Sociedade Cooperativa na Prática: Princípios, Atos, Capital e Regras que Garantem Segurança e Resultado
Conceito, finalidade e posição jurídica da sociedade cooperativa
A sociedade cooperativa é uma pessoa jurídica de direito privado, de natureza associativa e não mercantil, formada por pessoas que se unem voluntariamente para satisfazer necessidades e aspirações econômicas, sociais e culturais por meio de uma organização de propriedade conjunta e controle democrático. Diferentemente das sociedades empresárias tradicionais, cujo objetivo central é a remuneração do capital, a cooperativa existe para prestar serviços aos seus cooperados e melhorar as condições de produção, consumo, crédito, transporte, habitação, trabalho, entre outras, mediante a prática de atos cooperativos.
No sistema brasileiro, o regime jurídico das cooperativas é dado, em linhas gerais, pela Constituição Federal (que prestigia o cooperativismo e a autonomia das organizações), pela Lei Geral das Cooperativas (Lei nº 5.764/1971), pelo Código Civil (disposições específicas sobre cooperativas e normas gerais de pessoas jurídicas), além de leis setoriais — como as de cooperativas de crédito e de saúde — e pelos estatutos sociais de cada entidade.
Princípios do cooperativismo e sua projeção jurídica
O cooperativismo contemporâneo se orienta por princípios internacionalmente reconhecidos (derivados da tradição de Rochdale e de organismos como a Aliança Cooperativa Internacional) que também informam a interpretação do direito brasileiro. Na prática, esses princípios funcionam como vetores normativos para a criação, a gestão e o controle das cooperativas.
Adesão livre e voluntária
A filiação não pode ser discriminatória por motivos estranhos à finalidade da cooperativa. O estatuto define requisitos técnicos de ingresso e permanência (ex.: exercer determinada atividade, cumprir quotas-partes, aceitar normas internas), mas a regra é a porta aberta para quem comungue dos objetivos sociais e suporte as responsabilidades correspondentes.
Gestão democrática: um membro, um voto
O poder de deliberação na Assembleia Geral baseia-se na pessoa do cooperado, e não na quantidade de capital investido. Assim, grandes e pequenos cooperados têm a mesma influência decisória. É um traço que diferencia radicalmente a cooperativa das sociedades por ações (onde vigora o princípio da proporcionalidade ao capital).
Participação econômica dos membros
Os cooperados contribuem de forma equitativa para o capital social por meio de quotas-partes e controlam democraticamente sua destinação. Os resultados do exercício — as chamadas sobras ou perdas — são destinados conforme a lei e o estatuto: cobertura de perdas, constituição de fundos obrigatórios (como reserva e assistência técnica, educacional e social), e eventual rateio proporcional à utilização dos serviços (e não ao número de quotas), respeitados critérios objetivos aprovados em Assembleia.
Autonomia e independência
Embora cooperativas possam celebrar contratos com o Estado, com empresas e com instituições financeiras, sua autonomia organizativa e patrimonial deve ser preservada. A ingerência de terceiros não pode comprometer a governança democrática nem transformar a cooperativa em mera intermediária de interesses alheios (o que caracterizaria desvio de finalidade).
Educação, formação e informação
É função da cooperativa promover educação cooperativista e capacitar os membros, dirigentes e empregados, inclusive sobre riscos, direitos e deveres. Isso aumenta a qualidade da participação e reduz riscos de captura decisória por grupos informados de forma assimétrica.
Intercooperação
O sistema encoraja a criação de centrais, federações e confederações de cooperativas, bem como alianças com outras organizações do ecossistema, para ganhar escala, eficiência e capilaridade sem perder a identidade local dos empreendimentos singulares.
Interesse pela comunidade
Cooperativas equilibram sustentabilidade econômica com impacto social positivo em sua base territorial (emprego, renda, assistência técnica, preservação ambiental, apoio educacional), integrando metas de ESG ao planejamento.
- Porta aberta: estatuto com critérios objetivos e não-discriminatórios.
- Democracia interna: voto singular; mandatos definidos; prestação de contas.
- Resultados: prioridade aos fundos obrigatórios; sobras rateadas por uso do serviço.
- Autonomia: contratos com terceiros sem perda de controle pelos membros.
- Educação: orçamento anual para formação e comunicação transparente.
