europeia (visão geral)
- Muitos países possuem esquema específico de au pair (residência para intercâmbio cultural) com limites de horas semanais, requisito de curso de idioma e pocket money.
- Exigência de quarto privativo, alimentação e contrato padrão. Em alguns, a família deve contratar seguro saúde/RC para a au pair.
- Descumprimento grave pode levar a requalificação como emprego doméstico com aplicação de legislação trabalhista local.
Reino Unido
- Regimes migratórios mudam com frequência; checar se há rota de visto compatível (programas juvenis, nacionalidades elegíveis, acordos bilaterais) e regras de trabalho/estudo durante a estadia.
Canadá
- Parte das oportunidades passa pelo guarda-chuva de experiências internacionais; províncias têm competências sobre trabalho doméstico, horas, salário e acomodação.
Austrália/Nova Zelândia
- Programas juvenis com permissão de trabalho limitada; requisitos de seguro, curso e controles variam. Fique atenta a salário mínimo local caso a relação seja classificada como emprego.
Gestão de riscos e resolução de conflitos
Prevenção contratual
- Use anexos com rotinas das crianças, calendário escolar, regras de uso de carro, horários de celular/sono;
- Insira cláusula de mediação com agência/órgão público e prazos de resposta em 24–48h;
- Preveja troca de família sem multas e com hospedagem temporária.
Quando acionar autoridades
- Trabalho forçado, retenção de passaporte, violência, assédio ou riscos à criança: ligue para a polícia e informe a autoridade de imigração;
- Fraude por agência: procure órgãos reguladores do país e a Embaixada/Consulado do Brasil para orientação e proteção.
Mapa de contatos úteis
- Agência/organização credenciada (plantão 24h);
- Autoridade migratória local; polícia de emergência;
- Embaixada/consulado do Brasil; defensorias/ombudsman de trabalhadores migrantes;
- Serviços de proteção a crianças e violência doméstica.
Educação, idioma e integração cultural: direito e dever
Programas sérios exigem que a au pair frequente curso (geralmente idioma) por carga mínima. Além de obrigação, é um direito cultural: amplifica rede de apoio, fortalece autoestima e permite mobilidade para outras oportunidades. Inclua no contrato: quem paga o curso, valor limite, tempo liberado semanalmente, transporte, faltas justificadas e períodos de prova das crianças.
Transparência digital: controle de horas e privacidade
Aplicativos de acompanhamento de tarefas/horas são úteis, mas a família não pode violar privacidade da au pair (câmeras em quarto/banheiro são ilícitas; monitoramento de celular pessoal sem consentimento é abusivo). Em casas com câmeras em áreas comuns, exigir política escrita (finalidade, locais, armazenamento e acesso).
Quadro – Ferramentas que ajudam
- Agenda compartilhada (Google Calendar/Outlook) com rotinas das crianças;
- Planilha de horas (Sheets/Excel) e recibos mensais;
- App seguro para emergências e localização com consentimento explícito.
Indicadores práticos para avaliar se a relação é justa
- Horas e descanso reais aderem ao combinado? Há previsão e respeito a feriados/férias?
- Escopo se mantém no cuidado infantil? Tarefas extras são pontuais e consensuais?
- Ambiente é seguro, respeitoso e livre de assédio? Há quarto privativo e alimentação adequada?
- Educação: há tempo e apoio efetivos para o curso?
- Transparência financeira: pagamentos em dia, recibos, sem “descontos” arbitrários por alimentação/moradia.
Roteiro de ação em caso de violação
- Documente (horários, mensagens, fotos, recibos, testemunhos).
- Comunique por escrito à família e à agência (proponha solução concreta e prazo curto).
- Acione Autoridade Central/órgãos locais quando houver abuso, assédio, retenção de documentos ou risco às crianças.
- Busque rematch seguro ou saída assistida do programa, mantendo status migratório.
- Consulte advogado/serviço de assistência para reclamações formais (administrativas ou judiciais) e para recuperar valores devidos.
Conclusão: informação e contrato claro reduzem conflito e aumentam a troca cultural
Para au pairs brasileiras no exterior, conhecer regras de visto, limites de jornada, segurança e educação é o passo decisivo para uma experiência de qualidade. Embora o instituto seja cultural, a relação real pode adquirir traços trabalhistas e, nessa hipótese, normas de proteção a trabalhadores podem incidir para preservar a dignidade, o tempo de descanso e a saúde. Um contrato transparente, acompanhado de registros e canais de proteção, é a melhor garantia de que o intercâmbio cumpra seu propósito: aprender, conviver e crescer — sem abrir mão de direitos básicos.
