Concurso Material de Crimes: quando as penas se somam e o que muda na prática
Ideia central: quando as penas se somam
No Direito Penal brasileiro, fala-se em concurso material de crimes quando o mesmo agente, por duas ou mais ações ou omissões autônomas, pratica crimes distintos. A regra legal (CP, art. 69) é clara: as penas são aplicadas cumulativamente (somadas), respeitado o limite máximo de cumprimento previsto no art. 75 do CP (atualmente, 40 anos). A lógica é de pluralidade de condutas + pluralidade de crimes → pluralidade de penas.
O concurso material é, ao lado do concurso formal (art. 70) e do crime continuado (art. 71), uma das três formas legais de “concurso de crimes”. Distinguir cada uma delas é decisivo para a dosimetria, o regime inicial, a execução e os efeitos penais e extrapenais.
Fundamentos legais e posição sistemática
Art. 69 do Código Penal
O dispositivo disciplina o concurso material: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido”. A regra vale para crimes dolosos e culposos, comuns ou especiais, inclusive para combinações (ex.: um crime doloso e outro culposo, praticados em atos distintos).
Art. 72 — pena de multa
Em concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas cumulativamente, ainda que, por alguma razão, as privativas de liberdade sejam tratadas de outra forma (formal/continuado). No concurso material, soma-se tudo: privativas e multas.
Art. 75 — limite de cumprimento
O art. 75 fixa o tempo máximo de cumprimento da pena privativa de liberdade em 40 anos. Trata-se de limite de execução (não “recalcula” as penas; apenas limita o tempo efetivo de cumprimento). A pena total definida na sentença continua sendo a soma; o art. 75 opera na fase de execução penal.
Concurso material x concurso formal x crime continuado
Para aplicar corretamente o art. 69, é preciso confrontá-lo com as outras figuras.
Figura | Núcleo fático | Regra de pena | Exemplo típico |
---|---|---|---|
Concurso material (art. 69) | Múltiplas ações/omissões + múltiplos crimes | soma das penas | Dois furtos em dias distintos; roubo hoje e estelionato amanhã |
Concurso formal (art. 70) | Única ação/omissão + múltiplos crimes | Em regra, uma pena (mais grave) com aumento; se desígnios autônomos, pode haver soma (formal impróprio) | Disparo único que fere duas vítimas |
Crime continuado (art. 71) | Vários atos em semelhança de tempo, lugar, modo e outras condições | uma pena (do crime mais grave) com aumento por continuidade | Vários furtos do mesmo padrão em sequência próxima |
Como identificar o concurso material: roteiro prático
- Mapeie os atos: houve mais de uma ação ou omissão autônoma? (se não, afaste o material e analise o formal).
- Verifique os bens jurídicos e vítimas: embora não seja requisito, a existência de vítimas distintas ou ataques a bens diversos costuma apontar para pluralidade de crimes.
- Examine a unidade de desígnio: mesmo com uma ação, se houver desígnios autônomos, o concurso formal pode ser impróprio (com soma), mas isso não transforma o caso em “material”. Para material, o traço distintivo é a pluralidade de atos.
- Separe os tipos: cada crime conserva sua autonomia típica (elementos, qualificadoras, causas de aumento e diminuição) na dosimetria individual, para depois somar.
- Calcule as multas em separado e some-as (CP, art. 72).
Dosimetria no concurso material: passo a passo
1) Fixe a pena de cada crime individualmente (trifásico)
- Pena-base (art. 59): culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias e consequências do crime;
- Agravantes/atenuantes (arts. 61–66);
- Causas de aumento/diminuição específicas do tipo.
2) Some as penas
Concluído o cálculo de cada crime, soma-se tudo (privativas de liberdade e multas). A soma define, em regra, o regime inicial e influencia a substituição por restritivas (art. 44) e sursis (art. 77), observando os limites objetivos de cada instituto.
3) Aplique o art. 75 na execução
A unificação para observar o limite máximo de 40 anos ocorre na execução penal. A pena total da sentença permanece o somatório; o limite de cumprimento não “apaga” o excedente, mas apenas veda o cumprimento além do teto.
Exemplos práticos (diagnóstico de concurso material)
Exemplo 1 — Dois furtos em momentos distintos
O agente subtrai objeto em uma loja na segunda-feira e, na quarta-feira, repete a conduta em outra loja. São dois atos independentes, com dois crimes autônomos: concurso material → somatório das penas.
Exemplo 2 — Roubo hoje, estelionato amanhã
Pluralidade de condutas e de tipos: concurso material heterogêneo. Cada crime tem regra própria de causas de aumento/diminuição; depois, soma-se.
Exemplo 3 — Lesões em vítimas diferentes em dias distintos
Brigas separadas, cada uma com seu contexto: concurso material. Se as agressões fossem decorrentes de única ação (p. ex., um único disparo que atinge duas pessoas), discutir-se-ia concurso formal e não material.