Regime jurídico estrutural: constituição, capital e responsabilidade
O processo de constituição inicia-se com assembleia de fundação, aprovação do estatuto social, eleição de administradores e conselho fiscal, levantamento do capital inicial subscrito e integralização mínima, além do registro nos órgãos competentes e obtenção de CNPJ. O estatuto é a “lei interna” da cooperativa e deve contemplar, entre outros itens, objeto, área de atuação, direitos e deveres dos cooperados, regras de admissão, demissão e exclusão, órgãos de administração e fiscalização, capital, fundos e responsabilidade dos membros.
Capital social: variabilidade e quotas-partes
O capital é dividido em quotas-partes, suscetível de variação pela entrada/saída de cooperados e pela integralização periódica. Não há emissão de ações, nem valorização especulativa das quotas: a remuneração do capital, quando prevista, é limitada pelo estatuto e pelas normas legais, mantendo a ênfase no uso dos serviços.
Responsabilidade dos cooperados
Conforme o estatuto, a responsabilidade pode ser limitada (até o valor das quotas) ou ilimitada (respondendo solidariamente pelas obrigações sociais, após esgotado o patrimônio da cooperativa), havendo ainda modelos intermediários. A clareza estatutária nessa matéria é essencial para proteger a confiança entre os membros e dar previsibilidade a credores.
Órgãos de governança
Os órgãos típicos são a Assembleia Geral (instância soberana), o Conselho de Administração/Diretoria (gestão executiva, conforme porte) e o Conselho Fiscal (fiscalização). Em cooperativas de maior porte é recomendável instituir comitês de auditoria, riscos e pessoas, além de políticas de integridade e gestão de conflito de interesses.
- Objeto social e definição dos atos cooperativos típicos.
- Critérios de admissão, demissão e exclusão.
- Capital social, integralização e responsabilidade (limitada/ilimitada).
- Órgãos, mandatos, inelegibilidades e prestação de contas.
- Política de sobras e perdas, fundos e rateio proporcional ao uso.
- Regras de solução de conflitos (ex.: mediação/arbitragem estatutária).
Atos cooperativos e operações com terceiros
Chama-se ato cooperativo a operação realizada entre a cooperativa e seus próprios cooperados para a consecução do objeto social (ex.: a cooperativa agroindustrial que recebe, processa e comercializa a produção do associado; a de trabalho que intermedeia contratos para prestação de serviços por seus membros; a de consumo que adquire bens para revenda ao cooperado). Já as operações com terceiros não cooperados possuem tratamento específico no estatuto e na lei, não podendo descaracterizar a finalidade precípua de atendimento aos membros. A diferenciação é relevante para governança, tributação e regulação setorial.
Classificações e ramos de atuação
Quanto à organização, as cooperativas podem ser:
- Singulares — base local, formada diretamente por pessoas físicas (e, em certos casos, jurídicas);
- Centrais ou federações — constituídas por cooperativas singulares para funções de integração e escala;
- Confederações — formadas por federações/centrais, de atuação nacional.
Em termos de ramos, destacam-se: agropecuário, crédito, saúde (médicas e odontológicas), transporte, consumo, trabalho e produção, infraestrutura (energia e telecom), habitacional, educacional, entre outros. Cada ramo pode ter marcos regulatórios próprios (p. ex., Sistema Financeiro Nacional para as de crédito).
Relações trabalhistas e societárias
O vínculo principal entre cooperativa e cooperado é societário, não empregatício. O cooperado não é empregado da cooperativa pelo simples fato de ser membro ou de prestar serviços através dela. Todavia, se a cooperativa for utilizada de modo fraudulento para intermediação de mão de obra, ignorando a autonomia do cooperado e os princípios cooperativistas, a jurisprudência admite a desconsideração do arranjo para reconhecer relações de emprego ou outras responsabilidades. A boa governança exige contratos transparentes com tomadores/fornecedores e documentação robusta das condições de participação.
Tributação: noções essenciais
Em matéria tributária, o ponto-chave é a distinção entre resultado da atividade cooperativa (atos com cooperados) e operações com terceiros. A legislação e a jurisprudência reconhecem especificidades para as cooperativas, especialmente no tocante ao resultado do ato cooperativo. Ainda assim, não existe “imunidade geral”: contribuições e impostos podem incidir conforme o tipo de operação, a base de cálculo e o ente tributante (União, Estados, Municípios). O planejamento tributário deve considerar a contabilização segregada de atos, receitas e custos, e observar obrigações acessórias próprias.