Guia rápido – Direitos trabalhistas de au pairs brasileiras no exterior
- • O programa de au pair é cultural, mas pode gerar vínculo de trabalho se houver subordinação e controle de jornada.
- • Antes de viajar, confirme o tipo de visto, a carga horária e se o país reconhece formalmente o programa.
- • Exija contrato escrito com tarefas, jornada, folgas, remuneração (“pocket money”) e curso de idioma.
- • Verifique seguro saúde, cobertura de acidentes e regras de troca de família (rematch).
- • Documente horas de trabalho, pagamentos e condições de moradia; servem como prova em eventual requalificação trabalhista.
- • Jamais aceite retenção de passaporte ou descontos indevidos por moradia/alimentação.
- • A família deve garantir alimentação adequada e quarto privativo, conforme padrões internacionais.
- • Casos de assédio ou abuso devem ser denunciados à agência, à polícia e ao consulado brasileiro.
- • Alguns países exigem registro de residência e recolhimento de impostos mesmo no intercâmbio.
- • Leve sempre contatos de emergência da Embaixada/Consulado do Brasil e da agência 24h.
FAQ
Ser au pair é emprego formal?
Em muitos países o programa é cultural (com mesada e estudos), não emprego. Porém, se houver subordinação, jornada extensa e tarefas típicas de empregado doméstico, tribunais podem requalificar a relação e aplicar normas trabalhistas locais.
Quais direitos mínimos costumam existir mesmo no intercâmbio?
Quarto privativo, alimentação adequada, limites de horas semanais, dias de folga, seguro-saúde/acidentes e acesso a curso de idioma. A retenção de passaporte, assédio e trabalho degradante são proibidos.
O que deve constar no acordo escrito?
Descrição de tarefas, carga horária e noites de babysitting, pocket money, curso, folgas/feriados, uso de carro, regras de rematch, seguro e canais de denúncia. Evite cláusulas penais abusivas.
Quando há requalificação para emprego doméstico?
Quando prevalecerem poder diretivo do anfitrião, pessoalidade, habitualidade, controle de jornada e remuneração por trabalho, com tarefas além do cuidado infantil e sem componente educacional real.
Quem paga seguro e curso?
Varia por país e agência. Em modelos clássicos, a família/organização custeia parte do curso e mantém seguro obrigatório. Confirme por escrito antes do embarque.
Posso trocar de família (rematch)?
Sim, regras de rematch devem prever prazos, moradia temporária e manutenção do status migratório. Multas para impedir a troca são indício de abuso.
Há imposto ou contribuição social sobre a mesada?
Alguns países exigem declaração de renda e contribuições. Em requalificação, podem ser devidos salário mínimo, férias e previdência. Consulte guias oficiais locais.
Como registrar abusos ou emergências?
Contate a agência 24h, polícia local, órgão migratório e a Embaixada/Consulado do Brasil. Guarde provas (mensagens, horários, recibos, fotos).
Posso dirigir para a família?
Somente com habilitação válida, seguro e política escrita (rotas, manutenção, combustível, multas). Dirigir sem cobertura é risco grave.
Quais sinais mostram que a experiência é segura e justa?
Respeito ao quarto privativo, alimentação adequada, descanso real, curso garantido, pagamentos pontuais e diálogo transparente. Qualquer retenção de documentos é inadmissível.
Base técnica e fontes legais
- European Agreement on Au Pair Placement (1969) – Conselho da Europa (padrões contratuais e de proteção).
- ILO Convention No. 189 (Domestic Workers) e Recommendation No. 201 – proteção mínima para trabalho doméstico e requalificação.
- ILO Convention No. 190 – combate à violência e assédio no mundo do trabalho.
- Protocolo de Palermo – prevenção ao tráfico de pessoas e trabalho forçado.
- Regulamentos de programas Au Pair dos EUA (22 CFR Parte 62 – Exchange Visitor Program) — sponsors credenciados, seguro e limites de horas.
- Orientações nacionais e locais (UE/países europeus, Canadá, Austrália, Nova Zelândia) sobre vistos juvenis, horas máximas e pocket money.
- Guias de Embaixadas/Consulados do Brasil para brasileiros no exterior (emergências, proteção consular, rematch e repatriação).