Atributos do poder de polícia: como decidir, executar e impor cumprimento com legalidade
Contexto e escopo
No direito administrativo brasileiro, três atributos sintetizam a forma como a Administração exerce o poder de polícia para proteger bens coletivos: discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade. Eles não são fins em si, mas meios para compatibilizar liberdades com segurança, saúde, urbanismo, meio ambiente e ordem econômica. A moldura constitucional e legal — arts. 5º, 23 a 25, 30 e 37 da Constituição, art. 78 do CTN, Lei 9.784/1999 (processo administrativo), além de legislações setoriais — impõe limites: legalidade, proporcionalidade, motivação, devido processo e controle. A seguir, destrincham-se os três atributos com exemplos práticos, limites e boas práticas de gestão regulatória.
Mensagem-chave: os atributos se aplicam em combinação. Discricionariedade orienta a escolha da medida; autoexecutoriedade permite a execução direta em hipóteses legais/urgentes; coercibilidade confere força obrigatória e sanção ao descumprimento.
Discricionariedade: escolha legítima dentro da lei
Discricionariedade é a margem de escolha que o ordenamento confere ao administrador para selecionar, entre alternativas igualmente legais, a solução mais adequada ao interesse público, à luz de critérios de conveniência e oportunidade e de técnica. Não há liberdade para contrariar a lei; a escolha se dá dentro dos elementos competência, forma, finalidade, motivo e objeto. A motivação explícita é requisito central (Lei 9.784/1999), permitindo controle por razoabilidade e proporcionalidade.
Quando existe e quando não existe discricionariedade
- Existe em autorizações (eventos em via pública; uso especial de área), fixação de condicionantes em licenças ambientais/sanitárias, gradação de multas e priorização de fiscalização por risco.
- Não existe em licenças vinculadas: cumpridos requisitos objetivos, a Administração deve conceder; negar exigiria base legal e motivação técnica consistente.
Discricionariedade técnica x administrativa
- Técnica: valoração fundada em ciência/engenharia (níveis de ruído, risco sanitário). Prova técnica robustece o ato.
- Administrativa: ponderação de política pública (horários, escalas de fiscalização). Exige análise de impacto e motivação.
Autoexecutoriedade: execução direta e seus freios
Autoexecutoriedade é a possibilidade de a Administração executar diretamente seus atos, sem necessidade de ordem judicial prévia, nas hipóteses autorizadas pelo ordenamento. Duas portas a justificam: previsão legal expressa (ex.: interdição sanitária, apreensão de produtos impróprios, embargo ambiental) e urgência — quando a demora do processo judicial comprometeria gravemente o interesse público. Em qualquer caso, a medida deve observar proporcionalidade, necessidade e motivação robusta, além de assegurar processo sancionador subsequente.
Limites clássicos
- Inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º, XI): ingresso em domicílio depende de consentimento, flagrante delito, desastre ou ordem judicial — salvo risco imediato e comprovado à vida/segurança.
- Restrições patrimoniais permanentes (ex.: alienação de bens): exigem via judicial; a Administração pode apreender como medida acautelatória quando a lei autoriza e instaurar processo.
- Temporalidade: interditar “até regularização” requer critérios objetivos; medidas devem ser revistas periodicamente.
Checklist de legalidade da autoexecutoriedade
- Fundamento: há lei específica ou urgência demonstrada?
- Proporcionalidade: medida é a menos gravosa capaz de neutralizar o risco?
- Motivação e provas: laudos, fotos, medições e relato circunstanciado.
- Processo: ciência ao interessado, prazo de defesa, instância recursal e decisão revisável.
- Reavaliação: critério para cessação/adequação da medida.
Coercibilidade: força obrigatória e sanção
Coercibilidade é a qualidade pela qual o ato de polícia impõe cumprimento e prevê sanções pelo descumprimento. A desobediência a ordens legítimas viabiliza multas, interdições, embargos, apreensões e outras medidas previstas em lei e regulamento. A coerção se manifesta direta (execução material, p.ex., lacrar equipamento perigoso) e indiretamente (multas diárias, suspensão de alvará, perda de benefícios). A cobrança de multas se dá por processo administrativo e, em última etapa, por execução fiscal quando não paga.
Graduação e devido processo
- Graduação: sanções compatíveis com gravidade, vantagem auferida, reincidência e capacidade econômica, conforme critérios legais.
- Tipicidade: conduta deve corresponder a infração definida com clareza; analogia in malam partem é vedada.
- Defesa e contraditório: notificação, vista dos autos, produção de provas, impugnação e recurso (Lei 9.784/1999 na esfera federal).