- Segregação contábil entre atos cooperativos e com terceiros.
- Política de sobras/perdas e fundos alinhada ao estatuto e à lei.
- Notas explicativas sobre critérios de rateio e bases de cálculo.
- Compliance setorial (SFN para crédito; ANS para saúde; ANEEL/ANATEL para infraestrutura etc.).
Transparência, integridade e gestão de riscos
Como organizações que administram recursos comuns e operam em rede, cooperativas precisam de um arcabouço de integridade compatível com seu porte: código de conduta, políticas de compras e contratação, prevenção a conflitos de interesses, controles internos, auditoria independente (quando aplicável), canais de denúncia e programas de compliance concorrencial (especialmente em ramos com grande participação de mercado local). A transparência com os cooperados — por meio de relatórios de gestão, assembleias informativas e educação financeira — reduz assimetria de informação e previne disputas internas.
Instrumentos de governança econômica: sobras, perdas e fundos
Encerrado o exercício, apura-se o resultado. Perdas devem ser cobertas conforme estatuto (com reserva ou rateio adicional). Sobras são destinadas primeiramente aos fundos obrigatórios previstos em lei e estatuto (por exemplo, fundo de reserva e fundo de assistência técnica, educacional e social) e, somente após, podem ser distribuídas aos cooperados na proporção das operações realizadas com a cooperativa (entregas, aquisições, horas trabalhadas, serviços utilizados etc.).
Cooperativas de crédito, saúde e outros regimes especiais
Alguns ramos têm disciplina própria mais intensa. As cooperativas de crédito, por exemplo, integram o Sistema Financeiro Nacional, sujeitam-se à supervisão do Banco Central e seguem normas prudenciais (capital, liquidez, governança, auditoria, gerenciamento de riscos). As cooperativas médicas e odontológicas, por sua vez, são alcançadas por normas de saúde suplementar e relações de consumo, exigindo cuidados especiais em rede credenciada, qualidade assistencial e informação ao usuário. Em infraestrutura (energia/telecom), há regramento setorial específico para concessões, tarifas e responsabilidade civil.
Processos decisórios e participação
A Assembleia é convocada conforme estatuto (ordinária e extraordinária), com quóruns definidos para instalação e deliberação (por exemplo, eleição de administradores, aprovação de contas e orçamento, revisão estatutária, fusão, incorporação, transformação e dissolução). O voto é pessoal e singular, sendo vedada a concentração de poder pelo aporte de capital. Em cooperativas com base territorial ampla, é possível adotar assembleias seccionais ou por delegados, desde que disciplinadas na lei/estatuto.
Transformação, fusão, incorporação e dissolução
A lei prevê mecanismos societários para reorganizações, sempre dependentes de decisão em Assembleia e de registro dos atos correspondentes. A dissolução pode ocorrer por deliberação dos cooperados, por decurso de prazo, por impossibilidade de funcionamento, por redução do número mínimo de membros, entre outras hipóteses. Segue-se a liquidação, com nomeação de liquidante, apuração do ativo e passivo e rateio de eventual saldo conforme as regras estatutárias (observado o tratamento dos fundos não distribuíveis conforme a lei).
Indicadores e “micro-gráfico” conceitual
Para avaliação de desempenho, cooperativas podem adotar indicadores de adesão (entradas/saídas de membros), intensidade de uso (participação média por cooperado), sustentabilidade (sobras/perdas, liquidez, alavancagem), governança (assiduidade às assembleias, renovação de conselhos) e impacto (empregos diretos, renda distribuída, projetos de educação). A comunicação desses dados reforça a confiança da base social e de stakeholders.
Ilustração conceitual (não numérica) das diferenças de governança.
Boas práticas para conformidade e perenidade
1) Estatuto e regulamentos claros
Atualize o estatuto para refletir a legislação e a realidade operacional; complemente com regulamentos internos (admissão, operações com terceiros, política de sobras, gestão de riscos) e manuais de processos.
2) Educação e comunicação
Promova formação contínua em finanças, governança e direitos/deveres do cooperado; disponibilize relatórios de desempenho e agendas assembleares com antecedência, em linguagem acessível.