Exemplo 4 — Crimes ambientais em operações diversas
Descumprimentos repetidos de normas, em procedimentos distintos (ex.: duas supressões de vegetação em datas diferentes): regra do art. 69, salvo hipóteses de continuidade delitiva (art. 71) quando as condições de tempo, lugar, modo e outras convergirem fortemente para uma mesma oportunidade criminosa.
Questões frequentes de dosimetria e execução
Regime inicial
O regime é fixado considerando a pena total (soma final), mais as circunstâncias judiciais e a existência de reincidência. Assim, dois crimes de pena mínima podem conduzir, somados, a regime mais gravoso do que teria cada crime isoladamente.
Substituição por restritivas e sursis
A análise leva em conta a pena total aplicada, os requisitos objetivos (limite em anos) e as condições subjetivas (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos e circunstâncias). Soma elevada pode obstar a substituição/sursis, ainda que cada crime isoladamente fosse elegível.
Multa
Soma-se o número de dias-multa de cada crime e fixa-se o valor do dia conforme a situação econômica do réu; na execução, as multas também são exigidas de modo cumulativo.
Prescrição
Em regra, a prescrição é calculada separadamente para cada pena (antes do trânsito em julgado). Após a sentença condenatória com somatório, aplicam-se as regras da prescrição da pretensão executória a partir da pena total (salvo eventos interruptivos/suspensivos). Em execução, há unificações para efeito de limites e benefícios, conforme a LEP e jurisprudência.
- Confundir pluralidade de resultados com pluralidade de ações (o que separa material e formal é o número de atos);
- Somar as penas antes de fechar a dosimetria individual de cada crime (ordem correta: calcula-se cada pena → depois soma);
- Esquecer de somar as multas (art. 72);
- Aplicar o limite do art. 75 como se reduzisse a pena total (ele limita o cumprimento, não “apaga” penas).
Conexões com outros institutos
Concurso material e concurso material qualificado
Fala-se, na prática forense, em situações de “concurso material qualificado” quando, por força de leis especiais, certos delitos praticados conjuntamente devem ter penas somadas (ex.: crimes distintos com proteção a bens jurídicos autônomos), sem possibilidade de absorção. A expressão não é do CP, mas aparece para diferenciar de hipóteses de absorção/aparência de normas, em que um tipo engole o outro (p. ex., post factum de exaurimento).
Aparência de normas e consunção
Nem toda pluralidade de fatos gera concurso material. Há situações de consunção (um delito é meio necessário/normal para outro), especialidade e subsidiariedade. O cuidado dogmático evita bis in idem. Ex.: porte de instrumento para arrombamento pode ser absorvido pelo furto qualificado, conforme o contexto probatório.
Concurso material e continuidade delitiva
Em séries de crimes muito semelhantes, praticados em proximidade de tempo, lugar e modo de execução, discute-se o art. 71. Se as condições convergem para uma mesma oportunidade criminosa, aplica-se crime continuado; se, ao contrário, os fatos estão desconectados (ou diferem substancialmente), permanece o concurso material.
Modelos de cálculo: estudos de caso (ilustrativos)
Estudo A — Dois furtos simples (art. 155, caput)
- Fato 1: pena final = 2 anos de reclusão + 10 dias-multa;
- Fato 2: pena final = 2 anos e 6 meses de reclusão + 12 dias-multa;
- Soma: 4 anos e 6 meses + 22 dias-multa. Avalia-se o regime segundo a pena total e as circunstâncias judiciais.
Estudo B — Roubo majorado e lesão corporal
- Roubo com majorante (ex.: concurso de pessoas): pena final = 7 anos e 200 dias-multa;
- Lesão corporal média: 1 ano e 10 dias-multa;
- Concurso material → 8 anos e 210 dias-multa. O regime pode ser fechado/semiaberto conforme art. 33, reincidência e vetoriais.
Implicações práticas para as partes
Defesa
- Testar, caso a caso, se há unidade de desígnio ou condições de continuidade (para discutir art. 70 ou 71);
- Pleitear dosimetria rigorosamente individualizada (art. 59) antes da soma e combater bis in idem em vetoriais e majorantes;
- Explorar consunção/aparência de normas quando pertinente;
- No pós-sentença, arguir unificação correta na execução (art. 75), progressões e benefícios segundo a pena total e a legislação de regência.
Acusação
- Demonstrar a pluralidade de ações de forma minuciosa (linha do tempo, locais, vítimas, objetivos);
- Individualizar as provas de cada crime para evitar nulidades e facilitar a soma na sentença;
- Resistir a enquadramentos artificiais em continuidade quando os fatos forem desconexos ou significativamente diferentes;
- Atentar às multas cumulativas e às restituições/reparações autônomas de cada crime.