Integração prática dos três atributos
Considere o caso de um galpão industrial que emite ruído e partículas acima do limite legal. A Administração, com base em discricionariedade técnica, escolhe entre advertir, impor condicionantes (filtros, barreiras), multar e, em risco grave e imediato, interditar preventivamente. A interdição é exemplo de autoexecutoriedade respaldada por lei e urgência, seguida de processo sancionador. A coercibilidade garante cumprimento (multas diárias, lacres, cassação em caso de descumprimento reiterado). Tudo com motivação, prova técnica e graduação da resposta.
Boas práticas para reduzir litígios
- Critérios públicos de gradação de sanções e manuais de fiscalização.
- Auditorias técnicas independentes e cadeia de custódia para amostras/medições.
- Programas de conformidade com termos de ajustamento e multas proporcionais.
- Dados abertos de autuações e indicadores de risco para orientar a fiscalização inteligente.
- Revisões periódicas de medidas autoexecutórias e portas de saída claras.
Responsabilidade e controle
O exercício dos atributos não afasta a responsabilidade civil do Estado (art. 37, §6º, CF). Em excesso ou desvio (p. ex., interdição sem prova de risco; multa sem base legal), o ato é anulável e pode gerar indenização, com regresso contra o agente que agiu com dolo ou culpa. O controle se faz por recursos administrativos, ouvidorias, Tribunais de Contas, Ministério Público e Poder Judiciário (legalidade, motivação e proporcionalidade). A Administração deve documentar critérios e fatos, mantendo rastreabilidade da decisão.
Conclusão
Os atributos de discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade dão efetividade ao poder de polícia, mas só produzem bons resultados quando manejados com legalidade, técnica e proporcionalidade. A discricionariedade orienta a escolha da medida; a autoexecutoriedade permite agir com rapidez quando a lei autoriza ou a urgência impõe; e a coercibilidade assegura o cumprimento e a reparação quando há descumprimento. Atos motivados, provas sólidas, graduação de sanções, processo sancionador íntegro e transparência reduzem litígios, reforçam a segurança jurídica e elevam a confiança social na fiscalização. Em suma, o equilíbrio entre força pública e garantias individuais é o que legitima a polícia administrativa e sustenta a proteção de bens coletivos.
FAQ — Atributos do poder de polícia
1) O que significam discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade?
Discricionariedade é a margem de escolha do administrador entre soluções legais para atender ao interesse público; autoexecutoriedade é a possibilidade de executar o ato diretamente nas hipóteses legais/urgentes; coercibilidade é a força obrigatória do ato, cujo descumprimento gera sanções (multas, embargo, interdição).
2) Todo ato de polícia é discricionário?
Não. Licenças com requisitos objetivos são atos vinculados (cumpridos os requisitos, a Administração deve conceder). Em autorizações, gradação de sanções e definição de condicionantes, há discricionariedade que deve ser motivada e proporcional (Lei 9.784/1999).
3) Quando a autoexecutoriedade pode ser usada?
Quando houver previsão legal (ex.: interdição sanitária, apreensão ambiental) ou urgência comprovada, desde que a medida seja necessária e proporcional e seguida de processo sancionador com contraditório. Limites constitucionais permanecem (ex.: inviolabilidade de domicílio — CF, art. 5º, XI).
4) Como se dá a coercibilidade e a cobrança de multas?
O ato legítimo impõe cumprimento obrigatório; o descumprimento permite sanções graduadas e medidas acautelatórias previstas em lei. Multas são constituídas por processo administrativo (Lei 9.784/1999) e, se não pagas, podem ser exigidas por execução fiscal. A graduação observa gravidade, vantagem, reincidência e capacidade econômica.
5) Quais são os principais limites e controles desses atributos?
Reserva legal (restrições relevantes só por lei), proporcionalidade, motivação e publicidade; devido processo administrativo (CF, art. 5º, LIV e LV; Lei 9.784/1999); controle interno, dos Tribunais de Contas, do Ministério Público e judicial (legalidade, razoabilidade). Excesso ou desvio podem gerar nulidade e indenização (CF, art. 37, §6º).
- Constituição Federal: arts. 5º (LIV, LV, XI), 23–25, 30, 37 e 37, §6º.
- CTN: art. 78 (conceito de poder de polícia) e arts. 77–80 (taxas de polícia).
- Lei 9.784/1999 (processo administrativo federal): motivação, contraditório, recursos e nulidades.
- Lei 13.874/2019 (Liberdade Econômica): mitigação de atos desnecessários, análise de impacto e hipóteses de silêncio positivo.
- Legislação setorial (exemplos): Lei 6.938/1981 — PNMA/ambiental; Lei 8.078/1990 — CDC/consumerista; CTB — trânsito; normas de agências reguladoras.
