Direito Penal

Concurso de Agentes e Unidade de Desígnios: Entenda Diferenças e Cálculo de Pena (CP arts. 29, 70 e 71)

Concurso de agentes: conceitos fundamentais, requisitos e efeitos

No Direito Penal brasileiro, o concurso de agentes (ou concurso de pessoas) ocorre quando duas ou mais pessoas concorrem para a prática de um mesmo crime. A base normativa está no art. 29 do Código Penal, que determina que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade”. A regra é de extensão: permite imputar a mesma infração a autores e partícipes, ajustando a pena conforme o grau de contribuição e a reprovabilidade da conduta.

Elementos clássicos do concurso de agentes

  • Pluralidade de agentes e, em regra, pluralidade de condutas (embora a doutrina admita coautoria em um só ato executivo). O ponto central é o liame entre condutas e resultado.

  • Relevância causal da contribuição: a participação deve ter aptidão para influenciar o resultado (instigar, auxiliar, fornecer meios, dividir tarefas executivas).

  • Liame subjetivo (ou vínculo psicológico): consciência e vontade de agir conjuntamente, compartilhando o desígnio criminoso.

  • Identidade de infração: todos respondem pela mesma figura típica, salvo hipóteses de cooperação dolosamente distinta (art. 29, § 2º) ou participação de menor importância (art. 29, § 1º), que modulam a pena.

Quadro-síntese 1 — Autoria, coautoria e participação

  • Autor (domínio do fato): realiza diretamente o núcleo do tipo penal (ex.: executa o homicídio).
  • Coautor: divide tarefas executivas essenciais (ex.: um dirige o veículo de fuga enquanto o outro subtrai bens; ambos dominam o curso do fato).
  • Partícipe: instiga (reforça a vontade criminosa) ou auxilia (fornece meios, informações, vigilância), sem executar o núcleo típico. Pena ajustada à medida da culpabilidade (art. 29, caput e § 1º).
  • Cooperação dolosamente distinta (art. 29, § 2º): se algum agente quer resultado mais grave que os demais, só ele responde por esse excesso.

Regras de imputação

A imputação no concurso de pessoas observa o dolo e a culpabilidade individuais. Em linhas gerais:

  • Coautoria exige divisão funcional de tarefas executivas, com domínio do fato. Quem controla parte indispensável da execução integra o núcleo e responde como autor.

  • Participação (moral ou material) reclama contribuição causal relevante e vontade de favorecer o crime (dolo de participação). A mera presença no local, sem liame, não basta.

  • Na dosimetria, o juiz pondera intensidade do dolo, grau de contribuição, vantagem auferida e circunstâncias judiciais (art. 59), aplicando as reduções dos §§ 1º e 2º do art. 29 quando cabíveis.

Unidade de desígnios: onde ela importa e como dialoga com o concurso de agentes

Unidade de desígnios” é expressão recorrente na jurisprudência para identificar a existência de um plano criminoso único que conecta vários fatos. Esse elemento ganha relevância, sobretudo, na disciplina do concurso de crimes — notadamente no crime continuado (art. 71 do CP) e no concurso formal impróprio (art. 70, parte final).

Crime continuado (art. 71, caput e parágrafo único)

O crime continuado pressupõe que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratique dois ou mais crimes da mesma espécie, que, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devam ser havidos como continuação do primeiro. A jurisprudência consolidou que, além desses requisitos objetivos, exige-se o requisito subjetivo da unidade de desígnios (ou dolo global): os fatos devem integrar um mesmo plano. Se houver desígnios autônomos (propósitos distintos), afasta-se a continuidade e aplica-se o concurso material (somatória de penas).

Quadro-síntese 2 — Unidade de desígnios no crime continuado

  • Requisitos objetivos: semelhança de tempo, lugar, modo de execução e outras condições.
  • Requisito subjetivo: dolo unitário/plano comum que encadeia os eventos.
  • Efeito: aplica-se uma só pena (a do crime mais grave, se diversas) com aumento de 1/6 a 2/3 — podendo chegar até o triplo no parágrafo único, quando crimes dolosos contra vítimas diferentes forem praticados com violência ou grave ameaça.
  • Ausente a unidade: afasta-se a continuidade e incide concurso material (soma de penas).

Concurso formal (art. 70): próprio x impróprio

  • Concurso formal próprio: com uma só ação ou omissão, o agente pratica dois ou mais crimes. Se não há desígnios autônomos, aplica-se a pena de um só crime (o mais grave, se diversas), com aumento de 1/6 a 1/2.

  • Concurso formal impróprio (ou imperfeito): quando, apesar da única ação, restam desígnios autônomos para cada resultado, afasta-se a regra favorável e aplica-se o concurso material (somam-se as penas).

Quadro-comparativo 3 — Onde entra a unidade de desígnios?