- Houve mais de uma ação (ou omissão) autônoma?
- Os crimes têm autonomia típica (sem absorção por consunção/especialidade)?
- Foi feita a dosimetria individual de cada crime antes da soma?
- As multas foram tratadas separadamente e somadas (art. 72)?
- Houve atenção ao limite de 40 anos do art. 75 na execução?
Conclusão
O concurso material de crimes oferece resposta proporcional a múltiplas condutas delitivas, preservando a autonomia de cada injusto e assegurando transparência na dosimetria: calcula-se a pena de cada crime e, ao final, somam-se as penas (inclusive multas), com observância do limite de cumprimento do art. 75 do CP. O acerto da aplicação depende de distinguir o material do formal e do continuado, de evitar bis in idem e de cuidar das interfaces com consunção e execução penal. Quando bem utilizado, o art. 69 harmoniza proporcionalidade e prevenção, deixando claro que pluralidade de atos + pluralidade de crimes = pluralidade (somada) de penas.
FAQ — Concurso material de crimes (acordeão)
1) O que é concurso material de crimes?
É a situação em que o mesmo agente, por duas ou mais ações/omissões autônomas, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. A regra é a soma das penas (CP, art. 69).
2) Qual a diferença para concurso formal e crime continuado?
- Material (art. 69): várias ações + vários crimes → somar penas.
- Formal (art. 70): uma só ação + vários crimes → regra: uma pena (mais grave) com aumento; se houver desígnios autônomos, soma-se (formal impróprio).
- Continuado (art. 71): várias ações muito semelhantes (tempo, lugar, modo) → uma pena com aumento por continuidade.
3) Como o juiz calcula a pena no concurso material?
Aplica o método trifásico para cada crime (art. 59; arts. 61–66; causas de aumento/diminuição do tipo). Depois, soma as penas resultantes e, por fim, observa-se o limite de cumprimento do art. 75 do CP.
4) Multa também se soma?
Sim. No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas cumulativamente (CP, art. 72), somando-se os dias-multa de cada delito e fixando-se o valor do dia conforme a situação econômica do réu.
5) Existe limite máximo para o tempo total de prisão?
Sim. O art. 75 do CP fixa o tempo máximo de cumprimento em 40 anos. Trata-se de limite de execução: a sentença mantém a soma das penas; o teto limita o tempo a cumprir.
6) Como o concurso material influencia o regime inicial e a substituição da pena?
O regime (art. 33 CP) e a substituição por restritivas (art. 44 CP) consideram a pena total após a soma, além das circunstâncias judiciais e da reincidência. Soma elevada pode levar a regime mais gravoso e impedir substituição/sursis (art. 77 CP).
7) Há situações em que não se aplica concurso material mesmo com vários fatos?
Sim. Podem incidir consunção, especialidade ou subsidiariedade (aparência de normas). Ex.: crime-meio absorvido pelo crime-fim. Também, se houver forte semelhança de tempo, lugar e modo, pode-se reconhecer crime continuado (art. 71).
8) Como ficam os efeitos civis e a pena de cada delito?
Cada crime conserva autonomia para fins de reparação civil, efeitos penais específicos e cálculo de prescrição antes do trânsito (em regra, separadamente por pena concreta de cada delito).
9) O que são “desígnios autônomos” e por que importam?
São propósitos independentes em uma só ação. Nessa hipótese, o concurso formal torna-se impróprio e as penas se somam, aproximando o resultado do concurso material (art. 70, parte final), mas a qualificação do concurso permanece formal.
10) Na execução, as penas do concurso material são unificadas?
Sim. A LEP determina a unificação para verificar benefícios e o limite do art. 75. A soma da sentença permanece; a unificação serve para progressão, regressão e cálculo do prazo de cumprimento.
- Identifique pluralidade de ações/omissões e pluralidade de crimes.
- Calcule a pena de cada crime (art. 59; 61–66; causas específicas).
- Some privativas de liberdade e some multas (art. 72).
- Fixe regime/substituição considerando a pena total (arts. 33 e 44; art. 77).
- Na execução, observe o teto do art. 75 (40 anos) e unificações.
Base técnica — Fontes legais essenciais
- Código Penal: art. 69 (concurso material); art. 70 (concurso formal); art. 71 (crime continuado); art. 72 (multa cumulativa); art. 33 (regime inicial); art. 44 (substituição por restritivas); art. 59 (circunstâncias judiciais); arts. 61–66 (agravantes/atenuantes); art. 75 (limite de 40 anos).
- LEP (Lei 7.210/1984): regras de unificação de penas, cálculo para progressão e benefícios durante a execução.
- Constituição Federal: princípios de individualização da pena (art. 5º, XLVI) e proporcionalidade.