3) Controles e auditoria
Implemente controles internos, segregação de funções, trilhas de auditoria e indicadores de risco compatíveis com o porte e o ramo de atuação. Avalie auditoria independente e auditoria cooperativa em federações/centrais.
4) Tecnologia e intercooperação
Use sistemas de gestão (ERP, CRM, BI) e plataformas digitais para governança de dados e comunicação com a base. Busque parcerias com outras cooperativas para compras coletivas, marketing, logística, capacitação e inovação.
Conclusão
A sociedade cooperativa combina racionalidade econômica com democracia participativa, oferecendo um modelo robusto para organizar produção, consumo, crédito, trabalho, saúde e infraestrutura. Seu regime jurídico próprio — centrado em princípios de adesão livre, gestão democrática, participação econômica e interesse comunitário — confere identidade e diferenciação em relação às sociedades empresárias. Quando bem desenhada e gerida, com estatuto claro, contabilidade segregada, programas de integridade e mecanismos de educação e intercooperação, a cooperativa tende a gerar valor sustentável para seus membros e para o território em que está inserida, conciliando competitividade, inclusão e impacto social positivo.
FAQ — Sociedade cooperativa: princípios e regime jurídico
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Cooperativa é pessoa jurídica de direito privado, de natureza associativa, criada para prestar serviços aos próprios membros com controle democrático (um membro = um voto) e destinação de resultados prioritariamente a fundos obrigatórios e, se previsto, rateio proporcional ao uso. Diferencia-se da sociedade empresária porque o objetivo central não é remunerar capital, e sim atender às necessidades dos cooperados por meio de atos cooperativos.
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Os princípios são: adesão livre, gestão democrática (voto singular), participação econômica (quotas-partes e retorno proporcional ao uso), autonomia, educação e informação, intercooperação e interesse pela comunidade. Eles orientam a redação do estatuto, os quóruns de assembleia, a destinação de sobras e a política de educação cooperativista.
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Ato cooperativo é a operação entre cooperativa e seus próprios membros para executar o objeto social (ex.: receber e comercializar a produção do cooperado). Tais atos têm tratamento jurídico específico na Lei 5.764/71, inclusive para fins tributários. Já operações com terceiros não cooperados seguem regime distinto, que deve ser delimitado no estatuto e na contabilidade.
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O capital é dividido em quotas-partes e pode variar com entrada/saída de membros. A responsabilidade pode ser limitada (até o valor das quotas) ou ilimitada, conforme o estatuto. As sobras do exercício destinam-se primeiro aos fundos legais e estatutários; somente depois podem ser distribuídas aos membros na proporção do uso dos serviços (e não do capital).
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O vínculo entre cooperativa e cooperado é societário, não empregatício. Contudo, se a cooperativa for utilizada de forma fraudulenta como mera intermediadora de mão de obra, pode haver reconhecimento de vínculo e responsabilizações. Ramos regulados (crédito, saúde, transporte, energia) exigem ainda compliance setorial e supervisão específica.
Base técnica (fontes legais)
- Constituição Federal — arts. 5º, XVIII (liberdade de associação), 146, III, “c” (ato cooperativo e tratamento tributário), 174, §2º (incentivo ao cooperativismo), 192 (sistema financeiro, para coops de crédito).
- Lei nº 5.764/1971 (Lei Geral das Cooperativas) — conceito, princípios, constituição, órgãos, capital, atos cooperativos (art. 79), sobras/fundos, operações com terceiros, responsabilidade e dissolução.
- Código Civil (Lei nº 10.406/2002) — arts. 1.093 a 1.096 (disposições sobre cooperativas) e normas gerais de pessoas jurídicas/assembleias.
- Lei Complementar nº 130/2009 — regime das cooperativas de crédito, supervisão do Bacen e normas prudenciais correlatas.
- Lei nº 12.690/2012 — cooperativas de trabalho (direitos, proteção ao trabalho decente e prevenção de fraudes na intermediação de mão de obra).
- Lei nº 9.867/1999 — cooperativas sociais (inclusão de pessoas em desvantagem) e diretrizes específicas.
- Lei nº 9.656/1998 (planos de saúde) e normas da ANS — aplicáveis às cooperativas de saúde, além das regras consumeristas.
- Normas setoriais (Bacen/CMN para crédito; ANEEL/ANATEL para infraestrutura; legislação tributária federal, estadual e municipal) — observar regulação específica conforme o ramo.