Instituto Ponto de checagem Consequência
Concurso de agentes (art. 29) Há liame subjetivo entre os agentes para um mesmo crime? Todos respondem pelo mesmo fato típico, ajustando a pena à contribuição (autoria/participação).
Concurso formal próprio (art. 70) Uma só ação gera múltiplos delitos sem desígnios autônomos? Pena de um crime, com aumento (1/6 a 1/2).
Concurso formal impróprio desígnios autônomos para cada resultado? Aplica-se concurso material (soma de penas).
Crime continuado (art. 71) Crimes da mesma espécie com semelhança objetiva (tempo/lugar/modus operandi) e unidade de desígnios? Pena unificada com aumento (1/6 a 2/3; até o triplo na hipótese do parágrafo único).

Exemplos práticos

  • Coautoria em roubo: dois agentes combinam que um rende a vítima e o outro recolhe os bens. Há liame subjetivo e divisão essencial de tarefas — ambos respondem como coautores.

  • Participação moral: terceiro convence e estimula a dupla a praticar o roubo, sem comparecer ao local. Responde como partícipe, pena reduzível pela menor contribuição (art. 29, § 1º).

  • Concurso formal próprio: em uma única rajada de tiros, o agente atinge duas vítimas sem direcionar disparos individualizados — uma ação, múltiplos resultados sem desígnios autônomos, aumento do art. 70.

  • Concurso formal impróprio: ainda que com um só disparo, o agente deliberadamente mira em duas pessoas alternadamente, revelando propósitos autônomos — incide concurso material.

  • Crime continuado: série de furtos sem violência, no mesmo bairro, em noites próximas, com o mesmo método de arrombamento, praticados para revenda rápida — presentes requisitos objetivos e a unidade de desígnios, aplica-se o art. 71.

  • Sem continuidade: dois furtos no mesmo local, mas separados por maior lapso temporal e com contextos diversos (um noturno sem arrombamento e outro diurno com arrombamento) podem denotar desígnios autônomos, afastando o art. 71 e impondo concurso material.

Dosimetria comparada: visualizando os efeitos práticos

Para fins pedagógicos, considere uma pena-base hipotética de 4 anos para o crime mais grave. O diagrama a seguir mostra, em traços gerais, como os institutos impactam a pena total quando há dois delitos:


Comparativo (pena-base hipotética de 4 anos) 0 4 6 8 10

Concurso material (soma de penas) ≈ 8 anos

Concurso formal próprio (+1/6 a 1/2) ≈ 5 a 6 anos

Crime continuado (+1/6 a 2/3; até o triplo no § único) ≈ 5.3 a 6.6 anos (caso simples)

Representação didática (sem prejuízo da análise caso a caso e das demais fases da dosimetria).

Concurso de agentes x unidade de desígnios: pontos de atenção práticos

  • Não confundir institutos: concurso de agentes trata de pluralidade de pessoas para um mesmo crime. Já a unidade de desígnios é critério para aferir vínculo subjetivo entre vários crimes do mesmo agente (ou do mesmo grupo) ao analisar concurso de crimes (art. 70 e 71).

  • Prova do liame: em coautoria/participação, buscam-se mensagens, divisão de tarefas, logística, reuniões prévias, linguagem cifrada, aproveitamento funcional do auxílio etc. Em continuidade delitiva, examinam-se condições objetivas (tempo/lugar/modus) e o plano comum (unidade de desígnios).

  • Dosimetria estratégica: a defesa pode sustentar crime continuado (em vez de concurso material) quando houver série de delitos com dolo unitário e semelhanças objetivas. O Ministério Público tende a impugnar quando identificar desígnios autônomos ou rupturas relevantes no modus operandi.

Checklist rápido

  • pluralidade de agentes e liame subjetivo? → Concurso de agentes (art. 29).
  • uma só ação gerando vários crimes? → Concurso formal. Verificar se há desígnios autônomos (impróprio) ou não (próprio).
  • várias ações com crimes da mesma espécie e semelhança objetiva + unidade de desígnios? → Crime continuado.
  • Na dúvida sobre o subjetivo: pergunte se os fatos compuseram um mesmo plano ou se cada evento teve propósito próprio.

Estudos de caso hipotéticos

1) Série de furtos em lojas vizinhas

Agentes A e B planejam subtrair eletrônicos de três lojas vizinhas em dias alternados, de madrugada, usando a mesma chave falsa e o mesmo veículo. Há concurso de agentes (art. 29) e, na análise do concurso de crimes, os furtos são da mesma espécie, com semelhança objetiva e revelam unidade de desígnios. Tende-se a reconhecer crime continuado (art. 71), com unificação da pena e aumento proporcional.

2) Uma rajada, dois homicídios

O agente C, em uma única ação, efetua uma rajada que atinge duas vítimas sem direcionamento autônomo para cada alvo. O caso se amolda ao concurso formal próprio (art. 70), com aumento sobre a pena do crime mais grave.

3) Mesmo local, contextos distintos

O agente D furta um estabelecimento sem arrombamento durante a noite. No outro dia, retorna de dia e arromba a porta para subtrair objetos de maior valor. A diferença de contexto e o novo propósito indicam desígnios autônomos, o que afasta a continuidade delitiva, conduzindo ao concurso material (somatório) na fixação da pena.

Boas práticas probatórias para caracterizar (ou afastar) a unidade de desígnios

  • Temporalidade: proximidade entre os fatos (sem exigir número mágico); intervalos longos e rupturas podem sinalizar novos desígnios.

  • Localidade: mesmíssimo bairro/rota e alvos semelhantes robustecem a inferência de plano único.

  • Modus operandi: técnicas repetidas, instrumentos idênticos, horário padronizado e partilha de tarefas indicam continuidade.

  • Motivação e finalidade: prova de empreitada (ex.: chat, planilhas, vigilância prévia) reforça o elemento subjetivo; a mudança de alvo/ganho pode revelar desígnios distintos.

Conclusão

O concurso de agentes estrutura a imputação coletiva por um mesmo crime, calibrando a pena conforme a autoria ou participação e a medida da culpabilidade (art. 29). Já a unidade de desígnios é chave interpretativa do concurso de crimes, sobretudo no crime continuado (art. 71) e na distinção entre concurso formal próprio e impróprio (art. 70). A presença de um plano único — aliado a semelhanças objetivas — autoriza o tratamento mais benéfico (unificação com aumento); a existência de propósitos autônomos impõe o concurso material e a somatória de penas. Em qualquer cenário, a análise é caso a caso, devendo o julgador explicitar com rigor os fundamentos fáticos e jurídicos que comprovem o liame subjetivo entre agentes ou a unidade (ou não) de desígnios entre fatos sucessivos.

FAQ — Concurso de agentes e unidade de desígnios

O que é concurso de agentes e quais são seus requisitos?

concurso de agentes quando duas ou mais pessoas concorrem para a prática de um mesmo crime (art. 29 do CP). A doutrina e a jurisprudência exigem: pluralidade de agentes (e, em regra, de condutas), relevância causal da contribuição (instigação ou auxílio eficaz) e liame subjetivo (vontade consciente de atuar em comunhão de esforços para o mesmo resultado).

Qual a diferença entre coautoria e participação? E quando cabe a participação de menor importância?

Coautoria ocorre quando há divisão de tarefas executivas essenciais, com domínio do fato. Participação (moral ou material) é a contribuição que não executa o núcleo do tipo (instigar, auxiliar, fornecer meios). Nos termos do art. 29, § 1º, do CP, reconhecida a participação de menor importância (concurso pouco relevante para o resultado), a pena pode ser reduzida na dosimetria.

O que é unidade de desígnios e por que ela é importante?

Unidade de desígnios é o plano delitivo único que conecta vários fatos. Ela é determinante para diferenciar crime continuado do concurso material e para qualificar o concurso formal como próprio ou impróprio. Sem esse elemento subjetivo (propósito comum), afasta-se a continuidade e, em regra, somam-se as penas.

Como diferenciar crime continuado do concurso material?

crime continuado quando o agente pratica dois ou mais crimes da mesma espécie com condições semelhantes de tempo, lugar e modus operandi, aliados à unidade de desígnios (art. 71 do CP). Nesse caso, aplica-se uma só pena (a do crime mais grave, se diversas) com aumento de 1/6 a 2/3; no parágrafo único, o aumento pode chegar até o triplo em hipóteses específicas. Ausente esse liame subjetivo (ou as semelhanças objetivas), aplica-se o concurso material (somatória de penas).

O que distingue o concurso formal próprio do concurso formal impróprio?

Ambos ocorrem quando uma única ação ou omissão produz vários crimes (art. 70 do CP). No próprio, não há desígnios autônomos para cada resultado, aplicando-se a pena de um só crime com aumento de 1/6 a 1/2. No impróprio, há desígnios autônomos, prevalecendo o concurso material (penas somadas).


Base técnica — Fontes legais

  • CP, art. 29 — Concurso de pessoas: extensão da tipicidade a autores e partícipes, com pena na medida da culpabilidade; § 1º (participação de menor importância) e § 2º (cooperação dolosamente distinta).
  • CP, art. 70Concurso formal de crimes: distinção entre próprio (aumento) e impróprio (desígnios autônomos → concurso material).
  • CP, art. 71Crime continuado: requisitos objetivos (tempo, lugar, modo e outras condições semelhantes) e a exigência jurisprudencial de unidade de desígnios; regra de unificação da pena com aumento (caput e parágrafo único).
  • Lei 7.209/1984 — Reforma da Parte Geral do Código Penal (Exposição de Motivos, itens sobre concurso de crimes e imputação).
  • STF, Súmula 711 — Aplicação da lei penal mais grave ao crime continuado ou permanente quando vigente antes de cessar a continuidade/permanência (contexto útil em discussões de continuidade delitiva).
  • Jurisprudência do STJ e STF — Informativos e acórdãos reiteram a necessidade do elemento subjetivo (unidade de desígnios) para o crime continuado e a distinção entre concurso formal próprio/impróprio com base na existência de desígnios autônomos.

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